domingo, agosto 31, 2003
Nameless Brenda
Lembro-me de ti devido a uma cerimónia de entrega de prémios. Lembro-me de ti muitas vezes, mas esta noite procuro-te entre as pessoas que brilham jóias no tapete vermelho e entre as limusines que aterram quase sem fazer barulho. Talvez apareças executando o mesmo andar com que procuraste roubar-me às palavras de um livro. A carruagem arrancou e, sentada à minha frente, falaste, contando-me sobre o país onde nasceras, que eras actriz, modelo, linda – claro que és linda, nunca precisarias de dizê-lo – e que um dia serias uma celebridade adorada pelos homens descrentes, como eu.
Agora que, meses depois, comecei finalmente a acreditar, volto a procurar-te entre todas as mulheres que alongam as pernas a cada passo. Talvez chegues com o mesmo vestido da fotografia que me mostraste:
“Sou actriz, entrei numa curta metragem, mas estou sem casa.”
E só então reparei que eras bonita, primeiro na fotografia, depois diante de mim, sem o vestido, os pés nuns chinelos sujos, quase sem sola, a roupa manchada, uma mochila onde devias trazer tudo aquilo que era teu:
“Tenho as coisas na casa de um amigo. Só preciso de arranjar um emprego.”
Mas claro que me mentias, que não tinhas onde dormir, que guardavas o tal vestido negro da fotografia, dobrado, muito bem dobrado, dentro da mochila, porque – isto é verdade, eu sei que é verdade – havia noites em que administravas o que sobrava de maquilhagem na cara e entravas no bar do Hotel Plaza para conseguir dinheiro:
“Ontem estive com um médico. Não dormimos juntos, ele só me queria ver nua.”
Voltavas a mentir, mas eu não me importava, observando agora a beleza que estava debaixo das unhas onde o verniz estalara, o rosto magro, os ossos dos ombros cheios de fome, vincando-se contra a roupa:
“Pagas-me um café?”
E eu paguei-te uma refeição, ficámos sentados, tu mastigando muito depressa, eu admirando as tuas mentiras. Depois foste para uma casa inventada, foste para um passeio, ou para o bar de algum hotel, e eu, sem fé no teu talento, deixei que fosses, observando as costas da tua mão limpando o que sobrava de molho no limite dos lábios.
Neste momento, tenho a certeza que não és mitómana. Sabes, talvez estivesse enganado quando acreditei que - como tantos outros milhões – nunca serias aquilo que aprendeste ao longo da vida diante da televisão, nos jornais, nas entrevistas que os teus ídolos concediam debaixo de holofotes. Não podes ser apenas mais uma rapariga deslumbrada com as possibilidades das luzes das câmaras fotográficas. E não, não estás à entrada de um edifício de escritórios, durante a noite, coberta por caixas, tentando dormir. Nem sequer de joelhos, sem roupa, no chão de um quarto de hotel, com um homem que te empurra a cabeça ao ritmo que melhor o satisfaz.
Estás aqui, entre estas pessoas que brilham para sobreviver, é só uma questão de procurar melhor. E se fingires que não me conheces, porque hoje és uma pessoa importante, eu juro que não me importo. Só não te quero triste, manchada de baton, compilando os destroços da própria roupa, para depois arrastares os chinelos sujos assim que abandonas esse quarto de hotel.
Lembro-me de ti devido a uma cerimónia de entrega de prémios. Lembro-me de ti muitas vezes, mas esta noite procuro-te entre as pessoas que brilham jóias no tapete vermelho e entre as limusines que aterram quase sem fazer barulho. Talvez apareças executando o mesmo andar com que procuraste roubar-me às palavras de um livro. A carruagem arrancou e, sentada à minha frente, falaste, contando-me sobre o país onde nasceras, que eras actriz, modelo, linda – claro que és linda, nunca precisarias de dizê-lo – e que um dia serias uma celebridade adorada pelos homens descrentes, como eu.
Agora que, meses depois, comecei finalmente a acreditar, volto a procurar-te entre todas as mulheres que alongam as pernas a cada passo. Talvez chegues com o mesmo vestido da fotografia que me mostraste:
“Sou actriz, entrei numa curta metragem, mas estou sem casa.”
E só então reparei que eras bonita, primeiro na fotografia, depois diante de mim, sem o vestido, os pés nuns chinelos sujos, quase sem sola, a roupa manchada, uma mochila onde devias trazer tudo aquilo que era teu:
“Tenho as coisas na casa de um amigo. Só preciso de arranjar um emprego.”
Mas claro que me mentias, que não tinhas onde dormir, que guardavas o tal vestido negro da fotografia, dobrado, muito bem dobrado, dentro da mochila, porque – isto é verdade, eu sei que é verdade – havia noites em que administravas o que sobrava de maquilhagem na cara e entravas no bar do Hotel Plaza para conseguir dinheiro:
“Ontem estive com um médico. Não dormimos juntos, ele só me queria ver nua.”
Voltavas a mentir, mas eu não me importava, observando agora a beleza que estava debaixo das unhas onde o verniz estalara, o rosto magro, os ossos dos ombros cheios de fome, vincando-se contra a roupa:
“Pagas-me um café?”
E eu paguei-te uma refeição, ficámos sentados, tu mastigando muito depressa, eu admirando as tuas mentiras. Depois foste para uma casa inventada, foste para um passeio, ou para o bar de algum hotel, e eu, sem fé no teu talento, deixei que fosses, observando as costas da tua mão limpando o que sobrava de molho no limite dos lábios.
Neste momento, tenho a certeza que não és mitómana. Sabes, talvez estivesse enganado quando acreditei que - como tantos outros milhões – nunca serias aquilo que aprendeste ao longo da vida diante da televisão, nos jornais, nas entrevistas que os teus ídolos concediam debaixo de holofotes. Não podes ser apenas mais uma rapariga deslumbrada com as possibilidades das luzes das câmaras fotográficas. E não, não estás à entrada de um edifício de escritórios, durante a noite, coberta por caixas, tentando dormir. Nem sequer de joelhos, sem roupa, no chão de um quarto de hotel, com um homem que te empurra a cabeça ao ritmo que melhor o satisfaz.
Estás aqui, entre estas pessoas que brilham para sobreviver, é só uma questão de procurar melhor. E se fingires que não me conheces, porque hoje és uma pessoa importante, eu juro que não me importo. Só não te quero triste, manchada de baton, compilando os destroços da própria roupa, para depois arrastares os chinelos sujos assim que abandonas esse quarto de hotel.
sexta-feira, agosto 29, 2003
Os Dez Mandamentos
Talvez o repórter televisivo não saiba, mas as crianças – porque acreditam em fadas, no Pai Natal e em amigos imaginários – não serão os melhores entrevistados quando se trata de religião. E é por isso que elimino do ecrã o rapaz loiro que se prepara para responder à pergunta:
“Estás triste?”
Não me interessa saber se a criança se lamenta de dores espirituais porque um juiz decidiu que um tribunal, no Alabama, não era o melhor lugar de exibição para uma tábua de mármore, com várias toneladas, onde se anunciam os Dez Mandamentos.
Tal como não me impressiona o mau gosto da obra de arte. E não sofreria uma trombose se a tábua apresentasse ensinamentos de qualquer outra religião. O que me surpreende é a quantidade de gente – milhares – que se deslocaram ao Alabama para contestar a decisão inevitável de um juiz.
Um tribunal é um lugar público, onde não funcionam as leis de qualquer Deus. Nunca ninguém será julgado por desrespeitar o mandamento:
“Não terás outro Deus além de Mim.”
O tribunal serve para garantir liberdades, e uma dessas liberdades consiste em querer acreditar, ou não, em Deus, ou em qualquer Deus.
O problema não é o objecto de mármore, mas o que leva os manifestantes até ao Alabama. Eles querem que as leis da sua religião sejam as leis que controlam toda a humanidade. Para eles, não haveria budistas, ateus, ou pornógrafos. Eles, ao fim e ao cabo, querem ser Deus. Enquanto as religiões acreditarem que vencem por imposição, haverá sempre gente que acabará por morrer e uns quantos ditadores, em versão miniatura, com aspirações a divindade.
Talvez o repórter televisivo não saiba, mas as crianças – porque acreditam em fadas, no Pai Natal e em amigos imaginários – não serão os melhores entrevistados quando se trata de religião. E é por isso que elimino do ecrã o rapaz loiro que se prepara para responder à pergunta:
“Estás triste?”
Não me interessa saber se a criança se lamenta de dores espirituais porque um juiz decidiu que um tribunal, no Alabama, não era o melhor lugar de exibição para uma tábua de mármore, com várias toneladas, onde se anunciam os Dez Mandamentos.
Tal como não me impressiona o mau gosto da obra de arte. E não sofreria uma trombose se a tábua apresentasse ensinamentos de qualquer outra religião. O que me surpreende é a quantidade de gente – milhares – que se deslocaram ao Alabama para contestar a decisão inevitável de um juiz.
Um tribunal é um lugar público, onde não funcionam as leis de qualquer Deus. Nunca ninguém será julgado por desrespeitar o mandamento:
“Não terás outro Deus além de Mim.”
O tribunal serve para garantir liberdades, e uma dessas liberdades consiste em querer acreditar, ou não, em Deus, ou em qualquer Deus.
O problema não é o objecto de mármore, mas o que leva os manifestantes até ao Alabama. Eles querem que as leis da sua religião sejam as leis que controlam toda a humanidade. Para eles, não haveria budistas, ateus, ou pornógrafos. Eles, ao fim e ao cabo, querem ser Deus. Enquanto as religiões acreditarem que vencem por imposição, haverá sempre gente que acabará por morrer e uns quantos ditadores, em versão miniatura, com aspirações a divindade.
quinta-feira, agosto 28, 2003
O último assalto
Nick é uma boa pessoa. Vejo-o muitas vezes passeando o cão, os dedos segurando os dedos da mulher. Talvez já nem se lembre, mas Nick foi uma das primeiras pessoas que conheci nesta cidade. Jantámos na mesma mesa de um restaurante e, quando descobri que era actor, reagi como um adolescente, perguntando a sua opinão sobre filmes, actores e realizadores. Lembro-me que defendi a beleza e a insolência da criação de David Fincher, Fight Club, e que me debati com a opinião de Nick que me garantia:
“O filme não traz nada de novo, é um tema explorado.”
Mesmo discordando, eu e Nick poderíamos talvez ser amigos.
Sobre uma outra noite, lembro-me de tudo e, no entanto, Nick continua a ser uma boa pessoa. Encontrei-o encostado a um carro, na rua, enquanto esperava mesa na esplanada de um restaurante. Estava com os amigos, as pernas imóveis, os braços em baixo. Alguém se levantou de uma das mesas na esplanada e disse:
“Get the fuck out of my car.”
Nick é uma boa pessoa, gosta de delicadeza e de palavras que não magoem:
“You ask me nicely and I’ll get out of your car.”
Mas o homem continuou os insultos, aproximou-se, puxou-lhe a camisa. Depois, lembro-me de ver tudo muito devagar, como se assistisse à repetição de um combate que já acontecera. Nick afastou-se, as pernas flectidas balançando o peso do corpo, os braços levantados, o direito mais atrás, protegendo o tronco, o braço esquerdo adiante, pronto para iniciar um movimento. Ohava para as pernas de Nick, uma boa pessoa, e via que estava pronto a atacar. A cintura rodou, como se disparasse um braço, primeiro a mão esquerda embatendo na cara do homem, e o braço recolheu para o braço direito avançar, voltando depois à posição inicial ao mesmo tempo que o braço esquerdo executava outro disparo.
Nick manteve os braços levantados, sendo ainda e apenas um homem que está pronto para combater, como se esperasse a contagem do árbitro a garantir a desclassificação do adversário. Depois viu o homem cair de joelhos, os ombros produzindo um som abafado, ossos aterrando no passeio. E quando os amigos se aproximaram, Nick não celebrou, apenas cobriu a cara com a mãos.
Nick não era o corpo magoado do personagem Tyler Durden, em Fight Club, nem se encontrava em tronco nu, com os pés descalços, numa cave onde homens combatiam, prontos a magoar, para se sentirem mais vivos. Nick nunca disse:
“How much can you really know about yourself if you’ve never been in a fight?”
E no, entanto, Nick, uma boa pessoa, foi tudo aquilo que odeia ser no momento em que as pernas flectiram e os braços assumiram a posição dos pugilistas profissionais, criando uma beleza talvez repudiável, mas que não deixou de encantar a assistência.
Nick é uma boa pessoa. Vejo-o muitas vezes passeando o cão, os dedos segurando os dedos da mulher. Talvez já nem se lembre, mas Nick foi uma das primeiras pessoas que conheci nesta cidade. Jantámos na mesma mesa de um restaurante e, quando descobri que era actor, reagi como um adolescente, perguntando a sua opinão sobre filmes, actores e realizadores. Lembro-me que defendi a beleza e a insolência da criação de David Fincher, Fight Club, e que me debati com a opinião de Nick que me garantia:
“O filme não traz nada de novo, é um tema explorado.”
Mesmo discordando, eu e Nick poderíamos talvez ser amigos.
Sobre uma outra noite, lembro-me de tudo e, no entanto, Nick continua a ser uma boa pessoa. Encontrei-o encostado a um carro, na rua, enquanto esperava mesa na esplanada de um restaurante. Estava com os amigos, as pernas imóveis, os braços em baixo. Alguém se levantou de uma das mesas na esplanada e disse:
“Get the fuck out of my car.”
Nick é uma boa pessoa, gosta de delicadeza e de palavras que não magoem:
“You ask me nicely and I’ll get out of your car.”
Mas o homem continuou os insultos, aproximou-se, puxou-lhe a camisa. Depois, lembro-me de ver tudo muito devagar, como se assistisse à repetição de um combate que já acontecera. Nick afastou-se, as pernas flectidas balançando o peso do corpo, os braços levantados, o direito mais atrás, protegendo o tronco, o braço esquerdo adiante, pronto para iniciar um movimento. Ohava para as pernas de Nick, uma boa pessoa, e via que estava pronto a atacar. A cintura rodou, como se disparasse um braço, primeiro a mão esquerda embatendo na cara do homem, e o braço recolheu para o braço direito avançar, voltando depois à posição inicial ao mesmo tempo que o braço esquerdo executava outro disparo.
Nick manteve os braços levantados, sendo ainda e apenas um homem que está pronto para combater, como se esperasse a contagem do árbitro a garantir a desclassificação do adversário. Depois viu o homem cair de joelhos, os ombros produzindo um som abafado, ossos aterrando no passeio. E quando os amigos se aproximaram, Nick não celebrou, apenas cobriu a cara com a mãos.
Nick não era o corpo magoado do personagem Tyler Durden, em Fight Club, nem se encontrava em tronco nu, com os pés descalços, numa cave onde homens combatiam, prontos a magoar, para se sentirem mais vivos. Nick nunca disse:
“How much can you really know about yourself if you’ve never been in a fight?”
E no, entanto, Nick, uma boa pessoa, foi tudo aquilo que odeia ser no momento em que as pernas flectiram e os braços assumiram a posição dos pugilistas profissionais, criando uma beleza talvez repudiável, mas que não deixou de encantar a assistência.
Criminosos Pop
Uma marca de roupa americana lançou um modelo de calças dedicado a Madonna. Eu não as vestiria, mas compreendo, porque Madonna, que eu saiba, nunca colectivizou propriedades ou sequer enviou outros cantores para campos de concentração. É apenas uma mulher que vende discos. Não faz mal a ninguém, não obriga a população de um país a ouvir a sua música.
É por isso que me surpreendo quando vejo, nas mãos da minha amiga Stephanie, um porta-chaves com a imagem de Ho Chi Min. Já tinha reparado na propagação das t-shirts com a cara de Mao Tse Tung ou que recordam a União Soviética:
“CCCP”
Sempre me espantou a leviendade com que as pessoas transformam criminosos em símbolos populares, em motivos para enfeitar roupa, em elementos de decoração nas próprias casas
Digo a Stephanie, uma mulher inteligente, que não gosto daquele porta-chaves. E não me refiro à cor, nem sequer ao desenho. Ho Chi Min pode ter sido estóico na luta pela libertação do Vietnam. Combateu os franceses, a potência colonial, e mais tarde os Estados Unidos. Mas Ho Chi Min foi também o homem que criou os campos de re-educação, que roubou terras, que matou aqueles que revelavam comportamentos burgueses – ou que disso eram acusados – e que eliminou a voz dos que se opunham ao seu regime. Foi o homem que queria ganhar, preferindo sempre os ideais ao valor da vida humana:
“Podem matar dez dos meus homens por cada um que eu mato dos vossos, mas vocês perderão e eu ganharei.”
A questão é se todo - ou algum - bem que Ho Chi Min fez, poderá alguma vez desculpar o mal que originou. A mesma pergunta fica para os que têm postais de Fidel Castro colados na porta do frigorífico, ou para aqueles que vestem casacos que imitam as fardas alemãs da Segunda Guerra Mundial apenas por uma questão de estilo, sem consciência do que fazem, afogados na ignorância.
À minha amiga, judia, americana, apenas perguntei:
“E se eu fosse jantar com a cara do Hitler estampada na camisa?”
Não acho sequer que seja perigoso – do ponto de vista da propaganda – que se utilize uma t-shirt com a bandeira soviética. Mas revela um desconhecimento, esse sim, perigoso, e uma falta de respeito por todos aqueles que tiveram que viver com Staline, Ho Chi Min, Mao, Hitler, Mussolini, Salazar, ou Fidel Castro. É que Stephanie, mesmo que eu critique, pode escolher o porta-chaves que lhe apetecer, ao contrário das vítimas desses ditadores.
Uma marca de roupa americana lançou um modelo de calças dedicado a Madonna. Eu não as vestiria, mas compreendo, porque Madonna, que eu saiba, nunca colectivizou propriedades ou sequer enviou outros cantores para campos de concentração. É apenas uma mulher que vende discos. Não faz mal a ninguém, não obriga a população de um país a ouvir a sua música.
É por isso que me surpreendo quando vejo, nas mãos da minha amiga Stephanie, um porta-chaves com a imagem de Ho Chi Min. Já tinha reparado na propagação das t-shirts com a cara de Mao Tse Tung ou que recordam a União Soviética:
“CCCP”
Sempre me espantou a leviendade com que as pessoas transformam criminosos em símbolos populares, em motivos para enfeitar roupa, em elementos de decoração nas próprias casas
Digo a Stephanie, uma mulher inteligente, que não gosto daquele porta-chaves. E não me refiro à cor, nem sequer ao desenho. Ho Chi Min pode ter sido estóico na luta pela libertação do Vietnam. Combateu os franceses, a potência colonial, e mais tarde os Estados Unidos. Mas Ho Chi Min foi também o homem que criou os campos de re-educação, que roubou terras, que matou aqueles que revelavam comportamentos burgueses – ou que disso eram acusados – e que eliminou a voz dos que se opunham ao seu regime. Foi o homem que queria ganhar, preferindo sempre os ideais ao valor da vida humana:
“Podem matar dez dos meus homens por cada um que eu mato dos vossos, mas vocês perderão e eu ganharei.”
A questão é se todo - ou algum - bem que Ho Chi Min fez, poderá alguma vez desculpar o mal que originou. A mesma pergunta fica para os que têm postais de Fidel Castro colados na porta do frigorífico, ou para aqueles que vestem casacos que imitam as fardas alemãs da Segunda Guerra Mundial apenas por uma questão de estilo, sem consciência do que fazem, afogados na ignorância.
À minha amiga, judia, americana, apenas perguntei:
“E se eu fosse jantar com a cara do Hitler estampada na camisa?”
Não acho sequer que seja perigoso – do ponto de vista da propaganda – que se utilize uma t-shirt com a bandeira soviética. Mas revela um desconhecimento, esse sim, perigoso, e uma falta de respeito por todos aqueles que tiveram que viver com Staline, Ho Chi Min, Mao, Hitler, Mussolini, Salazar, ou Fidel Castro. É que Stephanie, mesmo que eu critique, pode escolher o porta-chaves que lhe apetecer, ao contrário das vítimas desses ditadores.
quarta-feira, agosto 27, 2003
Os dois lados do oceano
A última vez que estive em Lisboa uma mulher disse-me que detestava os americanos. Perguntei-lhe se conhecia algum, se já havia estado nos Estados Unidos, se sabia quais eram as diferenças entre um texano e um nova iorquino. Ela respondeu:
“Não.”
A sua opinião era baseada na opinião dos outros, nos filmes que vira, nos noticiários que comia todos os dias antes de jantar. Para ela, os americanos – quase trezentos milhões – eram todos gordos, amantes das armas de fogos e inimigos dos países indefesos.
Nos Estados Unidos, perguntaram-me algumas vezes porque são os europeus fumadores compulsivos e porque mostram medo quando se trata de participar em conflitos internacionais. O New York Times da semana passada mostrava fotografias de lugares em Paris que imitavam lugares em Nova Iorque. O texto, curto, sem graça, desvalorizava o suposto encanto da capital francesa e emendava a certeza, de Humphrey Bogart, no filme Casablanca, para:
“We’ll always have New York.”
As comparações entre estas culturas – que têm menos diferenças do que imaginamos – é um sofisma inconsequente e aborrecido. É um disfarce para a intolerância e para a insegurança diante de algo estranho ou novo. A verdade é que – vivendo em Nova Iorque – aprendi a reconhecer o que existe de melhor em ambos os continentes. Não se trata de opor realidades, de dizer que isto é melhor que aquilo, mas antes de ter o esclarecimento suficiente para desfrutar a sabedoria, os ensinamentos, ou o estilo de vida de cada país. Apenas uma coisa é certa, gente obtusa e arrogante, quase sem remédio de cura, que não sabe comer à mesa e que vive enganada, existe em todo o mundo. Os estúpidos ou os criminosos são sempre iguais, onde quer que nasçam.
A última vez que estive em Lisboa uma mulher disse-me que detestava os americanos. Perguntei-lhe se conhecia algum, se já havia estado nos Estados Unidos, se sabia quais eram as diferenças entre um texano e um nova iorquino. Ela respondeu:
“Não.”
A sua opinião era baseada na opinião dos outros, nos filmes que vira, nos noticiários que comia todos os dias antes de jantar. Para ela, os americanos – quase trezentos milhões – eram todos gordos, amantes das armas de fogos e inimigos dos países indefesos.
Nos Estados Unidos, perguntaram-me algumas vezes porque são os europeus fumadores compulsivos e porque mostram medo quando se trata de participar em conflitos internacionais. O New York Times da semana passada mostrava fotografias de lugares em Paris que imitavam lugares em Nova Iorque. O texto, curto, sem graça, desvalorizava o suposto encanto da capital francesa e emendava a certeza, de Humphrey Bogart, no filme Casablanca, para:
“We’ll always have New York.”
As comparações entre estas culturas – que têm menos diferenças do que imaginamos – é um sofisma inconsequente e aborrecido. É um disfarce para a intolerância e para a insegurança diante de algo estranho ou novo. A verdade é que – vivendo em Nova Iorque – aprendi a reconhecer o que existe de melhor em ambos os continentes. Não se trata de opor realidades, de dizer que isto é melhor que aquilo, mas antes de ter o esclarecimento suficiente para desfrutar a sabedoria, os ensinamentos, ou o estilo de vida de cada país. Apenas uma coisa é certa, gente obtusa e arrogante, quase sem remédio de cura, que não sabe comer à mesa e que vive enganada, existe em todo o mundo. Os estúpidos ou os criminosos são sempre iguais, onde quer que nasçam.
terça-feira, agosto 26, 2003
Aquilo que somos
Um amigo conta-me, à mesa de uma esplanada, a noite de ontem. Ela era uma rapariga loira com um traço de sangue seco numa das narinas. O sangue repetia-se num dos dedos, infiltrara-se no contorno de uma unha. A boca dela tinha o sabor amargo da cocaína. Estiveram sentados nos degraus de um edifício de escritórios, no SoHo, porque ela queria beber água e contar-lhe a vida. Onde estavam ainda podiam ouvir a música da discoteca de cada vez que o porteiro abria a porta.
Vejo agora o meu amigo cansado, diante de mim, bebendo um refrigerante pela palhinha num restaurante de Union Square:
“As pessoas gostam muito de falar quando cheiram.”
A rapariga chegara da Europa e os pais divorciaram-se. Uma amiga morrera num acidente de carro, a irmã fez um aborto, o pai é alcoólico. O meu amigo continuava sentado ao lado da rapariga loira, escutando tudo, indeciso entre a comiseração e a vontade de levá-la para a cama:
“Às vezes deixava de ouvi-la. Toda aquela informação estava fora de lugar. Não
deveria ser partilhada na rua.”
O meu amigo decide não fumar depois de beber o refrigerante porque está de ressaca. Continua a contar-me que dormiu pouco porque levou a rapariga loira para casa, experimentando-lhe o sexo ainda no banco de trás do táxi.
“Ontem era apenas aquilo que lhe queria fazer.”
Esta tarde, depois de comentar as pernas da empregada que nos traz a conta, questiona-se sobre a culpa que deveria sentir. Garante-me que vai telefonar à rapariga loira, que tem que protegê-la em vez de consumi-la, que não podemos ser assim, tão vulneráveis aos instintos:
“Mas, sabes, ontem era apenas aquilo que lhe queria fazer.”
Um amigo conta-me, à mesa de uma esplanada, a noite de ontem. Ela era uma rapariga loira com um traço de sangue seco numa das narinas. O sangue repetia-se num dos dedos, infiltrara-se no contorno de uma unha. A boca dela tinha o sabor amargo da cocaína. Estiveram sentados nos degraus de um edifício de escritórios, no SoHo, porque ela queria beber água e contar-lhe a vida. Onde estavam ainda podiam ouvir a música da discoteca de cada vez que o porteiro abria a porta.
Vejo agora o meu amigo cansado, diante de mim, bebendo um refrigerante pela palhinha num restaurante de Union Square:
“As pessoas gostam muito de falar quando cheiram.”
A rapariga chegara da Europa e os pais divorciaram-se. Uma amiga morrera num acidente de carro, a irmã fez um aborto, o pai é alcoólico. O meu amigo continuava sentado ao lado da rapariga loira, escutando tudo, indeciso entre a comiseração e a vontade de levá-la para a cama:
“Às vezes deixava de ouvi-la. Toda aquela informação estava fora de lugar. Não
deveria ser partilhada na rua.”
O meu amigo decide não fumar depois de beber o refrigerante porque está de ressaca. Continua a contar-me que dormiu pouco porque levou a rapariga loira para casa, experimentando-lhe o sexo ainda no banco de trás do táxi.
“Ontem era apenas aquilo que lhe queria fazer.”
Esta tarde, depois de comentar as pernas da empregada que nos traz a conta, questiona-se sobre a culpa que deveria sentir. Garante-me que vai telefonar à rapariga loira, que tem que protegê-la em vez de consumi-la, que não podemos ser assim, tão vulneráveis aos instintos:
“Mas, sabes, ontem era apenas aquilo que lhe queria fazer.”
Se fechares os olhos
Esta manhã é tão boa para a humanidade. Encontro crianças em Central Park e os baloiços não magoam ninguém. Continuo a descobrir os velhos sentados nos degraus dos prédios, fumando cachimbos, ocupados em sintonizar os rádios a pilhas. Ouvem-se menos ambulâncias e os táxis esquecem as buzinas. O ar condicionado melhora a leitura de qualquer jornal. Nesta cidade, há sempre uma mulher bonita que nos responde com um sorriso.
Alguém me telefona para dizer que leu um texto que escrevi e que não gostou, que há coisas estranhas e desconfortáveis naquela história, que já há desgraças a mais no planeta para as pessoas perderem tempo a lerem as misérias da condição humana.
Ligo a televisão e vejo as mesmas imagens, as crianças coxas, os decepados, as dentadas das bombas nos edifícios. Deixo as imagens passarem, acompanhadas por uma música cinematográfica. A dor transformou-se em entretenimento para os que vivem o mundo a partir do sofá.
Escrevo uma resposta rápida à pessoa que me telefonou, como se lhe enviasse um telegrama:
“Se fechares os olhos e apagares todos os aparelhos de comunicação, se
permaneceres nos parques onde as crianças crescem, esta será sempre uma
boa manhã para a humanidade. Mas apenas se fechares os olhos.”
Esta manhã é tão boa para a humanidade. Encontro crianças em Central Park e os baloiços não magoam ninguém. Continuo a descobrir os velhos sentados nos degraus dos prédios, fumando cachimbos, ocupados em sintonizar os rádios a pilhas. Ouvem-se menos ambulâncias e os táxis esquecem as buzinas. O ar condicionado melhora a leitura de qualquer jornal. Nesta cidade, há sempre uma mulher bonita que nos responde com um sorriso.
Alguém me telefona para dizer que leu um texto que escrevi e que não gostou, que há coisas estranhas e desconfortáveis naquela história, que já há desgraças a mais no planeta para as pessoas perderem tempo a lerem as misérias da condição humana.
Ligo a televisão e vejo as mesmas imagens, as crianças coxas, os decepados, as dentadas das bombas nos edifícios. Deixo as imagens passarem, acompanhadas por uma música cinematográfica. A dor transformou-se em entretenimento para os que vivem o mundo a partir do sofá.
Escrevo uma resposta rápida à pessoa que me telefonou, como se lhe enviasse um telegrama:
“Se fechares os olhos e apagares todos os aparelhos de comunicação, se
permaneceres nos parques onde as crianças crescem, esta será sempre uma
boa manhã para a humanidade. Mas apenas se fechares os olhos.”