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terça-feira, setembro 30, 2003

West Side Highway, 4:13 am/ 4:21 am

O carro fica a trabalhar. As portas estão abertas e as colunas emitem a música que começa a propagar-se por toda a rua. Entramos na loja. O cigarro de erva, entre o polegar e o indicador de Pete, continua aceso. O empregado de bigode, com a pele escura, admira-nos pelos ecrãs. As câmaras não nos abandonam. Somos perigosos. Para este homem, tão pequeno, que fala a minha língua com sotaque, nós somos a decadência que poderá contaminar-lhe os filhos, os valores e o negócio. Este homem detesta os nossos cabelos loiros, a independência financeira da minha mãe, o dinheiro que o meu pai gasta nas sessões de massagem. Vejo as raparigas, nossas amigas, sem cor, num dos ecrãs. Retiram do frigorífico caixas de cerveja. Pete abre chocolates e morde-os apenas uma vez. Depois volta a colocá-los na prateleira. Passa-me o cigarro de erva e, ao mesmo tempo que olha para o homem atrás do balcão, começa a mijar na bancada de fruta. As raparigas correm para o carro. Mesmo contaminadas pelo álcool serão sempre muito mais bonitas do que as filhas do empregado da loja. Usam perfumes, passam cremes na cara, em redor dos olhos, eliminam todos os pêlos abaixo da linha das sobrancelhas. É no momento em que Jane cai, partindo algumas garrafas de cerveja, iniciando um riso descontrolado, que me imagino abraçado ao seu corpo, debaixo do lençóis, esperando o sono. Vou beijá-la na boca esta noite.

Com a janela do carro aberta, Pete passa junto do empregado que tem uma pistola numa mão e um telefone na outra. Cospe-lhe na cara e apaga os faróis para que não se descubra a matrícula. As balas são disparadas para o céu e rimo-nos, encostando a cabeça aos joelhos. Entramos na auto-estrada e Jane, mesmo ao meu lado, no banco traseiro, diz qualquer coisa sobre a beleza do rio, e da costa, e dos prédios. Depois abre os lábios e entorna metade de uma garrafa de cerveja na boca. Encostadas a Jane, viajam outras raparigas. Pete conduz um dos carros da família, e ao lado, com a cabeça a bater no vidro, está mais alguém. Pete fecha os olhos e tira as mãos do volante, tem outro cigarro de erva nos lábios e agarra nos cabelos de uma das raparigas. Com os dedos, pressiona-lhe os maxilares e, quando consegue abrir-lhe a boca, passa-lhe o fumo usado para os pulmões. Um pneu bate na berma, o volante movimenta-se, estamos a apontar para o rio. O nosso condutor continua de olhos fechados, um táxi buzina, até que Pete, controlando o carro, move o dedo grande devagar, deixando os outros dedos imóveis, a mão como se flutuasse, fora da janela, a apontar para o planeta.

Ordeno a Pete que aumente a velocidade e abro a minha janela. Espreito sobre banco para lhe ver a perna empurrando o pedal. Procuro o ponteiro, cada vez mais rápido, a rodar sobre os números. Quando chegarmos a casa da Jane, vamos sentar-nos no sofás, deixar cair os sapatos no chão, entrelaçar as pernas, partilhar garrafas. Vamos rir-nos até que nos doam os músculos da cara e desenvolver ideias geniais. Vamos ainda atirar objectos de vidro pela janela.

No carro, a esta velocidade, ou apenas fechados na casa de Jane, nada mais me poderá interessar. Tudo o resto é tédio. A destruição é única resposta para uma ordem que não procuro. Não quero ser obrigado a ter piedade do empregado da loja e da pobreza dos seus filhos deformados e com roupas sujas. Não quero ver o meu pai, pela manhã, apresentando um fato escuro, sem qualquer linha na lapela, ou sequer assistir a programas de televisão que elogiam os medíocres. A vida de todas essas pessoas é inútil. E apenas o dinheiro que a minha mãe me providencia, todos os meses, poderá ser um investimento seguro. Eu sou inteligente, corajoso, bonito, musculado. E serei assim para sempre. Muitos se lembrarão de mim. Mas ninguém recordará os que nem sabem comer à mesa, os que dormem na rua, os que decidem envelhecer.

A língua de Jane entra nos meus lábios. Fecho os olhos e escuto os carros, no outro lado da estrada, sempre que atravessam a nossa velocidade. Beijamo-nos e começo a ficar enjoado. Imagino os postes de iluminação pública a rodarem à minha volta. Mas é Jane quem se afasta. Observo-a com uma mão cobrindo a boca, procurando a janela. Por entre os dedos saem-lhe fios de líquido branco que me sujam as calças. Agarro-lhe nos cabelos porque Jane não consegue segurar o pescoço. Procuro vomitar também, mas levanto a cabeça e escuto um estrondo, um objecto com pêlo estilhaça o pára-brisas, volto-me para trás, era um animal, o carro embate no pneu de um camião e começa a rodar. A pessoa que viaja no banco da frente cai para cima de Pete, as raparigas gritam, não sinto a pressão do cinto de segurança no peito, um carro apoxima-se, vai bater-nos, choque frontal, a música pára de sair das colunas, escuto metal e vidro, estamos ao contrário, acho que de cabeça para baixo, sinto um cotovelo espetar-se entre as minhas costelas, a língua procura os dentes da frente, não encontro nada, Pete não está dentro do carro, continuamos a deslizar no asfalto, as rodas do camião estão perto da minha cara, mais perto, e

segunda-feira, setembro 29, 2003

Manual de engate para homens que não choram, por Joe Vincenzo

“Mesmo que nunca testemunhasse as vitórias do meu pai, sabia que ele chegava a casa com o mesmo sorriso dos vencedores de um Grande Prémio. O meu pai era um homem que vivia depressa entre os outros homens, mas que ganhava sempre. O meu pai era o que as mulheres queriam. E até poderia ter sido um actor famoso, num cartaz, na rua mais movimentada da cidade, anunciando-se, com um cotovelo no bar, um sorriso, aquele sorriso, puxando um canto da boca para cima como a prometer-lhes o que elas nunca haviam provado.”

“Houve mulheres que dormiram comigo e que quiseram ser minhas mães, irmãs, ou amigas. Mulheres que me quiseram explicar que eu sou o que sou por causa do meu pai. Mas não. A minha mãe morreu, ou fugiu. No entanto, o meu pai não era homem para contar coisas que magoassem, e não havia sequer fotografias lá em casa. Nunca precisei de uma mãe substituta. Não tenho irmãs, apenas irmãos. E não quero mais família. A psicologia, a interpretação da personalidade, é para os fracos, e se eu gosto de mulheres não é porque a minha mãe nunca existiu, ou porque o meu pai gostava de mulheres, mas apenas porque preciso, porque quero ganhar, e porque penso muito em mulheres, em sexo com mulheres. Não dá dinheiro, mas poderia ser uma profissão.”

“Não existem regras ou sequer segredos para vencer. Muitas vezes é apenas improvisação. Mas, tal como um desportista profissional, a prática prepara-nos para o imprevisto. Entramos num bar e olhamos em redor, estudamos a disposição das pessoas, procuramos apenas o que interessa, apagamos a presença dos outros. Mesmo ali, está um grupo de loiras, sotaque estrangeiro, risos para se ouvirem. Estão em pé apesar de haver mesas onde se poderiam sentar. Estas mulheres querem ser vistas. Não estão aqui para enganar ninguém. Mais adiante, vemos duas pós-adolescentes que conversam e que movimentam as mãos para sublinhar a importância do que querem dizer. Encontram-se num espaço que lhes pertence. Sentam-se naquela mesa mas poderiam estar numa biblioteca. Não querem ouvir mais ninguém. Voltamos a olhar para as loiras.”

“O meu pai nunca nos arranjou uma mãe por empréstimo. Não levava mulheres para casa. Havia um espaço para trabalhar e outro para a família. Sentava-se no sofá da sala, enquanto os filhos brincavam, e sorria, como se as mulheres ainda estivessem de joelhos, agarrando-lhe as pernas, pedindo-lhe que ficasse. Mas o meu pai, mesmo de madrugada, regressava sempre. E antes de se deitar, garantia que os filhos estavam bem protegidos pelos cobertores.”

“Não se podem perder oportunidades. Observamos cada mulher que nos interessa. Depois voltamos a olhar para aquelas que nos corresponderam. Então, avançamos. Insisto, não se podem perder oportunidades. Não podemos esperar junto do balcão ou fingir desinteresse. E vamos ser sinceros, uma boa frase para começar uma conversa não surge sempre, nem sequer é resultado de preparação. Se estamos fracos, vazios de palavras, não podemos mostrar fragilidade. Para ostentar confiança, basta fingir que reconhecemos as nossas fraquezas. E mentir. Aproximo-me agora de uma das loiras com sotaque estrangeiro que olhou para mim mais que uma vez:

‘Eu sei que isto vai paracer ridículo, mas acho que nos conhecemos.’

“Ao assumir, sorrindo, que a minha frase não é brilhante, revelo sentido de humor, pareço seguro mas também conhecedor do meu erro, e ela sorri. Agora tenho que falar, mostrar quem sou. Se nos primeiro momentos ela não estiver concentrada em cada palavra que lhe ofereço, peço desculpa e recomeço o trabalho com outra mulher. Da mesma maneira que não se podem perder oportunidades, também não se pode desperdiçar tempo.”

“O meu pai parou de foder, aos sessenta e sete anos, por causa de um cancro. Em semanas deixou de ser um homem alto, com cabelo e ombros largos, para ser um velho encolhido, cuspindo sangue, que precisava da ajuda dos filhos para se sentar na retrete. O sorriso do meu pai desapareceu, o meu pai passou a ser aquele que chegava em último lugar numa corrida. Nem sequer podia mijar de pé. E mesmo que as mulheres aparecessem em casa, o amassem, lhe trouxessem sopa, o meu pai nunca voltaria a ser o homem que as agarrava pelas ancas e as lançava para cima de uma cama. O meu pai deixara de providenciar prazer e procurava apenas conforto. Era uma pena vê-lo assim, com mulheres segurando-lhe as mãos pálidas, quando o que queriam era sentir-lhe o tamanho do sexo entre os dedos.”

“Estou no quarto de hotel da loira com sotaque estrangeiro. Aperto o cinto e procuro as meias na alcatifa. Ela ergue o corpo, senta-se na cama, e pergunta-me por que me visto. Se começamos a foder por hábito perdemos a novidade da experiência. É como uma erecção incompleta. Se ficasse aqui, partilhando uma cama, acabaria a viver com tardes de compras, choros numa sessão de cinema, sexo calendarizado e filhos com quem gritar sempre que estragam a mobília. Os corpos gastam-se depressa. Em apenas algumas sessões passamos a conhecer os pormenores, os lugares que nos interessam, as frases que nos excitam. A unica solução para o desgaste é outro corpo.”

“Havia muitas mulheres no funeral do meu pai. Eu e os meus irmãos estávamos num lado da cova e elas do outro. Era como se pudesse ver o meu pai em cada uma delas, o que lhes dissera, os quartos de motel, um pente a deslizar no reflexo do espelho, os pés a entrar nos sapatos, e elas a pedirem que ficasse, que pelo menos dormisse na mesma cama. Eu sei que o meu tempo está contado. Que vai haver um dia em que não vou funcionar. Que vai haver uma manhã em que vou cuspir sangue e em que o médico me vai anunciar um prazo de validade. É agora que tenho que viver. Abandono o quarto, arranjo as golas da camisa diante da porta do elevador, alinho o cabelo com os próprios dedos. Entro no elevador. Num canto, entre algumas pessoas, há uma mulher que me olha. Não há nenhuma frase inédita na minha cabeça. Apenas vontade de actuar. Ela caminha agora pelo corredor. Eu aproximo-me, puxo o canto do lábio para executar um sorriso. E quando entramos na sala do pequeno-almoço, sabemos já que vamos sentar-nos na mesma mesa.”

sexta-feira, setembro 26, 2003

Se é lixo, não interessa

Em criança o tempo era muitas vezes organizado pela programação televisiva. Interrompíamos jogos em que, se um fazia de guarda-redes, o outro ocupava-se em marcar penalties. E entrávamos na sala, roupa pegada à pele, para ficarmos tardes inteiras a derreter diante do ecrã. Já na adolescência, recordo a impaciência dos meus irmãos logo que se anunciava uma noite com programas que não lhes interessavam, como se não houvesse mais nada para fazer e o tudo resto fosse monotonia, como se a noite fosse uma divisão da casa, em silêncio, sem o rumor e a electricidade estática de um ecrã. Hoje, depois de alguns anos, perdi o hábito de carregar no botão do controlo remoto assim que entro em casa.

Os portugueses são o povo – entre os países da União Europeia – que gastam mais tempo a ver televisão. Durante anos agendaram os serões e as visitas ao café consoante a duração de um episódio de uma telenovela. Os jornais, os políticos, a própria televisão – num exercício arrogante, umbiguista e promocional – não param de falar das pessoas televisivas, dos programas, da ausência de qualidade. A televisão é, muitas vezes, o tema nacional, um motivo de interesse entre famílias, o assunto que se discute, pela manhã, no escritório, enquanto se deixa cair moedas na máquina do café.

Portugal é talvez o único país novo rico que não deixa de ser pobre. Apesar dos carros que avançam nas estradas, da obsessão com os telemóveis, e da qualidade dos electrodomésticos, continuamos a ser pobres. E não me refiro apenas ao dinheiro, mas aos recursos humanos, à educação, aos interesses. Um país que passa tanto tempo a preocupar-se e a falar sobre televisão é um país atrasado. A televisão é para a maioria dos portugueses um milagre, o único entretenimento, a principal forma para aprender ou compreender o mundo. A televisão é indispensável. É tão fundamental que o Estado financia todos os anos uma empresa cancerígena que come os impostos dos contribuintes. A bem do serviço público.

A histeria com o lixo televisivo é quase uma patologia clínica. Seja na excitação manifestada pelo público sempre que estreia um novo programa, seja no estalinismo cultural e na petulância revelada por todos aqueles que gostariam de controlar o gosto dos outros. Mas lixo – seja na televisão, na literatura, ou na música – existirá sempre. O que importa são as alternativas. E, se falarmos de televisão, Portugal tem escassas alternativas. A solução não é apenas eliminar esse lixo – porque ele não vai acabar - mas antes providenciar às pessoas alternativas. Dentro e fora do ecrã. Mostrar que há coisas melhores para ver. Ou para fazer.

Os Estados Unidos serão, provavelmente, os maiores produtores de programas de televisão. Inventam e transmitem muito lixo, por vezes, o pior lixo. Mas na imensidão de canais há sempre outra coisa para escolher. Em vez do espectáculo informativo da CNN, com bandeiras americanas, banda sonora e directos inúteis, posso optar pela BBC, pela News World International – canadiana – e, se soubesse falar chinês, alemão, ou italiano, pelas estações que, em todo mundo, transmitem entretenimento e notícias. Aqui, é verdade, há muito lixo, mas existe também a possibilidade de escolha. Em Nova Iorque – ao contrário do que fazia em Lisboa – não me recordo de conversar, à mesa, com amigos, sobre o participante de um novo reality show ou sobre a absurda notícia de abertura de um telejornal.

A televisão – principalmente o lixo televisivo - não é assim tão importante. A televisão não pode ser, como é em Portugal, uma condição absoluta ou sequer necessária para a sobrevivência humana. Há muito mais coisas para fazer, há muito mais para nos preocupar. Um país pode não ser aquilo que parece ser no ecrã, mas será sempre a importância que dá a tudo o que vê na televisão.

quinta-feira, setembro 25, 2003

Toda a matéria é combustível

Apesar do eficiente trabalho de depilação e de maquilhagem, Bob continua a ser um homem debaixo das calças que lhe apertam o pénis. Mas agrada-lhe que os colegas do escritório lhe chamem Laura, em homenagem à cantora de ópera que morreu, tragicamente, quando forçava uma nota na garganta e uma veia lhe rebentou na cabeça. Bob passa as noites em bares sem luz, deslizando vestidos de noite, cantando ao ouvido de turistas casados que procuram sexo sem pagar. Por isso, demora-se, com sono, na cama, e chega atrasado, quase sempre, ao escritório.

Esta manhã, é chamado por uma assistente que lhe pergunta pelas flores. Como Bob não cumpriu, resta-lhe arrumar as fotografias, a caneca para o chá, as máscaras que comprara nas férias, num país estrangeiro, e procurar um outro emprego.

Depois de despedir Bob e de fechar a porta, a assistente imagina a cara do homem a quem vai telefonar, apertando as unhas contra um pulso. Mesmo que não o conheça, procura estar apaixonada por ele. Os dedos pressionam os botões com números. Numa outra rua, num outro edifício da cidade, o homem aproxima o telefone da cara. Está em cuecas e passa uma escova de dentes nos sapatos que tem calçados. A assistente relata-lhe o atraso das flores e explica que, dentro de minutos, chegar-lhe-á a casa um fato novo, limpo, desenhado por encomenda.

O homem desliga o telefone e escuta a campainha da porta. No lado de lá, encontra-se um mensageiro com um capacete e um porta fatos. Tem o cabide pendurado no dedo indicador. Quase que se ajoelha:

‘Ouvi falar muito de si, estou ansioso pela noite de hoje, boa sorte.’

O mensageiro regressa ao escritório, numa motorizada, a grande velocidade, desviando os joelhos dos carros mal estacionados. Apanha mais uma encomenda e avança para os estúdios de televisão. No interior do envelope, que uma jornalista recebe, e que depois abre, já sentada na retrete da casa de banho, estão dados biográficos e uma sinopse do trabalho do criador. A jornalista limpa-se, agarra no telefone portátil e, ainda de cuecas em redor dos joelhos, liga ao homem que insiste em polir os sapatos com uma escova de dentes:

‘Não se esqueça, a entrevista, sete da noite, em directo, antes da festa, estamos todos à espera de um grande acontecimento.’

A partir deste telefonema, e durante toda a tarde, o homem deixa que as pessoas conversem com a caixa de mensagens. O telefone faz-se ouvir, escutam-se pessoas que nem sequer o conhecem, felicitações em diferentes línguas, ofertas de contratos para publicitar produtos de primeira necessidade. O homem sai de casa com a escova de dentes no bolso do casaco. No passeio, recusa a limusina, escolhe o comboio. Já no interior da carruagem, encontra, no reflexo da janela, um resto de barba que não foi eliminado pela lâmina. Num dia tão importante, nenhuma mácula será autorizada. Decide, portanto, sair na estação seguinte, entrar num supermercado, e comprar lâminas e espuma de barbear. Numa casa de pública, desliza a lâmina na pele, e apesar da brevidade da tarefa, faz um corte junto do queixo. Para estancar o sangue, utiliza uma tira de papel higiénico.

Volta a entrar no comboio e, quando chega à estação onde deveria sair, o homem permanece diante das portas automáticas, esperando que se voltem a fechar. No estúdios de televisão aguardam-no, as flores chegaram, e as pessoas que nem sequer lhe conhecem a cara, a voz, o talento, mas que já leram artigos de jornal sobre o mistério do seu trabalho, vestem-se agora com roupas que servirão para impressionar os outros convidados da festa.

O homem tem apenas dezanove anos e está dobrado sobre os próprios pés, passando a escova de dentes nos sapatos. Há um cheiro intenso, que parece escorrer nas paredes que o rodeiam. O homem – afinal um rapaz – levanta-se e sai para a rua, ficando diante do armazém onde deveria realizar-se a festa e onde se encontra o seu trabalho. Todos os empregados estão à sua volta, não conseguem reagir, olham-no com admiração. Os garrafões que continham gasolina estão vazios. Depois há a cabeça de um fósforo que explode. O fogo inicia-se e tudo arde. Esta noite ninguém chegará a testemunhar o seu verdadeiro talento.

Em casa, Bob, vestido como Laura, abre a boca e leva a mão ao peito diante das imagens em chamas que presencia em directo no ecrã. A jornalista espera, sentada numa cadeira, debaixo das luzes do estúdio, recebendo instruções por um auricular. A assistente masturba-se quando as câmaras dos helicópteros apanham o corpo do rapaz em movimento, caminhando para longe do fogo. O número de espectadores diante de aparelhos de televisão não pára de crescer.

Preparado para começar tudo de novo, em silêncio, e longe desta cidade, o rapaz avança, em câmara lenta, com um fio de papel higiénico preso no queixo e manchado de sangue. Mas os sapatos brilham, e os braços abrem-se. Depois, o corpo desaparece numa esquina. Não volta a aparecer. Especula-se, agora, em programas de informação, que, antes do incêndio, o rapaz enviou um bilhete para casa dos pais. No papel encontrava-se apenas esta frase:

“Sou eu quem decido o que vocês vão ver e nunca o contrário.”



Post Scriptum - Aqui ao lado, na mesma cidade, até poderíamos ser vizinhos. A Terrivel Verdade.

terça-feira, setembro 23, 2003

A geração perdida

Assim que cheguei a Nova Iorque, para viver, passei uma semana a fazer câmbios dentro da cabeça, nos corredores de um supermercado, para regressar a casa, sem sacos na mão. Eu já sabia que esta era uma das cidades mais dispendiosas do planeta, por vezes obscena. Mas não conseguia reagir quando encontrava uma caixa de plástico, mínima, com pedaços de ananás, que custava muito mais que o fruto inteiro num mercado de Lisboa. Depois, desisti, esqueci a moeda nacional, comecei a pensar em dólares e a fazer sacrifícios para conseguir pagar a renda. Nova Iorque é a pior cidade do mundo para não ter dinheiro. Há muito para ver, fazer, experimentar. Acontece que eu vim para Nova Iorque sem depender de ninguém, por vontade própria, sem querer ajuda e sem o objectivo de trabalhar para o Estado português.

Já os estagiários da missão portuguesa nas Nações Unidas, que estão sob a tutela do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e que estão a prestar um serviço ao país, não recebem qualquer salário para trabalharem em Nova Iorque. Diz quem sabe que há muitos países que também não pagam aos estagiários, como se um erro cometido muitas vezes justificasse a falta. Parece que são os países escandinavos que mais cumprem. Não admira que eles estejam entre os mais civilizados. É errado, em qualquer situação, não pagar a alguém pelo trabalho que esse alguém executa. É errado querer fazer diplomacia de cuecas.

Em Nova Iorque, é quase impossível arranjar um quarto – repito, um quarto, não uma casa – por menos de 700 Euros. O passe de metro, para uma semana, é mais caro que o passe mensal em Lisboa. O dinheiro que se gasta para comprar um iogurte, num supermercado de Manhattan, chegaria para levar para casa três iogurtes em Portugal.

Por isso, um estagiário dependerá sempre da família, das poupanças, nunca de uma bolsa, nem de um investimento do Estado, apesar de trabalhar para o Estado. Se há um rapaz, excelente aluno, brilhante profissional, que tem a má sorte de ter pais que trabalham na função pública, que descontam os impostos na fonte, lá se vai a oportunidade de aprender nas Nações Unidas. O Estado português é estúpido, porque não sabe que – em qualquer negócio – é preciso um investimento para obter resultados, mesmo que seja a longo prazo. Uma vez que o Presidente da República, o Primeiro Ministro, e dois ministros, estão em Nova Iorque, para participarem na Assembleia Geral das Nações Unidas, gostaria de poder perguntar-lhes por que é que os estagiários não recebem dinheiro pelo trabalho que produzem.

Acho que a diplomacia é importante. Eu não quero que os governantes do meu país cheguem de bicicleta a um encontro com um chefe de Estado estrangeiro. Não os quero sozinhos, mal vestidos, esquecidos do protocolo. Mas questiono-me sobre a necessidade de uma comitiva de 34 pessoas, hospedada, durante três dias, em dois dos mais caros hotéis de Nova Iorque. E questiono-me se será justo – não, não é demagogia – que o primeiro ministro traga o fotógrafo pessoal, para dormir nos quartos do Four Seasons, onde a diária é de cerca de 500 Euros. Se estamos em fase de redução de gastos, então é para todos. É uma questão muito simples. Não se pode exigir aos outros aquilo que não cumprimos.

O problema dos nossos políticos é a vontade do imediato, que se manifesta, entre outras coisas, no eleitoralismo. Em Portugal, não existe investigação nas faculdades, as bolsas para estudar no estrangeiro são ridículas – há uns anos, entre 600 estudantes estrangeiros a estudar em Murcia, Espanha, os únicos que não tinham apoios eram os portugueses.

E o imediatismo começa muito cedo, nos centros de estupidificação e formação de mau carácter que são as juventudes partidárias - eu passei algumas semanas com eles, sei o que digo. Aos vinte anos, quando deviam pensar em aprender alguma coisa, os rapazes e raparigas já andam a organizar eleições, a negociar lugares, a traírem amizades. Seria interessante que os partidos agarrassem no dinheiro ilegal que recebem das companhias farmacêuticas ou das empresas de construção, e em vez de gastar tudo em autocolantes, apostassem na educação dos seus futuros políticos, os ajudassem a estudar no estrangeiro, ou a estagiar nas Nações Unidas. Mas isso dá muito trabalho, não é para já, não traz estatuto, dinheiro, nem poder, agora, neste momento, que é quando lhes interessa.

segunda-feira, setembro 22, 2003

Quero ser como tu

Talvez seja a qualidade dos protagonistas ou a beleza do enredo, mas o cinema costuma ser mais interessante que uma vida normal. É por isso que hoje – após muitos anos a pensar numa carreira de pugilista, rebelde, justiceiro, solitário, ou chefe do crime organizado – pondero ser apenas um homem que envelhece, estrela de Hollywood, perdido em Tóquio, mas que consegue fazer sorrir uma mulher mais nova. Eu quero ser Bill Murray, em Lost in Translation, o segundo filme de Sofia Coppola.

Após uma adolescência a imitar personagens musculadas, intelectuais sedutores, ou polícias que acabam suavizados por mulheres bonitas, escolho ser agora um homem cuja cara no espelho começa a pesar, uma cara que é uma coisa qualquer menos a cara que já foi antes. Sou esse homem que não consegue dormir, longe de casa, e que descobre o silêncio insustentável quando é ignorado pelo ruído das ruas de Tóquio. A minha mulher é uma voz no telefone, também distante, que se preocupa com a escolha da alcatifa para uma das divisões da casa. A minha carreira é filmar anúncios de whisky japonês com pessoas que nem sequer falam a minha língua. E no entanto, enquanto fumo charutos amassados e me embebedo, aparece essa miúda loira, os lábios espessos, os olhos tão tristes. Eu quero estar hoje num elevador, em Tóquio, e ver Scarlett Johansson que me sorri entre japoneses que apenas olham em frente, enquanto eu olho para ela.

O que Sofia Coppola conseguiu fazer foi um filme onde eu quero estar. Como quero estar deitado, sobre a colcha, vestido, conversando com Scarlett Johansson enquanto o sono nos vai comendo as ideias e demorando as palavras. Quero tocar-lhe no pé magoado e apagar, como apagamos tantas vezes por causa do sono, a meio de uma conversa. O que Sofia Coppola me ofereceu foi um filme que me faz egoísta, que quero apenas para mim, como se fosse a minha vida. Lost in Translation consegue beleza e significado sempre que alguém permanece em silêncio; revela o humor que sempre quisemos mostrar a quem gostamos; é verdadeiro, sincero, e tão bem feito que me esqueci de procurar as costuras do enredo. Cada cena, cada detalhe – assim devem ser os filmes – não são apenas um capricho da realizadora em busca da beleza das imagens, mas um momento decisivo para contar a história que se quer contar.

Vou lembrar-me também de uma sala de cinema, em Brooklyn, construída num prédio de habitação, onde os estreitos corredores, e as portas – antes eram quartos, cozinhas, casas de banho – mostram as estrelas de cinema pintadas pela mão de algum artista amador. Há ainda a fotografia de James Dean, as golas do casaco levantadas e o cigarro na boca apontado à desolação da rua onde, com toda a certeza, vai chover. Gostaria de ter entrado no mesmo cinema, e repetir tudo outra vez, pois essa seria a forma mais aproximada de ser eu o protagonista do filme. Nos dias que se seguiram, ainda hoje, quero estar sentado diante de Scarlett Johasson, num restaurante, e ser capaz de a fazer sorrir, saber que sou eu que me esqueço de tudo, longe, em Tóquio, e entregá-la ao quarto de hotel sem ter a certeza se, alguma destas noites, antes de regressar a Los Angeles, vou ter coragem para a beijar.

sexta-feira, setembro 19, 2003

All the way from China

Mesmo que não se esqueça de todas as tradições familiares, Xinyu Ling sabe que o dinheiro é mais universal que qualquer passado. E é por isso que viaja pelo mundo, apenas visitando os pais e os irmãos, nos subúrbios de Nova Iorque, quando se comemora um aniversário.

Durante as viagens de negócios guarda sempre uma tarde para comprar uma mala. É nessa mala que transporta os produtos de luxo que descobriu em revistas. A casa de Xinyu Ling é uma exposição permanente de objectos caros, exclusivos, e vendidos em diferentes capitais do planeta. As mulheres que lá dormem podem escolher o que quiserem antes de abandonarem o apartamento. Sentado no sofá, Xinyu Ling começa a pensar como poderá substituir aquilo que acabou de oferecer, seguro de que os objectos são a forma mais competente para permanecer na memória dos outros.

Dias antes de visitar os pais, começa a programar uma refeição. Os ingredientes, a sequência dos pratos, o vinho, tudo é discutido com especialistas. São contratados cozinheiros e empregados de mesa. Xinyu Ling come sempre sozinho, e depois entra num carro com motorista para jantar com a família.

Já diante da comida chinesa, confessa um inesperado desconforto no estômago, empurra as tigelas de porcelana com os dedos e pensa no que irá fazer no dia seguinte. Nestes encontros familiares, Xinyu Ling é um homem que está sempre em outro lugar, um aluno desatento que espera o momento de regressar a casa.

É o filho mais novo, nasceu no Estados Unidos e estudou em Harvard. É o único irmão que não serviu à mesa nos restaurantes do pai – um homem com tamanho de criança que fugiu da China num barco e que demorou meses, passando pela América do Sul, até ser lançado ao mar, na costa da Califórnia. Nas fotografias, na casa da família, Xinyu Ling aparece sempre de fato, gravata, as mãos diante do corpo, apresentando a postura de um homem brilhante. O orgulho de uma geração.

Pela primeira vez, há alguns meses, Xinyu Ling visitou a China e voltou a conversar num idioma que evitava desde criança. Se os pais lhe falavam em cantonês, respondia com um inglês de televisão, atirando-lhes expressões que apanhava em filmes e que repetia vezes sem conta para parecer mais americano. Na China, encontrou-se com homens de negócios, assinou contractos, conseguiu mais dinheiro. A empresa onde trabalha vai conquistar o mercado asiático.

A pedido do pai, visitou a campa de um primo que foi condenado à morte, acusado de roubar e falsificar documentos. A polícia chinesa assegurou ao tribunal que o rapaz de dezanove anos pretendia fugir para os Estados Unidos e que roubara passaportes a turistas que procuravam casas de ópio. No dia 9 de Janeiro de 1993 foram sentenciados à morte 356 presos. Entre os 62 que foram executados nesse mesmo dia, com um tiro na nuca, numa praça pública, estava o primo de Xinyu Ling.

Depois de caminhar pelo cemitério, sem encontrar a campa, e como ainda não comprara nenhuma mala de viagem, Xinyu Ling apressou-se a entregar um envelope com dinheiro à família. Diante da pobreza que acabara de conhecer, continuava a ser alguém que queria estar num outro lugar. Havia pessoas mais importantes a quem apertar a mão. A lógica da solidariedade, de acordo com Xinyu Ling, funciona através do dinheiro. Quanto mais dinheiro conseguir nos negócios com a China, mais poderá enviar, por correio - nunca por mão própria - aos familiares indigentes. A distância também pode ser felicidade.

Até hoje, Xinyu Ling nunca mais voltou à China, mas os negócios com o governo chinês garantiram-lhe um prémio monetário no final do ano. Quando lhe perguntei o que mais gostara na visita à China, respondeu-me que não se lembrava. Usou a mesma resposta quando procurei saber o nome do primo que morreu no momento em que uma bala lhe fez explodir o cérebro.

quinta-feira, setembro 18, 2003

Curta biografia de um desconhecido famoso

1.
O rapaz chegou à cidade para ser grande. Mas apenas encontrou empregos que lhe custavam cortes nas mãos e a vontade de dormir sempre que abria a porta do apartamento. Continuava a escrever e a preparar personagens diante do espelho da casa de banho. E acreditava que o anonimato e a pobreza seriam períodos inevitáveis no percurso do artista para a fama.

Durante o dia enfiava-se dentro da pele de um animal e distribuia panfletos à porta de uma loja de brinquedos. Escolheu este emprego porque mantinha a cara escondida. Mesmo sabendo que seria grande, enorme, a vergonha de ser ninguém obrigava-o a evitar as pessoas altas, bonitas, com dinheiro, ou com sucesso. Trabalhava ainda como ajudante num talho, fez de figurante em filmes pornográficos, foi convidado, por um caçador de corpos, para se mostrar no bar de um hotel de luxo. No contrato verbal, constavam três noites de trabalho por semana, um fato, algumas camisas, e um par de sapatos, tal como a obrigação de sorrir às mulheres mais velhas, a necessidade de levá-las a pagar bebidas.

Ceta noite, enquanto esperava para entrar na casa de banho, viu a mulher que começava a acariciar o tornozelo com a biqueira do sapato. Essa era uma das mensagens que o rapaz aprendera no bar, um sinal fácil, um chamamento que era repetido todas as noites por pessoas diferentes. O rapaz aproximou-se e uma das coxas da mulher apareceu debaixo da saia, atravessou o tecido, procurou acomodar-se nas pernas do rapaz. Era a primeira vez que ele tinha uma erecção, durante o horário de serviço, sem trocar um beijo ou sentir um mamilo a crescer entre os dentes. Nessa noite, não dormiria em casa. No terraço de um prédio, a mulher abriu as pernas e depositou-as sobre os ombros do rapaz. A barba acariciou a pele dos joelhos, subiu até ao umbigo onde o queixo descansou. Antes que o rapaz abrisse a boca, a mulher perguntou:

“Fazes isto a todas as mulheres que acabas de conhecer?”

O rapaz colou a boca ao púbis sem pêlos:

“Não.”

E quando a língua lhe tocou pela primeira vez ela assumiu que há mentiras que se podem aceitar.

2.

Foi a mulher que lhe ensinou que a fidelidade mais longa se consegue através do sexo. Que a intensidade das pessoas que fodem com o corpo todo nunca se esgota, mesmo depois da distância, do tempo, do envelhecimento da pele. Um dia – ela dizia-o sem a arrogância de alguns professores – o rapaz iria entender tudo o que ela lhe começava a mostrar.

A mulher tinha dinheiro, era importante, era mesmo grande no meio editorial de Nova Iorque. Ele queria ser actor, guionista, realizador. E trabalhava como vendedor de produtos de limpeza ou entalava convites para discotecas nos pára-brisas dos carros. Mesmo que vivesse no apartamento da mulher, continuava a escrever à mão e nunca aceitou que ela lhe pagasse as contas.

Numa noite em que saíram com amigos, o rapaz não tinha dinheiro para comprar uma bebida. Recusou o cartão de crédito da mulher e quando um copo com gelo e whiskey apareceu na mesa, o rapaz levantou-se e caminhou para casa, desviou-se dos táxis, evitou os autocarros e os comboios. Tinha fome mas não queria tocar em nada que estivesse no frigorífico ou nos armários do apartamento. Deitou-se com raiva, desprezando tudo o que a mulher conseguira, as roupas, os jantares, as viagens, e as noites de álcool. Ele sabia que seria grande, enorme, e que o dinheiro nunca poderia competir com a necessidade de expor o seu génio. Quando a mulher entrou em casa, ele levantou-se e foi para o sofá. Custava-lhe viver com uma mulher de quem não gostava apenas para não pagar renda. Sentiu, pela primeira vez, que também tinha um preço.

3.

Na noite em que o rapaz vendeu um guião aos estúdios, apareceram algumas pessoas na casa da mulher. No fim da noite, restava apenas um actriz, nova, bêbeda e descalça. O rapaz levantou-se a agarrou na mão da mulher com quem vivia, levou-lhe os dedos aos lábios da actriz, molhou-os na língua e empurrou-os para os mamilos. Depois, começou a despir a actriz, beijou-a. Quando olhou em redor, a mulher já não estava na sala. Mas o rapaz continuou.

Na manhã seguinte a casa não tinha ninguém. O rapaz acordou com o ruído da fechadura. A mulher entrou na sala e disse-lhe que iria viajar, mas que ele poderia ficar no apartamento. O rapaz, sofrendo da carência que vem agarrada à sobriedade, disse-lhe que, afinal, gostava dela. A mulher explicou-lhe que o amor não se pode adiar e que fora isso que ele fizera durante os meses em que estiveram juntos. O amor também precisava de um tempo exacto para acontecer. Tinha um prazo de validade.

“Acabei a minha missão. Amei-te e consegui vender o teu guião. Fiz-te crescer. O meu trabalho contigo acaba agora.”

Encontraram-se anos mais tarde numa praia da Califórnia. O rapaz, grande, enorme, um homem de sucesso, passeava sozinho, com um bloco de notas apertado nos dedos. A mulher, como sempre, como nos filmes que ele escrevera, apareceu com uma criança ao colo e outra pela mão. Estavam ambos com a pele mais gasta e os músculos menos tonificados. Cumprimentaram-se, o homem deixou ficar a mão na cintura depois de beijar a mulher na cara. Como na primeira noite no hotel, sentiu-se a crescer, uma erecção que marcava o tecido dos calções de banho. Mesmo diante das crianças, ele perguntou-lhe se ela queria ir para a cama dele, ficava perto, junto da praia. Ela respondeu que era casada. Antes de se despedir, porém, ela contou-lhe que, por vezes, quando beijava o marido, imaginava o rapaz, pequeno, inseguro, mas certo do seu génio. O mesmo rapaz que, mesmo sem saber, conseguira produzir amor de cada vez que estavam juntos no chão, com o corpo todo.

terça-feira, setembro 16, 2003

Barbie says fuck you

A grande diferença entre uma criança saudita e uma criança portuguesa, americana ou espanhola, é que a criança saudita, enquanto cresce, terá sempre menos escolhas a fazer. As proibições que lhe serão impostas reduzir-lhe-ão a capacidade para decidir, pensar ou actuar. Ela está entregue às palavras de um profeta, imaginadas, há muitos séculos, na desolação de um deserto. E será educada com medo, numa sociedade de ódio, onde a imposição de uma moral substitui a liberdade de expressão.

Essa criança nunca poderá brincar com uma Barbie porque a boneca é, de acordo com a polícia dos costumes, uma tentativa de conquista protagonizada pelos inimigos do Islão. Uma boneca que usa saias, solteira, que até pode guiar um carro, é uma aberração para os misóginos islâmicos.

A Autoridade Saudita para a Promoção da Virtude e Prevenção dos Vícios proibiu a venda de Barbies, acusando a “Boneca Judia” de representar a decadência do Ocidente e de corromper as crianças. A mesma Autoridade que elimina cartões para o Dia dos Namorados, discos, fragrâncias, porque qualquer mulher que use perfume é uma puta, sem honra ou moral. Mas a Barbie nunca matou ninguém, enquanto que o governo saudita, por exemplo, mandou arrancar os olhos, num hospital, a um homem que atacou outro com ácido.

E o Ocidente explica que a Arábia Saudita é uma porta de entendimento para o mundo islâmico, mesmo que, nesse país, a sodomia ou a feitiçaria sejam punidas com decapitação. Porque a Arábia Saudita é provavelmente um dos países mais hipócritas do planeta. Corta as mãos e os pés aos ladrões, condena travestis a seis anos de prisão e a duas mil e seiscentas chicotadas. Prende mulheres por andarem, na rua, sem a companhia do marido. No entanto, apresenta-se à comunidade internacional como a ponte de conciliação entre culturas distintas. Talvez seja, mas apenas porque as classes dirigentes sauditas experimentam o que há de mais conveniente em ambos os lados do mundo. Passam férias em Puerto Banús onde se embebedam em discotecas e compram prostitutas – eu vi, eu estive lá. Fazem compras em Nova Iorque, estudam em Bruxelas, compram apartamentos de luxo em Londres, exibem os mesmos comportamentos que a lei islâmica considera viciosos e que são severamente punidos no país onde nasceram.

A Arábia Saudita não é, nem poderá ser, uma solução para um conflito de culturas. As autoridades, o rei, e todos os príncipes proxenetas, a viver à custa do petróleo, proíbem na sua terra aquilo que consomem no estrangeiro e no interior dos palácios. Como todos os puritanos, são falsos, utilizando uma tradição – criminosa – e uma prática religiosa – obsoleta - para conservarem o poder. Deve ser uma condição psicológica complicada, mesmo próxima da esquizofrenia, ter que odiar o Ocidente e os inventores de um estilo de vida que depois se copia às escondidas.

O acesso de todo um povo às práticas diabólicas da cultura ocidental seria uma ameaça para os príncipes sauditas. A informação, o conhecimento, a indagação, acabariam com o monopólio da verdade e da ditadura religiosa. E essa é outra grande diferença. Os meus filhos, venham eles a ser espanhóis, americanos ou portugueses, podem crescer para contestar aquilo que os inquieta. Podem questionar e criticar, na rua, nos jornais, nas páginas da internet, a amizade diplomática do seu país com a Arábia Saudita. Não serão obrigados a comer no MacDonald’s, a comprar mobília no Ikea, ou a correr com ténis Nike. Podem, até, converter-se ao islamismo.

É por isso que prefiro correr o risco de ter uma filha que seja influenciada pela Barbie, que use maquilhagem, que inicie a vida sexual aos quinze anos. Eu sei que pode parecer cruel, mas prefiro que a minha filha possa escolher entre ser prostituta ou mudar-se para Riad, onde não poderá guiar um carro, ler revistas estrangeiras, ou andar na rua mostrando a beleza de uns ombros despidos.

segunda-feira, setembro 15, 2003

Lição de moral, na voz de Stephen B. Scott, apresentada na rua 14, ao som de “To be young is to be sad, is to be high”, de Ryan Adams

“Ontem vesti o casaco e apertei apenas um botão. Roupa acabada de estrear fornece-me sempre alguma confiança. Apanhei um táxi, não acredito em comboios. E gosto de olhar a precisão do meu reflexo na janela, mesmo antes de abrir a porta, enquanto aliso os punhos da camisa.”

“Estava numa festa na Casa da Escandinávia, Park Avenue, num terraço onde as mulheres loiras seguravam copos enrolados em guardanapos de papel. Enquanto falava comigo, deslizando os dedos na manga do meu casaco, uma actriz do sul dos Estados Unidos explicava-me que apenas estaria na cidade por uns dias e que eu era o homem mais bonito que conhecera em Nova Iorque. Disse-lhe que talvez lhe telefonasse mais tarde. Os meus amigos esperavam por mim. Havia muito mais gente para conhecer. “

“Jantámos com pessoas desconhecidas que falavam com sotaque e que comentavam os preços das casas de férias. Bebemos líquidos coloridos e fumámos cigarros. Mesmo a seguir à sobremesa apareceu o traficante. Estive na casa de banho. Tudo se tornou mais claro e não me apetecia estar no mesmo sítio. No banco traseiro de um táxi uma das mulheres abriu as pernas e colocou os sapatos no vidro que nos separava do motorista. Explicou-me todo o processo de depilação e depois montou-se no meu colo. Mas eu não tinha preservativos e empurrei-lhe o pescoço, com suavidade, para as calças que havia desapertado. Não chegámos a acabar. Ela queria mais droga antes de entrarmos num clube mal iluminado. Alguém fumava erva lá dentro e momentos depois de aspirar o fumo parecia-me que todas as mulheres me queriam beijar. Houve uma feia – sabem que não gosto de mulheres feias – que se demorou diante de mim, movendo-se como se estivesse num palco. Tudo acontecia devagar – perdi a noção de tempo e espaço – quando rodava a cabeça pela pista de dança. Não conseguia ver homens, mas apenas as mulheres sentadas nos sofás, bebendo das garrafas, roçando as mãos nas minhas coxas, quando passavam, para se aproximarem dos meus amigos.”

“Um homem de cabelo comprido empurrou um adolescente que me parecia o vocalista de um grupo pop. Os amigos do rapaz célebre apareceram e esmurraram o homem de cabelo comprido. Depois os seguranças limparam a pista de dança. Estávamos todos lá fora, à espera do combate. Mas o homem de cabelos compridos abriu a porta do carro e apareceu com um machado de cozinha. Partiu um semáforo e as janelas de uma loja. Os rapazes do grupo pop correram depressa.”

“Fomos comer, não conseguia levar o garfo à boca. Quando molhei a cara, esperando recuperar, não me reconheci no espelho, encontrei a camisa manchada de cerveja e a barba a aparecer debaixo da pele.”

“Acabámos na casa de alguém, dispondo as drogas em cima de revistas de moda e capas de discos de vinil. Dançámos. Nunca parei de beber. Junto à casa de banho, a mulher do meu amigo encostava outra mulher à parede. Esperavam a vez de entrar. Ficaram lá dentro. Não as vi sair.”

“Não me recordo de quanto dinheiro gastei, mas devia ser suficiente para comprar um sofá que vi numa loja de mobiliário e que já devia estar na minha sala.”

“Queria sexo, estava a amanhecer e era o momento de desespero, o instante em que as mulheres que nunca levaríamos para casa ganham qualidades. Queria sexo mas não conseguia falar. Encostei-me à única pessoa que estava sozinha, sobre um tapete branco, tocando o nariz com o polegar e bebendo vinho por uma palhinha. Apertei-lhe as mamas e procurei o fecho da saia. Beijei-a e estávamos num carrossel, tive que abrir os olhos para segurar os impulsos do estômago. Ela não quis ir para minha casa. Tentei tudo, não queria dormir sozinho.”

“Passei o dia seguinte no sofá. Os meus estados de vigília eram intermitentes. Vi alguns programas de televisão. Quando anoiteceu saí de casa para comprar comida. Entrei num restaurante, onde os únicos clientes – um par de viciados em heroína – tentavam regatear o preço de uma sopa. Meteram-me nojo, tal como a pele oleosa da empregada. Mesmo sem o meu casaco, mesmo sem tomar banho, ela sorriu-me e ofereceu-me um refrigerante. Eu disse-lhe que não vivíamos no mesmo mundo mas ela não compreendeu a velocidade do meu idioma.”

“Tinha que sair de casa. Não havia ninguém com quem falar. Não havia ninguém para me ver. Vamos recomeçar agora. Já consigo dançar outra vez. Eu conheço aquela empregada. Vou comprar cigarros. Peçam uma garrafa para a mesa. Aqui têm o cartão de crédito. Amanhã não tenho que acordar cedo. Esta noite, levo alguém comigo. Pessoas como nós, nunca podem perder.”

sexta-feira, setembro 12, 2003

Aprender a ser diferente?

Talvez tenha sido com o desespero e com a coragem de Reynaldo Arenas que primeiro compreendi o que custa crescer a amar aquilo que os outros não amam. O escritor cubano sobreviveu – com cicatrizes no lado de dentro da carne – ao regime e às pessoas que o quiseram destruir. Viveu na miséria porque era homossexual. Além do crime de gostar de homens, foi castigado pela insolência de escrever livros. Andou escondido da polícia secreta durante meses, esteve preso, produziu o mesmo livro vezes sem conta porque lhe confiscavam os manuscritos.

Depois de conseguir fugir de Cuba, acabou a viver em Nova Iorque. O que mais o fascinava neste lugar era a liberdade para conhecer estranhos e poder assumir a sexualidade que, em Havana, lhe custara viver num cela onde não cabia um corpo deitado. Mas Reynaldo Arenas sabia que não havia lado algum onde a tolerância fosse um atributo universal. Por isso dizia:

“A diferença entre o comunismo e o capitalismo é que num regime comunista levamos um pontapé no cu e calamo-nos. Num regime capitalista levamos um pontapé no cu mas podemos gritar.”

Porque reconhecia que, mesmo em Nova Iorque, haveria sempre alguém que o quisesse magoar por beijar pessoas do mesmo sexo. Com Reynaldo Arenas, talvez demasiado tarde, aprendi tudo isto, recordando sempre a crueldade natural dos homens, mesmo nas crianças.

Lembro-me, por exemplo, que acabávamos de entrar na puberdade e que éramos maus, que batíamos, que desprezávamos os mais inaptos nas aulas de ginástica. Com um novo aluno, aquele que movia as mãos de uma forma estranha e que falava com voz de rapariga, fomos muitas vezes impiedosos, gozámos, rimos, humilhámos uma condição que desconhecíamos. Há alguns meses, em Lisboa, voltei a encontrar esse aluno. Está bem de saúde, estendeu-me a mão, mas talvez não se esqueça do que lhe fizemos.

Não sei, no entanto, se ele teria preferido frequentar um liceu para homossexuais – como o que abriu esta semana em Nova Iorque. É que esta escola apenas ajuda à segregação. Compreendo que seja difícil estar no meio de alunos estúpidos, como eu fui, mas juntar adolescentes homossexuais numa escola – que talvez nem sequer tenham a sexualidade definida – é virar as costas ao confronto muitas vezes necessário. Pergunto o que acontecerá quando acabarem os anos de liceu, quando trabalharem em empresas, viverem em prédios, frequentarem supermercados, que não sejam exclusivos para homossexuais.

Este liceu acentua o estigma da diferença, quando o que importa é a igualdade. É que as pessoas – heteros, gays, alunos de escola secundária – têm que entender que, apesar de escolhas e estilos de vida às vezes distintos, a homossexualidade não é um perigo para os heterossexuais, nem um motivo de orgulho para os homossexuais. Ninguém tem que julgar, ou se orgulhar, das escolhas que se fazem no momento de levar alguém para a cama.

Quando cheguei a Nova Iorque já Reynaldo Arenas havia morrido, mas não o imagino feliz com a inauguração deste liceu, é que apreciava demasiado a sua individualidade para se diluir num grupo. E mesmo sofrendo durante anos aquilo que nem eu, nem os alunos deste liceu conhecem, sempre preferiu a coragem e a perserverança de escrever livros e de entrar numa sala, onde estavam os seus inimigos, de olhos levantados.

quinta-feira, setembro 11, 2003

O dia de hoje

Não me lembrei, esqueci-me, como me esqueço sempre dos aniversários daqueles que gosto que gostem de mim. Depois descobri que nem sequer me apetecia escrever o que todos escreverão. Uns vão falar do castigo e da justiça divina. Outros escolherão o choro, o luto à distância, recordando os que morreram no momento em que saltaram pelas janelas, comentando o absurdo e a maldade que apenas os homens conseguem. Não me apetece escrever, gostava de ser mais egoísta, sair agora de casa, parar de atacar as teclas com os dedos, deixar tudo a meio, não acabar as palavras.

Canso-me, porque são anos a viver nesta cidade, meses a assistir a reportagens televisivas, serviços religiosos, e um homem que entornava álcool na camisa, um condutor de ambulâncias que olhou para cima quando tudo começou a arder. Um ano mais tarde, à minha frente, sem me conhecer, o homem apenas iniciou o choro – eu sei o que custa chorar diante de outros homens – quando me explicou que não podia continuar a ter uma profissão onde salvasse pessoas. Descobriu que se esgotara na manhã em que a sobrinha arranhou um joelho e ele apenas conseguiu deslizar o algodão e a água oxigenada na pele:

“Não senti nada, a minha irmã teve que me dizer para abraçar a minha sobrinha, esqueci-me que curar não é apenas um procedimento clínico.”

Hoje não me apetece escrever. Hoje queria recuperar os quadros de Malevich, no Guggenheim, para me estar mais próximo da pessoa que rodou comigo, de mão dada, nas galerias do museu, explicando-me a beleza das formas. Hoje queria levar o meu amigo Pedro – há amigos que não se escolhem, que existem desde sempre – a ver as mulheres bonitas com sapatos obscenos no Meat Packing District. Hoje não queria escrever isto, não me apetece ser obrigado a olhar para o coração dos outros. Hoje queria evitar o pulsar do meu próprio sangue. Mas não deixo de pensar na cidade onde desejo viver.

Escolho visitar a Trisha no jardim de sua casa, sentada na borda de uma banheira cheia de flores, com pés de ferro, falando de Piacenza e atirando bolas amarelas a um cão que brilha sempre que salta. Depois encontro Rebecca num mercado de Chelsea. Produz a cara de menina que me levou a conhecê-la, numa festa, quando se passeava sozinha pelos corredores, apenas baton, vergonha, e olhos verdes. Passo por Sammy, sentamo-nos a ver o rio, não falamos, ficamos assim. Vejo o corpo de Fernando a imitar uma jogada de Babe Ruth, muitos anos atrás, ou a voz aproximando-se do sotaque de Brooklyn para me contar um episódio sobre criminosos. Ou ainda a menina sem cara, vestida de preto, que vi rodopiar no ringue de Rockefeller Center, dias depois de ter chegado, enquanto se escutava:

“It’s autumn in New York.”

Quanto a ti, Rachel, que vives agora longe de Nova Iorque, lembro-me de me perguntares – antecipando a minha ausência no próximo Inverno – o que me faria mais falta quando aqui não estivesse. Fiz, com toda a certeza, o mesmo exercício literário de enumeração, escolhi o facilitismo quando mencionei momentos, emoções, pessoas, porque as imagens, apesar de bonitas, ficarão sempre à flor da pele. E fechei o discurso, no balanço de um comboio, dizendo que aquilo que Nova Iorque me dá são possibilidades infinitas. Todos os dias, garanto-te, acontece algo de memorável.

Rachel, eu disse-te que não queria falar disto, que iria falhar, escolher mal as palavras, esquecer as análises políticas e as previsões sobre a vida do planeta em guerra. E, logo agora, quando queria estar sossegado, aparece um homem à porta a dizer que estão a renovar as escadas, que não posso sair de casa. Mas eu não me importo, queria estar aqui, não acender cigarros, apagar a televisão, ouvir uma ambulância, um alarme, as buzinas dos táxis, não acabar este texto, parar de escrever, saber que vivo em Nova Iorque, ou, de uma vez por todas, ir a algum lado, parar de escrever, já disse, sair para a rua, abrir a janela – não tenho escadas – e descer pelas escadas de incêndio. Mas parar de escrever mesmo, ir até lá fora, perceber que tudo está aqui, telefonar às pessoas para não me esquecer das datas de aniversário, dizer Nova Iorque, parar de

quarta-feira, setembro 10, 2003

A leste do paraíso

Em episódios onde o acaso funciona, haverá sempre versões distintas para o que aconteceu. O documento de identidade – talvez falso – garante que Alex nasceu em Moscovo, mas pode ter nascido em qualquer outro lugar da União Soviética. Cresceu a anunciar que queria ser soldado, embora se especule que tenha sido expulso do exército por vender material roubado, botas, cintos, fardas e algumas rações de combate. Trabalhou como segurança numa discoteca, logo que a música americana chegou à cidade, no tempo em que o dinheiro dos criminosos não parava de aumentar, mesmo que insistissem em gastá-lo em garrafas de champanhe, em mulheres, ou em sapatos importados.

Certa noite, o zelo de Alex rasgou a sobrancelha de um cliente bêbado e partiu-lhe várias costelas. Escolheu mal a vítima. O homem que chegou às urgências do hospital era protegido de um grupo que traficava armas. Como conhecia o castigo, Alex imitou uma fotografia que havia encontrado numa revista americana. O artigo que leu revelava um dissidente do IRA com uma perna a menos. Na perna inteira, esse homem tinha tatuado uma seta que apontava para o joelho e a frase:
“Shoot Here.”
Tal como Alex, também o irlandês delator esperou a sentença habitual nestes casos, um tiro na rótula. Por isso, fez a tatuagem a indicar o alvo. Mas no dia da execução os carrascos escolheram a outra perna.

Alex nunca foi baleado. Os donos da discoteca enviaram-no para Nova Iorque para trabalhar num restaurante, em Brighton Beach, Brooklyn, a zona dos imigrantes russos. Há quem garanta que não foi uma agulha – Alex não consumia drogas – mas antes uma noite de bebedeira e sexo sem segurança. Diagnosticaram-lhe o vírus da imunodeficiência adquirida. No dia em que a máfia russa soube da doença apareceu no restaurante e chamou-o à cave. Nestas situações, há um procedimento que se repete:

“Se queres que tomemos conta da tua família e que patrocinemos os medicamentos trabalhas para a nossa organização.”

Não foi o primeiro a aceitar. Para a máfia russa trabalham muitas pessoas doentes, desde que possam agarrar numa arma. Dizem que serviu de motorista às prostitutas nas deslocações aos apartamentos de Park Avenue. Outros afirmam que começou logo a matar. Testemunhas asseguram, num jornal, que encontraram Alex, numa esquina, escondendo qualquer coisa num camião do lixo, depois de um tiroteio onde foram executados antigos colaboradores da máfia. Outros dizem que se internou num hospital especializado em doenças infecto-contagiosas, em Pinar del Rio, Cuba. É certo, avançam ainda outros, que Alex esteja carregado de pedras, no fundo lamacento do Hudson River. A única certeza é que as promessas foram cumpridas. Os pais e as irmãs de Alex vivem agora em Moscovo, numa casa com aquecimento, onde há sempre pão fresco e garrafas de vodka com rótulos verdadeiros.

terça-feira, setembro 09, 2003

Proibido fumar. Proibido existir.

Não conheço nenhum episódio em que um homem, equipado de um cigarro, entrasse num centro comercial para iniciar um massacre. Tal como não sei de assaltantes de bancos, violadores, ou traficantes de crianças, que utilizassem cigarros na execução dos seus crimes. É que o tabaco, apesar de perigoso, pode ser evitado, utilizando apenas o bom senso. Um louco, com um cigarro, é apenas um louco, mas com uma pistola pode ser outra coisa qualquer.

É por isso que me assusto com a obsessão do Estado em eliminar o consumo de cigarros. Eu compreendo que não se fume em lugares onde se trabalha – as pessoas têm que lá estar – mas não aceito a proibição em bares, restaurantes, ou discotecas. Só lá aparece quem quer. E estou seguro que os restaurantes e bares para não fumadores teriam bastantes clientes. Eu mesmo, nos dias em que não me apetece cheirar os cigarros dos outros, estaria presente.

Depois da Califórnia e de Nova Iorque, a Irlanda decidiu proibir o fumo em bares, anunciando-se já uma tendência proibicionista na Europa. O argumento da preocupação com a saúde pública é falso e hipócrita – acabem então com os carros a gasolina, com as indústrias poluentes. Não acredito na suposta preocupação do Estado com a saúde dos cidadãos. Por natureza, o Estado sempre esteve mais ocupado em controlar a vida privada de cada um de nós.

No prefácio para a colectânea de contos de Tenesse Williams, e por causa das escolhas sexuais do dramaturgo e do medo em expô-las naquilo que escrevia, Gora Vidal explica como as classes dominantes sempre gostaram de inventar proibições de forma a castigarem aqueles que não cumprem, criando um sentimento de culpa em todos os infractores, tornando mais fácil a aceitação do seu poder:
“Sexual taboo has always been a favorite with our rulers though, today, drugs seem to be even more promising, as alcohol was in 1919 when old-time religionists prohibited it to all Americans.”
Ainda este fim-de-semana, num casamento ao ar livre, em Long Island, Nova Iorque, encontrei-me entre os fumadores receosos num recanto do jardim. A vergonha de fumar já começou.

Parece haver uma vontade de criar cidade brancas, onde as ruas seriam corredores de hospital, onde todos fariam ginástica de madrugada, comeriam legumes e limitariam o sexo à necessária continuação da espécie. Uma civilização onde ninguém fosse proprietário do seu próprio corpo.

Por momentos invoco o brilhantismo de Charlie Parker, Basquiat, Miguel Piñero, homens que se sujavam com drogas mas que encontraram, em Nova Iorque, um abrigo e um espaço de invenção para o seu génio criativo. Na civilização branca eles nunca teriam existido. Eu sei que o tabaco faz mal, eu sei que daqui a alguns anos posso arrepender-me de todos os cigarros que fumei quando me informarem que preciso de um dador de um pulmão. Mas não quero que sejam outros – ainda mais o Estado – a decidir aquilo que eu faço com o meu corpo. Eu não quero acabar com a possibilidade de haver um outro Charlie Parker, mesmo drogado, mesmo decadente, mesmo incurável, a tocar saxofone no meio das minhas noites.

segunda-feira, setembro 08, 2003

Se um dia voltares a ser feliz

Contam-me que és muito rico e que da tua casa se pode ver o rio e os barcos que chegam a Manhattan. Há modelos quase nuas que desfilam na imensidão da tua sala e que sobem para o terraço para cheirarem cocaína. Certas noites, organizas festas inspiradas nos livros do Marquês de Sade. As sobremesas sãos servidas sobre os corpos dos convidados.

Às vezes, quando as drogas te ajudam, saltas para cima de uma mesa e começas a dançar. Mas nos últimos anos foste apenas um observador oficial, não queres participar, brincas com aqueles que se aproximam de ti por causa do dinheiro, do álcool, da facilidade com depositas o pó branco numa travessa de prata. Sabes que as pessoas desejam tudo o que não seja a normalidade e, nesse instante, quando passam a ser outra coisa qualquer, podes testemunhar a sofreguidão das mulheres que apertam o sexo de desconhecidos entre os lábios, vês os homens que bebem vinho pela garrafa, estudas as jovens universitárias que se beijam na boca diante da audiência que escolheste.

Parece que és mesmo muito rico, embora te encontre na rua, caminhando com os ombros encolhidos e uns sapatos sem graxa. Dizem-me que aprecias livros e que tens saudades de uma Europa onde gostarias de ter nascido. Afinal – porque não és estúpido, nunca foste – sabes que há coisas que não podes comprar.

Pergunto por que insistes em ensaiar uma felicidade que não possuis. Alguém me diz que, como antigamente, ainda se pode morrer de desgosto. Amaste um homem, embora tivesses vergonha de amar um homem. Depois ele fugiu, ou morreu, e nunca mais quiseste ninguém.

Confessam-me ainda que és proprietário de uma impressionante colecção de obras de arte e que a garrafeira da tua casa conserva vinhos raros. Eu consigo imaginar-te diante de um quadro, próximo de uma garrafa por abrir, sozinho, nas noites em que esperas por visitas. É nessas noites que envelheces mais depressa. É nessas noites que tens que telefonar a alguém para fingir que ainda sentes alguma coisa pelos seres que existem à tua volta. E depois de tudo, quando há copos e beatas e corpos no chão da casa, regressas à tarefa de viver sozinho, mesmo que ainda acredites ser possível sorrir o sorriso dos outros.

sexta-feira, setembro 05, 2003

E se morresses agora, Paul Hill?

Mesmo que sejas fraco e que sofras de um defeito de criação, não deixo de pensar naquilo que experimentarás quando a máquina começar a trabalhar e o líquido descer por um tubo, atravessando a agulha, misturando-se no sangue e imobilizando os pulmões. Matam-te porque mataste, um jogo de consequência que me perturba, mesmo quando te oiço dizer, numa derradeira entrevista:
“Deveria haver mais pessoas a fazer o que eu fiz.”

Houve uma manhã em que acordaste para cumprir uma missão. Na porta de uma clínica, onde se fazem abortos, na Florida, disparaste para matar. O médico caiu, o guarda-costas também, a mulher do médico sobreviveu, ferida, sofrendo dessa irremediável condição que é a viuvez.
Largaste a arma e ficaste à espera. Não abandonaste a cena do crime, nunca pediste recurso nos tribunais, jamais mostraste remorsos. Querias ter a certeza que entrarias na câmara da morte, querias dizer na televisão:
“Acredito que o Estado, ao executar-me, fará de mim um mártir. Espero que outros sigam os meus passos.”
Antes de tudo isto, chegaste a ser sacerdote presbiterano, tinhas uma família e uma casa. Mas nunca revelaste arrependimento, dizendo apenas:
“É desagradável matar um ser humano.”
Como se falasses das espinhas num pedaço de peixe, ou de uma manhã de chuva no dia em que estreavas um casaco. As autoridades que te mataram receiam agora crimes idênticos. Sempre um castigo a servir de resposta a outro castigo. Porque tu mataste, Paul, aqueles que consideravas assassinos. E agora alguém vai acabar contigo, e virá sempre mais alguém, como se a morte fosse a única solução para a morte. Ficarias muito melhor dentro de uma cela, alimentado a comida de prisão, o resto da tua vida. É que, Paul, não existe em ti nada de grandioso, não construíste nada, não descobriste a cura para nenhuma doença, não me lembro de ajudares uma criança sequer no momento em que deixaste o dedo cair sobre o gatilho.

Consta que apenas mostraste emoção quando as tuas filhas te visitaram pela última vez. Antes de partires, quero apenas que imagines que uma das tuas filhas está grávida. Poderias ser avô, mas acontece que há uma malformação no feto e ela tem que abortar.
Tens aqui uma arma.

Agora, faz o que tens a fazer.

quinta-feira, setembro 04, 2003

Summer time

Por causa do calor e da humidade tudo me parece mais mais espesso e, no entanto, vejo as mulheres de vestidos de alças flutuarem sobre os passeios. Gostava que esta cidade apenas existisse no Verão, quando as ventoinhas ajudam o sono e os deveres se derretem dentro de um copo com gelo, quando acontece começarmos a voar e a conhecer outros corpos com a boca.

Nas ruas, onde o ar é denso e as pessoas tocam umas nas outras, lembro-me, de repente, de Mohamed Ali, no Zaire, o corpo resplandecente, as mãos sem luvas, bailando sozinho num ringue de treino. Lembro-me do que diziam:
“Floats like a butterfly.”
As pernas como se não tocassem no chão, uma dança sem adversário de carne, apenas ele, Mohamed Ali, voando com uma graciosidade que encontro agora nas mulheres que deslizam sobre patins, no tecido da roupa que me roça um braço, no lençol que aquelas mãos fazem voar um momento, sobre a cama, antes de repousar no colchão.

Nos degraus do meu prédio, decido que vou viajar na direcção do sul, para fugir ao Inverno, para evitar o peso dos objectos e das pessoas. Eu quero ser Ali, dançando sozinho no ringue, golpeando o ar como se o ar fosse um adversário invisível, cada vez mais leve.

Desde o céu, observo os velhos sentados nas cadeiras de lona, hispânicos sem dentes que acedem charutos e os encaixam nas bocas amarrotadas. Consigo ver o rio do meu terraço. Consigo ver como a cidade levita. Para que tudo seja perfeito, resta-me apenas assobiar Gershwin e pensar em Billie Holyday:
“Summer time and the living is easy.”
Às vezes, quando nos encontramos sozinhos no ringue, precisamos tanto dos outros, precisamos tanto de ti.

quarta-feira, setembro 03, 2003

A Invenção do Fogo

Este poderia ser um episódio onde alguém remendasse a vida, depois de ficar sem um perna, vítima de um tiro de pistola. Nestes casos de violência, o castigo acontece sempre junto ao bar, com as luzes fracas e sem uma grande audiência. Pouso o copo no balcão e mordo uma pedra de gelo quando me perguntaram:
“Entre uma Beretta 9000, calibre 40, e uma Magnum Desert Eagle, calibre 50, qual gostaria de disparar?”
A questão parece-me absurda, por isso, com a delicadeza que entrego aos desconhecidos, peço para repetirem a pergunta. Os dois amigos, chegados do sul dos Estados Unidos, acreditam que eu sei tudo sobre armas automáticas e que desde pequeno que ando aos tiros para me sentir mais seguro.

Quando lhes confesso o meu desinteresse, bem como a minha desconfiança junto de pessoas que conversam sobre armas com o mesmo entusiasmo com que alguns discutem modelos de carros, um dos homens explica-me que o filho de três anos já sabe desmontar e montar uma espingarda. Desejo-lhe felicidades, desejo que o filho nunca se mate ou mate alguém. Ele responde:
“O meu filho sabe o que está a fazer, está mais preparado do que um rapaz de dezoito anos. Eu ensinei-o, ele está protegido.”
Olho para o meu copo e penso em explicar-lhe que as crianças não têm sentido de responsabilidade porque disparam pistolas de água e se fingem de mortas, não percebem a morte, acreditam que uma carabina é um brinquedo e nada mais. Penso ensinar-lhe que uma criança de três anos nunca poderia ser julgada, num tribunal, caso trespassasse a carne de alguém depois de apertar o gatilho. Penso que temos polegares oponíveis e que caminhamos na vertical.

Penso em tudo isto e apenas tenho vontade de agarrar numa Magnum Desert Eagle e encostar-lhe o metal aos dentes, explicando que o cano que lhe magoa a boca tem doze centímetros e que o carregador leva oito balas. Talvez o informe sobre a possibilidade de lhe arrancar uma rótula. Mais tarde, confessarei que foi um acidente, que a arma disparou por azar, que lamento que tenham que lhe amputar uma perna.

E quando acabo de pensar em tudo isto, na violência dos meus dedos contra a coronha imaginária, entendo por que os homens, mesmo os que caminham direitos, mesmo os que evitam pistolas, nunca deveriam acreditar nas possibilidades de uma arma.

terça-feira, setembro 02, 2003

As mulheres com sapatos altos

Há um amigo que está de visita e que me convida para jantar. Diz-me que traz os cartões de crédito e as notas. O dinheiro é o melhor veículo de divertimento nesta cidade. É que algumas mulheres apenas de despem depois de acordado um preço.

Entramos no bar Scores como se estivéssemos num hotel de luxo. Os empregados apresentam laços e os cinzeiros aparecem nas mesas numa cidade onde já não se pode fumar. Pergunto a uma das empregadas com sandálias e saia curta como é que ainda se pode beber, ver mulheres quase nuas, e puxar de um cigarro.
“Temos licenças.”
Volto a repetir junto do meu amigo que o dinheiro é um dos melhores veículos para o divertimento nesta cidade. Ao nosso lado, uma banda rap é a prova material daquilo que acabei de dizer. Os músicos de chapéu de basebol e correntes de ouro controlam as mulheres mais bonitas e as garrafas de champanhe.

Homens casados oferecem às mulheres legítimas outras mulheres, bailarinas profissionais que se despem e que dançam, pressionando as mãos contra as coxas de quem paga. Eu e o meu amigo abusamos dos cigarros, levamos o copo à boca num constrangimento quase infantil e continuamos a dizer que não sempre que alguma delas nos propõe uma dança a pagar. Comento que este é o maior contra-senso da nossa sexualidade. Passamos a noite a dizer que não a mulheres a quem queremos dizer que sim.

Fixo-me nos sapatos de saltos e no efeito que causam nos homens. Os sapatos valem mais que a maquilhagem, que a destreza de ancas, ou que um vestido. Uma mulher que sabe dançar com estes sapatos é uma virtuosa.

Conversamos com algumas das bailarinas e compreendo agora que nenhum destes homens se poderá julgar melhor do que as mulheres que dançam sem roupa. É que o nosso facilitismo é primário e de graça. Elas, ao menos, estão a trabalhar. O meu amigo pergunta-me:
‘Casavas com alguma destas mulheres?’
‘Posso escolher?’
‘Sim’
‘Aquela loira, vestido até aos pés, sandálias que sobem pelas pernas, mamas verdadeiras.’
Entrámos num táxi sozinhos, com o álcool a prometer que voltaríamos no dia seguinte. De manhã, apenas comentámos, pormenorizadamente, a beleza das bailarinas que mais nos inquietaram. À luz do dia, sem a urgência do sexo, já não descobríamos em nós qualquer romantismo.

segunda-feira, setembro 01, 2003

O grande equívoco

Até uma certa idade – aquela em que começamos a viajar sozinhos e a pensar pela própria cabeça – sempre acreditei que os escritores eram criaturas que sofriam de uma permanente azia da alma, fumando cigarros, num quarto triste, numa cidade nostálgica, num “país de água”, como escreveu Al Berto. E se pensei tudo isto, foi apenas porque nasci nesse país aquário, onde os peixes acham que o mundo é apenas aquilo que se reflecte nas paredes de vidro.

Para mim, e para quase todos os portugueses, o país era um lugar de escritores, um espaço nebuloso, cheio de miradouros, onde os celestiais seres da escrita mostravam ao planeta a densidade, a beleza, e o talento de uma nação de criadores.

Acontece que Portugal não é, nem nunca foi, um país de escritores. E esse é um grande equívoco.

Se entrarmos numa grande livraria em Nova Iorque e numa outra, com as mesmas dimensões, em Lisboa, vamos perceber as diferenças. Olhamos para as estantes e contamos o número de grandes escritores, de diferentes línguas, no século passado. Não vale a pena sequer avançar nomes, tal como seria absurdo tentar comparar a dimensão – em população e riqueza – destes dois países. Mas essa é a questão principal, se não temos tamanho, ou obras primas suficientes, então não vale a pena termos ilusões que somos um país de escritores, porque essa mentira só serve para prolongar a nossa condição autista. Há que desfazer o engano, para depois crescer.

Recordo agora o que disse António Lobo Antunes quando uma delegação de quarenta escritores portugueses visitou um importante salão do livro:
“Nem a França tem quarenta escritores.”
O número exacto de escritores não sei, mas acredito que, se não somos um país de escritores, seremos ainda menos um país de romancistas.

A prova é que, desde a revolução, em 1974, não nasceram tantos romancistas como seria de esperar. As obras que estavam guardadas na gaveta, esperando a liberdade de expressão, quase não chegaram a aparecer. São escassos os romancistas portugueses que sabem escrever um romance, ou que conseguem contar uma história com personagens que crescem nas páginas, com conflitos, com um desenlace final.

Sofremos do provincianismo doente de um regime que durou demasiado tempo, ou talvez sejamos um país com uma literatura quase exclusivamente rural – já Cardoso Pires o dizia -, mas aquilo a que muita gente chama romances, em Portugal, é outra coisa qualquer, como prosa poética, pensamentos, impressões, ou exercícios de masturbação intelectual. Publicam-se alguns livros que são tudo menos romances. E esse é outro equívoco dentro do equívoco. É algo de desonesto para os leitores.

O problema não é se a literatura tem que ser leve ou pesada, densa, ou superficial, mas como é produzida. Não me incomodo que se escrevam livros sobre homens com fios de ouro e mulheres platinadas que passam férias nos condomínios de luxo no sul de Portugal – leiam “Super Cannes”, de J.G Ballard. Escreva-se tudo isso. No entanto, escreva-se com o profissionalismo que se deve exigir aos romancistas.

Mas também não se gastem capítulos a falar sobre as árvores, a morte, a separação, o vento a assobiar nas janelas e no largo da vila, só porque as imagens parecem bonitas quando transformadas em metáforas espessas que fecham o escritor sobre si próprio. É que escrever bem – outra vez uma referência às palavras de Lobo Antunes – não é a mesma coisa que escrever uma obra de arte. Nem tudo o que acontece na nossa vida – por mais doloroso ou belo – é susceptível de se tornar num livro.

A culpa é, também, dos editores, que não se sentam ao lado dos escritores para dizer o que está mal, para modificar, para sugerir. O trabalho de um artista não é intocável e só tem a ganhar com a opinião de alguém que perceba do ofício. Mas escrever um livro, em Portugal, ainda parece algo de fantástico, como se o escritor fosse um ser divino, levitando acima dos leitores, e a cultura – que palavra hedionda – continua a ser algo de mastigação difícil que apenas alguns julgam ter direito a comer. Eu nunca me esquecerei do que ouvi da boca do escritor Bret Easton Ellis:
“Os médicos fazem muito mais falta do que os escritores.”

No seu livro de ensaios, The Adding Machine, William S. Burroughs afirma que a seriedade é um dos atributos mais importantes no trabalho de um romancista. Não se deve escrever um livro por capricho, estatuto, ou em cima do joelho. Eu não acredito, nem quero, que todos os escritores sejam candidatos ao Nobel ou à eternidade, mas apenas que escrevam romances com seriedade, que me surpreendam, onde se entenda o trabalho, mesmo que o tema nem sempre nos apaixone. Só então deixaremos de sobreviver num país de água e seremos capazes de ver além do nosso próprio reflexo no vidro do aquário, e muito além do equívoco que ainda continuamos a ser.

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