quarta-feira, dezembro 31, 2003
New York City Blues
Antes de abrir a boca e utilizar os dentes, Gary Green admira o reflexo da própria gravata na montra de uma loja. Os dedos seguram um guardanapo que absorve pingos de gordura quando os dentes arrancam um pedaço de pão, salsicha e cebola. Mas Gary Green adia o movimento dos maxilares ao descobrir o fio cinzento que atravessa o céu, formando uma elipse, ganhando velocidade a caminho do passeio.
No andar 61 de um edifício em Water Street, o vento levanta os papéis em cima de uma mesa. Há vidros na alcatifa, e a cadeira utilizada para abrir um buraco na janela ainda tem as rodas em movimento. Durante toda a manhã, Patrick Conway apertou o tecido da cadeira, em pé, esperando uma encomenda. Várias vezes pegou no telefone – agora esmagado debaixo de um caixote do lixo – e perguntou pelo candeeiro, recordando a frustração de uma tarde a insistir com o gerente, mesmo quando lhe garantiram que o produto estava esgotado. Patrick Conway queria ser o proprietário imediato do candeeiro que aparecia num catálogo mas que só esta manhã chegou ao escritório.
Há um par de sapatos sobre a alcatifa, com espigões de metal, próprios para jogar golfe. Numa estante, cobrindo alguns livros, encontra-se a fotografia de uma família, duas crianças com fardas escolares e uma mulher com um nariz concertado por cirurgiões plásticos. Nos lábios há também uma suspeita de colagénio insuflado dentro da carne. Mais ao lado, aparecendo na ombreira da porta, uma mulher levanta as mãos e começa a gritar. Laura Pushkin é a secretária que perseguiu Patrick Conway e que se preparou, durante uma festa, e sobre os joelhos, para lhe desabotoar as calças. Mas o chefe recusou, muito menos por medo da culpa, obedecendo antes às regras que asseguram a imagem da família, ou por causa do bónus de produtividade no fim do ano, das doenças que se propagam pela saliva, da possibilidade de viagens a quartos de motel a meio da tarde.
O candeeiro ainda tem plásticos e há uma caixa de papelão no canto do escritório. Laura Pushkin procura evitar os objectos, mantém os dedos apertados contras as palmas, receando impressões digitais e a acusação de um crime. Os trabalhadores aproximam-se, entram no escritório, alguém acende o candeeiro enquanto outros procuram uma justificação, esperando encontrar um bilhete entre os papéis que flutuam e que quase atingem o chão, erguidos depois pelo vento que atravessa a janela.
Na agenda em cima da mesa está anotado o valor da dívida de Patrick Conway a uma associação clandestina. O pagamento deveria ser realizado esta tarde ou o devedor ficaria com a cara sem nariz, as mãos com menos dedos. Mas Patrick Conway não suportaria perder dinheiro, mudar de casa, menos divisões, os filhos em escolas públicas, alugar filmes de vídeo em vez de jantares em restaurantes onde mostraria o cartão de crédito, trabalhar com as mãos, pedir emprestado, atravessar os corredores de supermercado com uma máquina calculadora e escolher produtos em promoção, andar a pé, de comboio, de autocarro, experimentar a inveja ao encontrar homens de fato ou a vergonha diante de mulheres que analisam as mãos, os sapatos, a disponibilidade financeira para oferecer presentes dos homens que se apresentam em festas.
Os empregados apertam-se na porta, Laura Pushkin senta-se na alcatifa, soluçando, a maquilhagem desfaz-se nos olhos e escorre pela cara, o candeeiro, o telefone, os vidros e a cadeira, o buraco na janela e Patrick Conway atingindo o máximo de velocidade depois de parecer um lençol, uma mala de viagem, um boneco, durante todo o voo, para explodir no chão de Water Street.
Os maxilares de Gary Green voltam a accionar-se, vira as costas, um desconforto que demora o tempo de engolir e descolar um fio de cebola das gengivas. Outra vez a gravata reflectida na montra, uma nódoa de molho, o dedo a limpar a gordura. Depois reinicia o caminho, e as sirenes, as portas dos carros, as buzinas, os saltos no passeio, um assobio, o barulho da cidade que regressa de uma só vez.
Antes de abrir a boca e utilizar os dentes, Gary Green admira o reflexo da própria gravata na montra de uma loja. Os dedos seguram um guardanapo que absorve pingos de gordura quando os dentes arrancam um pedaço de pão, salsicha e cebola. Mas Gary Green adia o movimento dos maxilares ao descobrir o fio cinzento que atravessa o céu, formando uma elipse, ganhando velocidade a caminho do passeio.
No andar 61 de um edifício em Water Street, o vento levanta os papéis em cima de uma mesa. Há vidros na alcatifa, e a cadeira utilizada para abrir um buraco na janela ainda tem as rodas em movimento. Durante toda a manhã, Patrick Conway apertou o tecido da cadeira, em pé, esperando uma encomenda. Várias vezes pegou no telefone – agora esmagado debaixo de um caixote do lixo – e perguntou pelo candeeiro, recordando a frustração de uma tarde a insistir com o gerente, mesmo quando lhe garantiram que o produto estava esgotado. Patrick Conway queria ser o proprietário imediato do candeeiro que aparecia num catálogo mas que só esta manhã chegou ao escritório.
Há um par de sapatos sobre a alcatifa, com espigões de metal, próprios para jogar golfe. Numa estante, cobrindo alguns livros, encontra-se a fotografia de uma família, duas crianças com fardas escolares e uma mulher com um nariz concertado por cirurgiões plásticos. Nos lábios há também uma suspeita de colagénio insuflado dentro da carne. Mais ao lado, aparecendo na ombreira da porta, uma mulher levanta as mãos e começa a gritar. Laura Pushkin é a secretária que perseguiu Patrick Conway e que se preparou, durante uma festa, e sobre os joelhos, para lhe desabotoar as calças. Mas o chefe recusou, muito menos por medo da culpa, obedecendo antes às regras que asseguram a imagem da família, ou por causa do bónus de produtividade no fim do ano, das doenças que se propagam pela saliva, da possibilidade de viagens a quartos de motel a meio da tarde.
O candeeiro ainda tem plásticos e há uma caixa de papelão no canto do escritório. Laura Pushkin procura evitar os objectos, mantém os dedos apertados contras as palmas, receando impressões digitais e a acusação de um crime. Os trabalhadores aproximam-se, entram no escritório, alguém acende o candeeiro enquanto outros procuram uma justificação, esperando encontrar um bilhete entre os papéis que flutuam e que quase atingem o chão, erguidos depois pelo vento que atravessa a janela.
Na agenda em cima da mesa está anotado o valor da dívida de Patrick Conway a uma associação clandestina. O pagamento deveria ser realizado esta tarde ou o devedor ficaria com a cara sem nariz, as mãos com menos dedos. Mas Patrick Conway não suportaria perder dinheiro, mudar de casa, menos divisões, os filhos em escolas públicas, alugar filmes de vídeo em vez de jantares em restaurantes onde mostraria o cartão de crédito, trabalhar com as mãos, pedir emprestado, atravessar os corredores de supermercado com uma máquina calculadora e escolher produtos em promoção, andar a pé, de comboio, de autocarro, experimentar a inveja ao encontrar homens de fato ou a vergonha diante de mulheres que analisam as mãos, os sapatos, a disponibilidade financeira para oferecer presentes dos homens que se apresentam em festas.
Os empregados apertam-se na porta, Laura Pushkin senta-se na alcatifa, soluçando, a maquilhagem desfaz-se nos olhos e escorre pela cara, o candeeiro, o telefone, os vidros e a cadeira, o buraco na janela e Patrick Conway atingindo o máximo de velocidade depois de parecer um lençol, uma mala de viagem, um boneco, durante todo o voo, para explodir no chão de Water Street.
Os maxilares de Gary Green voltam a accionar-se, vira as costas, um desconforto que demora o tempo de engolir e descolar um fio de cebola das gengivas. Outra vez a gravata reflectida na montra, uma nódoa de molho, o dedo a limpar a gordura. Depois reinicia o caminho, e as sirenes, as portas dos carros, as buzinas, os saltos no passeio, um assobio, o barulho da cidade que regressa de uma só vez.
segunda-feira, dezembro 29, 2003
Sexed up
Não é o amor que interessa a B., mas antes a habilidade do outro corpo para o prazer, alguém sem preconceitos, que abocanhe, que que insulte, que grite muito, que goste de dar e receber ordens.
Esse outro corpo adormeceu no lado mais fresco da cama, onde o lençol ainda cobre o colchão. Os pulsos e os músculos de B. continuam a pulsar, os dedos dos pés libertaram uma descarga que começou no sexo e que se alastrou para o estômago e depois por todo sistema nervoso. A carne cresceu e voltou a encolher em redor dos ossos, os pulmões sossegaram, há um risco de sangue no lábio inferior que B. limpa com a língua.
A roupa e os sapatos são levantados do chão e B. veste-se na cozinha, diminuindo a velocidade dos movimentos para lhes reduzir o som. Limpa o gargalo com a palma da mão, bebe água pela garrafa e certifica-se que recolheu todos os seus vestígios pessoais no apartamento. Sempre que B. encontra um corpo virtuoso guarda uma morada, um número de telefone, qualquer referência de contacto. Mas quando os corpos – como nesta noite – apenas servem de alimento, recusa repeti-los.
Em casa, B. senta-se na cama, diante do espelho, e masturba-se, fechando os olhos para recorrer às imagens seleccionadas em outras noites, várias pessoas numa cama, uma praça pública durante a noite, ou uma varanda e crianças que espreitam, às escondidas, na janela do edifício do outro lado da rua. Antes de adormecer, abre um livro erótico, escolhe um capítulo e começa a masturbar-se, procurando sintonizar o orgasmo com o orgasmo da protagonista.
De manhã, na banheira, com a água a escorrendo na pele, atravessando o sexo, B. já não sente repulsa do corpo que conheceu na noite anterior, e começa, uma vez mais, a escolher imagens, gestos, palmadas, frases, que utiliza quando se manipula à procura de mais prazer.
Na rua, no emprego, num supermercado, B. persegue pessoas com quem se quer deitar, ou apenas ficar em pé, ou sobre a bancada de uma casa de banho. É um exercício quase sem interrupções. E mesmo o trabalho serve apenas para conseguir dinheiro e poder, é um instrumento de conquista, uma outra maneira de conhecer pessoas para consumir.
À noite, entra num lugar onde casais procuram parceiros, e abusa do álcool para eliminar o desconforto de se aproximar de estranhos. Os diálogos perdem a importância, e os jogos verbais de sedução substituem-se por um pormenor, às vezes uns óculos, as mãos, os sapatos, objectos, ou apenas linhas de carne que aparecem entre a roupa. A exigência de corpos sem imperfeições começa a desaparecer. Depois de tantas experiências, sabores e lugares, importa encontrar sempre algo de inédito, porque a repetição destrói a intensidade do prazer.
No carro de um casal, B. despe a mulher e aprecia a atenção do homem que aproveita os semáforos vermelhos para observar o espectáculo do sexo no banco traseiro. Quando tudo termina, ainda antes de chegarem a casa, B. sai do carro e corre pelo passeio sem se justificar. Continua a correr até entrar num táxi, fechar a porta e sentir as marcas da boca e das mãos mulher nas próprias pernas, na cara, espalhando-se na barriga e nos mamilos. Esta é a fuga que executa sempre após a violência, o descontrole, a luta, o triunfo e o temporário estado de graça.
Observando o taxista no retrovisor, B. puxa uma meia pela superfície da perna até alcançar a carne da coxa. Prende o cabelo e empurra os lábios contra o batôn. Não é amor que procura, uma casa, uma família, alguém que a espere ao anoitecer. Os pedaços dos outros chegam para aliviar a solidão. E enquanto aperta uma tira da cabedal na fivela dos sapatos, B. analisa as pessoas que caminham no passeio, escolhe alguém que consiga cansá-la mas que depois a deixe dormir sem se aproximar do seu corpo durante o sono.
Não é o amor que interessa a B., mas antes a habilidade do outro corpo para o prazer, alguém sem preconceitos, que abocanhe, que que insulte, que grite muito, que goste de dar e receber ordens.
Esse outro corpo adormeceu no lado mais fresco da cama, onde o lençol ainda cobre o colchão. Os pulsos e os músculos de B. continuam a pulsar, os dedos dos pés libertaram uma descarga que começou no sexo e que se alastrou para o estômago e depois por todo sistema nervoso. A carne cresceu e voltou a encolher em redor dos ossos, os pulmões sossegaram, há um risco de sangue no lábio inferior que B. limpa com a língua.
A roupa e os sapatos são levantados do chão e B. veste-se na cozinha, diminuindo a velocidade dos movimentos para lhes reduzir o som. Limpa o gargalo com a palma da mão, bebe água pela garrafa e certifica-se que recolheu todos os seus vestígios pessoais no apartamento. Sempre que B. encontra um corpo virtuoso guarda uma morada, um número de telefone, qualquer referência de contacto. Mas quando os corpos – como nesta noite – apenas servem de alimento, recusa repeti-los.
Em casa, B. senta-se na cama, diante do espelho, e masturba-se, fechando os olhos para recorrer às imagens seleccionadas em outras noites, várias pessoas numa cama, uma praça pública durante a noite, ou uma varanda e crianças que espreitam, às escondidas, na janela do edifício do outro lado da rua. Antes de adormecer, abre um livro erótico, escolhe um capítulo e começa a masturbar-se, procurando sintonizar o orgasmo com o orgasmo da protagonista.
De manhã, na banheira, com a água a escorrendo na pele, atravessando o sexo, B. já não sente repulsa do corpo que conheceu na noite anterior, e começa, uma vez mais, a escolher imagens, gestos, palmadas, frases, que utiliza quando se manipula à procura de mais prazer.
Na rua, no emprego, num supermercado, B. persegue pessoas com quem se quer deitar, ou apenas ficar em pé, ou sobre a bancada de uma casa de banho. É um exercício quase sem interrupções. E mesmo o trabalho serve apenas para conseguir dinheiro e poder, é um instrumento de conquista, uma outra maneira de conhecer pessoas para consumir.
À noite, entra num lugar onde casais procuram parceiros, e abusa do álcool para eliminar o desconforto de se aproximar de estranhos. Os diálogos perdem a importância, e os jogos verbais de sedução substituem-se por um pormenor, às vezes uns óculos, as mãos, os sapatos, objectos, ou apenas linhas de carne que aparecem entre a roupa. A exigência de corpos sem imperfeições começa a desaparecer. Depois de tantas experiências, sabores e lugares, importa encontrar sempre algo de inédito, porque a repetição destrói a intensidade do prazer.
No carro de um casal, B. despe a mulher e aprecia a atenção do homem que aproveita os semáforos vermelhos para observar o espectáculo do sexo no banco traseiro. Quando tudo termina, ainda antes de chegarem a casa, B. sai do carro e corre pelo passeio sem se justificar. Continua a correr até entrar num táxi, fechar a porta e sentir as marcas da boca e das mãos mulher nas próprias pernas, na cara, espalhando-se na barriga e nos mamilos. Esta é a fuga que executa sempre após a violência, o descontrole, a luta, o triunfo e o temporário estado de graça.
Observando o taxista no retrovisor, B. puxa uma meia pela superfície da perna até alcançar a carne da coxa. Prende o cabelo e empurra os lábios contra o batôn. Não é amor que procura, uma casa, uma família, alguém que a espere ao anoitecer. Os pedaços dos outros chegam para aliviar a solidão. E enquanto aperta uma tira da cabedal na fivela dos sapatos, B. analisa as pessoas que caminham no passeio, escolhe alguém que consiga cansá-la mas que depois a deixe dormir sem se aproximar do seu corpo durante o sono.
terça-feira, dezembro 23, 2003
Em nome do Pai
Rua
O camião derrapa na curva e arranca um marco de correio que atravessa a montra de uma sapataria, o vidro explode, iniciam-se os gritos e os telefonemas para a Polícia. O camião esventra os carros em cima do passeio e um poste esmaga uma motorizada, arrastando as luzes de Natal suspensas em fios e destruindo o sistema de som que funcionava nas paredes dos prédios. O camião, roubado num estaleiro de obras, avança agora para as portas automáticas de um armazém comercial. Após uma travagem e marcas de borracha no mármore, fumo libertando-se dos pneus, corpos que se colam às paredes para fugirem ao metal, o camião destrói as portas de vidro, rasga os tectos falsos e imobiliza-se ao derrubar uma árvore de Natal.
O Pai abre a porta do camião, salta para cima de alguns embrulhos, bolas e estrelas de papel. Desce a máscara que tem na cabeça para a cara. As pestanas falham os buracos para os olhos. O Pai contempla a água que espirra do sistema anti-incêndios e os clientes que abandonam o edifício sem pagarem as compras. Caminha pelos corredores à procura do Refém. Os funcionários ajoelham-se, juntam as mãos para pedir misericórdia ou começam a correr. A pistola que assusta as testemunhas deste rapto é uma Glock nove milímetros, semi-automática, capacidade para dez balas no carregador e uma bala na câmara.
A máscara escorrega-lhe na cara, os sapatos ensopam-se com água, o dedos sentem frio e tremem até que o gatilho cede, a pistola dispara e a bala arranca lascas de tinta de uma parede antes de se alojar no fémur de uma balconista. Os rádios dos seguranças podem ouvir-se, escondidos atrás das mesas, das cadeiras, e dos ramos da árvore de Natal. O Pai continua sem identificar o Refém, movendo o braço da pistola sempre que receia um ataque, disparando tiros contra um caixote do lixo, um cão e as malas de viagem que caem de uma montra.
O rapaz que acabou de desligar o motor do camião, levanta os braços para a pistola, tira a máscara:
“Sou eu, Pai. Não dispares. Eu disse-te para não pegares na arma.”
O rapaz, conhecido em casa como Filho, aponta para um corpo que se esconde dentro de um trenó puxado por renas de plástico:
“Ele está ali. Vamos apanhá-lo e desaparecer.”
Os raptores saem do edifício, o Refém está algemado, e o Filho estica o braço da pistola para afastar as pessoas que aparecem no passeio:
“Não estejam a olhar. Isto não é um assalto. É um rapto.”
Elevador
O corpo é enorme, ombros de pugilista que amoleceram, o nariz largo, sem osso. Os dedos procuram tocar o botão que convoca o elevador, movem-se sem acertar no círculo de plástico com uma seta a apontar para cima. O Pai precisa de comprimidos, de injecções, de um Filho que lhe guarde as mãos nos bolsos das calças para aprisionar os tremores:
“Será que o elevador avariou outra vez?”
O Refém admira os próprios pés, por vezes estuda os raptores e compreende que nunca serão profissionais do crime. Está agora num prédio onde vivem famílias. Observa os panfletos de publicidade nas caixas de correio, os vasos, as plantas, as luzes que piscam numa árvore de Natal.
O Pai descansa o corpo contra a parede. Os pulmões demoram a encher, gastaram-se, os braços morrem ao lado do tronco. Começou a combater quando era adolescente, lutas para amadores com todos os bilhetes vendidos. Quando abandonava o ringue, cortava as ligaduras, recebia dinheiro, alinhava as mangas da camisa com as mangas do casaco. Mesmo com cortes por cicatrizar, o Pai era admirado por todas as aspirantes a actrizes, e recebia sexo oral em casas de banho públicas. Semanas mais tarde, os treinadores chupavam cigarros, sopravam o fumo, rondavam o Pai que saltava à corda:
“Nunca serás um campeão.”
Os golpes eram pesados, podiam derrubar, mas os braços tardavam, as pernas mantinham-se coladas ao chão. A cabeça encaixava cada vez mais os murros, o pescoço arqueava e a coluna vertebral transformava-se num elástico. O Pai esquecia-se das esquivas, incapaz de antecipar um ataque, e recebia mais golpes, um gancho nas costelas a rachar um osso, um directo no queixo que rebentava com alguns vasos sanguíneos, o cérebro insuflado, os ouvidos derramando sangue.
O Pai era um adulto que se magoara no avesso do corpo, os ossos, os músculos, o sistema nervoso. E acabara a carreira sem glória. Como só sabia lutar, alistou-se no exército. No quartel, nas semanas de treino, a metralhadora saltava-lhe nas mãos e os outros soldados lançavam-se para trás das árvores:
“Tirem-lhe aquela merda.”
Quando regressou a casa, após a recruta, sentava-se numa caixa de madeira, observando os militares de licença e as mulheres que se agarravam aos braços das fardas. Os médicos queriam-no num hospital, o Pai recusou os medicamentos e começou a trabalhar numa fábrica.
Como nunca recorda o acidente, há quem fale de uma caixa a cair-lhe sobre as costas, ou uma máquina a descarregar electricidade. Os médicos voltaram a aparecer, assinaram os papéis, garantiram-lhe uma pensão por invalidez, e o advogado assegurou uma indemnização a ser paga todos os meses como um ordenado.
O Pai nunca conseguiu transportar os filhos ao colo. Permanecia no sofá, às escuras, esperando que alguém mudasse uma lâmpada. Olhava a roupa no tambor da máquina mas não podia levantar os braços para o estendal, doía-lhe o cérebro, os dedos largavam as molas.
Na tarde em que o Filho chegou a casa e lhe mostrou um rasgão no nariz, o Pai perguntou-lhe quem eram os culpados. À porta da escola, protegeu a cara como se participasse num combate. Os agressores riram-se quando o viram de luvas, procurando controlar a tosse e limpando o sangue que escorria do nariz. O Filho segurou-lhe o tremor das mãos e levou-o para casa.
A porta abre-se. O Refém tenta denunciar o rapto ao Vizinho que aparece no elevador, um homem que deixou de atender os telefonemas do Pai:
“Já lhe disse que os meus cães não incomodam ninguém. Não volte a ligar cá para casa.”
Um homem sem altura, que usa saltos, um fio de bigode, laca no cabelo, e que sorri sempre que encontra o Pai a tremer uma chave à frente do prédio:
“Se calhar é melhor ser eu. Ou quer ficar todo o dia na rua?”
As portas do elevador vão fechar-se, o Vizinho observa os raptores e o Refém, mas o Filho avança, os músculos do tórax contraem-se, os ombros alargam, e o corpo todo atropela o Vizinho que desliza pelo chão, desloca uma clavícula e abre a cabeça num vaso com plantas.
Cozinha
Esta é a Mãe e apenas lhe importa a organização dos ingredientes e a certeza de um vestido sem nódoas. O pescoço mantém-se imóvel para que a cabeça conserve a estrutura do penteado e a precisão da maquilhagem. Os anéis encontram-se protegidos pelas luvas de borracha. O rádio em cima do frigorífico produz música e a Mãe bate um dos sapatos nos azulejos, sem descobrir os homens emoldurados na porta, uma pistola, roupa escorrendo água. O Pai prepara uma frase, avançando um passo, mas depois anula o movimento, como se lhe agradasse esperar, observando a mulher que caminhava todos os dias no outro lado da rua e que entrava num autocarro com um filho preso à mão.
A Mãe chegara ao país sem falar a língua, raspava a sujidade das retretes, passava a ferro, executava vénias de obediência a cada ordem da Senhora. Mas sempre que os patrões viajavam, a Mãe convidada homens e apresentava-se como proprietária da casa, nadando na piscina ou comentando o valor das jóias da Senhora nos seus dedos. Um desses homens só a queria na cama, sem roupa, com uma mão a cobrir-lhe os lábios. Os dedos avançaram para o fecho da saia, sentiram a marca do elástico na pele, depois um polegar empurrou as meias a partir das coxas:
“Cala-te e ajuda-me a despir-te.”
Na manhã seguinte, sobravam apenas alguns cabelos do homem na almofada. A mãe encontrou no espelho os ombros mordidos, as nádegas com manchas de sangue pisado, a barriga onde adivinhava a certeza de uma gravidez.
Todas as tardes, depois do trabalho, via a caixa de madeira e o Pai contando os autocarros, os homens que paravam para cumprimentá-lo, mentindo, talvez com pena da imobilidade do pugilista:
“Ainda és o maior.”
E a Mãe começou a olhar para o outro lado da rua, um dia apareceu-lhe nas costas, os dedos que costumavam trazer o filho pousaram no ombro do Pai:
“Olá.”
Durante a tarde visitaram ringues, observaram luvas, o Pai desenrolou cartazes que anunciavam combates. A Mãe pensou que as letras com o nome do Pai eram as letras que se ofereciam às pessoas com sucesso:
“Por que não voltas a combater?”
Mas antes, numa cerimónia em que as testemunhas presenciaram a incapacidade do Pai para segurar numa caneta, a Mãe assinou os papéis do casamento e preencheu os formulários para a legalização no país.
A meio do primeiro assalto, o árbitro levantou os olhos do Pai para a luz e mandou-o para canto do ringue. A luva tinha-lhe esmagado o nariz. A força do murro expandiu-se pelos ossos do crânio, a ressonância alastrou para o cérebro e o Pai perdeu a localização do adversário, babando-se, cuspindo a protecção dos dentes, lançando ganchos flácidos num lugar do ringue sem ninguém. A Mãe agarrou na barriga, grávida de gémeos, desviou-se das pernas dos espectadores e abandonou a luta. Nesse momento, o Pai atravessava o ar com um último murro e tombava o corpo sobre as cordas, aterrando a cabeça no chão do ringue. O árbitro abriu os braços e voltou a fechá-los, finalizando assim o regresso do Pai.
A Mãe enganara-se porque o marido nunca seria um campeão. Mas conseguira uma nova nacionalidade e não precisava de trabalhar, ocupando-se apenas com a decoração da casa e organizando encontros para as mulheres do seu país. Todas as outras celebrações foram proibidas. Na Noite de Natal, os filhos vestiam o pijama, comiam na cozinha, os pés frios sobre os azulejos, sem doces, música, nem anjos pendurados nas portas. Perguntas sobre presentes resultariam em castigos. O Pai levava-os para a cama, puxava-lhes os cobertores até ao queixo e escondia uma caixa com um laço debaixo de cada almofada.
Certo dia, o Filho colou nas paredes da sala os cartazes em que o Pai ameaçava outros lutadores, luvas à frente da cara, músculos tensos, pernas que anunciavam uma combinação de murros. Na mesma casa, aconteceria nessa tarde uma reunião para os convidados que costumavam parar a chávena a caminho dos lábios para elogiar as carpetes, os cortinados, o tecido dos sofás. Quando a Mãe entrou na sala, rasgou os cartazes, tropeçando nos papéis, equilibrando-se dentro dos sapatos:
“Como é que me podem envergonhar desta maneira?”
É apenas depois de fechar o forno que a Mãe repara no Pai, no Filho e no Refém. Verifica a limpeza do vestido, tira as luvas de borracha e caminha com um dedo apontado aos sapatos do Refém:
“Diz ao teu amigo para limpar essa lama dos pés antes de entrar na minha sala.”
E regressa à receita pendurada na porta do frigorífico, sem dar conta das algemas, do casaco vermelho, do barrete, ou da barba do Refém, afastando as mãos de tudo para evitar qualquer estrago no verniz das unhas.
Quarto
A porta está trancada. Ouvem-se os pés da cama que rangem e um barulho de lençóis. O Pai bate na madeira apenas com dois dedos, receando interromper o descanso da Filha:
“Preciso do telefone.”
De joelhos, sobre o corpo do Rapaz, a Filha pára o movimento de cintura, afastando o cabelo dos olhos. No fundo das costas, espalhando-se para as nádegas, o Rapaz observa-lhe a tatuagem e imagina outras mulheres na cama, procurando manter a erecção dentro do preservativo. Mas desconcentra-se quando sorri para o espelho, antecipando a descrição das habilidades da Filha aos amigos e aos colegas de trabalho. É um profissional que não precisa de vestir fatos para ganhar dinheiro. Escolhe mulheres à noite. Utiliza as mesmas frases para iniciar uma conversa, leva as mulheres aos mesmos lugares, repete os presentes, os embrulhos e a cor dos laços. Encontrou uma fórmula de sucesso. Mas a obediência dessas mulheres no sexo é apenas uma satisfação temporária. O desespero que elas revelam depois da separação, apesar de confirmar o génio e justificar a vaidade do Rapaz, é insuficiente, perturba-lhe a rotina. Dentro de alguns dias, quando já conhecer todos os pormenores do corpo da Filha, procurará outra mulher.
O colchão produz o ruído de um corpo que se levanta e que depois muda o peso para o soalho. Em bicos de pés, a Filha ronda o quarto à procura do telefone. Na cómoda, entre um espelho, caixas de jóias e frascos de perfume, esconde-se uma câmara. Os filmes amadores são vendidos a uma empresa de distribuição de conteúdos pornográficos e lançados em diversos países. Os protagonistas masculinos nunca sabem que estão a ser filmados, e por isso aparecem numa fita magnética sem disfarçarem a proeminência da barriga nem as dificuldades respiratórias durante o sexo.
Um sapato pisado por um calcanhar, a pele de um joelho a rasgar-se na esquina da mesa de cabeceira, roupa lançada para o chão. Depois, a Filha desliza os dedos na parede à procura do interruptor. Quando avança para o telefone, observa um pedaço de borracha amarrotado sobre o ventre do Rapaz, esfrega a pele da cara, abre a porta, mostrando apenas a cabeça:
“Aqui está.”
A Filha utilizou um sorriso para substituir um beijo na cara do Pai. Sabe que apenas habitam a mesma casa. Sempre quis existir além da família. Se a Mãe programava uma festa, a Filha ensaiava uma doença para permanecer no quarto. Nunca se incomodou com a extinção do Natal. E a caixa que encontrava debaixo da almofada era apenas uma cedência à dedicação do Pai.
No outro lado da porta, o Filho marca vários números no telefone. Sempre que respondem, lê as frases que escreveu no papel, olha para o Refém:
“Raptámos um Pai Natal. Temos exigências. Queremos que sejam cumpridas. Esta é a nossa morada. Esperem-nos na rua.”
Casa de Banho
A bateria está no lavatório e o prego é empurrado pelo martelo. As instruções indicam apenas uma suave pressão para fazer sair o ar. O Enteado começa a serrar o plástico e retira o óxido de magnésio com uma colher. A substância deverá secar à luz de uma lâmpada e depois misturar-se-á com água oxigenada. Nesse momento, o Enteado estará no banco traseiro de um carro e terá entre dez e vinte segundos até que a garrafa inicie uma explosão no interior de uma loja que vende doces de Natal. Esta é a sua nova missão, zelar pela saúde pública e proibir as pessoas de aumentarem de peso, controlar-lhes o colesterol, acabar com a obesidade.
Sem emprego, o Enteado passa os dias em casa, recebendo os amigos. Não fazem parte de um movimento político, nem sequer de um grupo terrorista. São adultos que inventam causas para resolver a inactividade, o aborrecimento, e que só experimentam emoção nos dias em que os jornais mostram imagens dos atentados.
A porta abre-se, o Enteado segura o plástico da bateria com luvas. Encontra o Pai Natal através das lentes dos óculos de mergulho. Mas continua a remover o óxido de magnésio com a colher. O Pai Natal acena com a cabeça para pedir desculpa, procura os botões das calças e com um sapato levanta a tampa da retrete:
“Se olhar para mim não consigo fazer.”
No último ano, após largar as injecções de heroína, o Enteado decidiu casar-se, elegendo uma empregada de livraria. Entregou-lhe um anel, caindo sobre os joelhos para receber uma resposta:
“És simpático mas não nos conhecemos. Só vens aqui para comprar livros.”
Os psicólogos recearam o regresso aos garrotes, ao líquido morno misturando-se com o sangue, ou mesmo o suicídio. Em casa eliminaram-se os insecticidas e trancou-se a gaveta dos medicamentos. O Enteado copiava poemas para as paredes da livraria e deixava bilhetes em cima do balcão. Após várias queixas na Polícia, os agentes pediram-lhe para manter a distância com algumas bastonadas nas costas e nas nádegas. Mas o Enteado acredita que o amor é perseverança, que magoa, que é preciso abdicar do orgulho e executar números com perigo, como lançar bolas de ténis recheadas com pólvora que arrancam as cabeças de manequins em montras de lojas.
Quando começam os gritos, a porta da casa de banho volta a abrir-se, um pontapé na fechadura, no lado de fora. O Filho aparece com a pistola levantada e encontra o Enteado, com um isqueiro na mão, a empurrar uma bola de ténis para dentro da boca do Pai Natal. O Filho desactiva a patilha de segurança, faz pontaria para um ombro:
“Sabes que gostaria de magoar-te?”
“Eu estou preparado para sofrer.”
“Vou mostrar-te o que dói levar um tiro na barriga.”
O Pai entra na casa de banho, agarra na pistola e depois no isqueiro, encosta a cara na cara do Enteado, os objectos agitam-se entre os seus dedos.:
“Filho.”
E o Enteado reconhece o cheiro da água de colónia, recupera o nojo da barba a roçar-lhe numa bochecha, a mesma repulsa que conheceu depois de se mudar para casa do Pai, afinal um padrasto que queria ser Pai:
“És o meu primeiro filho.”
Mas o Enteado sabia que não se pareciam no espelho, na cor da pele, nas mãos que o Pai verificava depois de um treino:
“Vais ser um campeão, filho.”
O Enteado chorava antes de ir para o ginásio, queria ficar em casa, esticando o corpo no sofá. Mas o Pai sentava-se nesse mesmo sofá, dono de um controlo remoto que lhe escorregava das mãos, levantando-se apenas para mostrar o saco do equipamento:
“Vamos, campeão?”
No interior do carro repetia-se o cheiro de um Pai que era um engano, que nem sequer trabalhava, como os outros pais, os verdadeiros, e que se esforçava por cuidar de uma criança:
“Aqui têm meu filho para treinar.”
O Enteado sofria dentro do ginásio com o odor da transpiração no forro das luvas, com o cabedal dos sacos a estalar, com o sangue nas gengivas acumulando-se na protecção para os dentes. Fugia dos adversários, mas a campainha demorava, mais murros, esquivas, outro corte na sobrancelha, um gancho abaixo do externo que o fazia vomitar.
Quando saem da casa de banho e o Filho volta a activar a patilha de segurança da pistola, a luva do Enteado tenta eliminar o cheiro que se entranhou na pele da cara e reinicia o ofício de construir bombas dentro de garrafas de plástico.
Varanda
Eu sou Eu. Eu sou o Filho e asseguro a narrativa de tudo o que se passou ou poderá acontecer. Imagino as acções dos protagonistas no outro lado da porta. É fácil, sei quem são as pessoas, as rotinas, afinal, tudo aquilo que nunca mudará. E caso suceda um acidente, uma bala disparada por azar, uma sentença de prisão por rapto, teremos sempre as imagens desta câmara para provar que apenas precisamos de ajuda.
Encosto o cano da pistola à têmpora do Pai Natal. Lá em baixo, as equipas de televisão procuram o criminoso que reivindicou o rapto. Mostro metade do corpo do Pai Natal na varanda, como se ameaçasse empurrá-lo. As câmaras começam a filmar e os jornalistas gritam perguntas, inclinam a cabeça para trás, cuspindo as palavras para cima:
“Qual é o valor do resgate?”
A Mãe atravessa o visor da minha câmara com uma caixa de papel. O bolo será um presente para o financiador dos cortinados, do vestido e dos anéis nos dedos. O comprimento do risco dos olhos é verificado no espelho uma última vez. É possível que se imagine descalça, dobrada sobre a cama, o fio de bigode do Vizinho a decretar as regras:
“De joelhos se queres uns sapatos.”
E todos os anos outro papel de parede, as molduras novas sem fotografias do meu Pai, apenas paisagens, um monumento, ou a minha Mãe no centro de uma praça:
“São só dois dias. É um curso de decoração. Não posso ficar parada.”
O Vizinho sempre no outro lado da máquina fotográfica, ou num quarto de hotel, pressionando-lhe os ombros e sorrindo como sorri para o meu Pai:
“Quer ajuda a apertar os cordões dos sapatos?”
Mas desta vez o Vizinho não abrirá a porta, o bolo começa a desfazer-se dentro da caixa, talvez apareça alguém nas escadas:
“Foi numa ambulância, deitava muito sangue da cabeça.”
E a minha Mãe perguntará que hospital, entrará num táxi, passará toda a viagem a arranjar o laço na caixa, temendo um acidente vascular cerebral, um lado da cara congelado, outro homem a precisar de ajuda para correr o fecho das calças.
As luzes dos carros da Polícia aparecem no parque de estacionamento do prédio. Continuo a segurar na pistola, com a outra mão filmo o meu Pai, e lá atrás, na sala, passa a minha irmã gémea, a Filha, concebida noutro óvulo, os olhos diferentes, outra vontade, sem nunca perceber o silêncio do meu Pai e a língua que quer falar mas que é apenas um músculo danificado:
“Feliz Natal, Filha.”
Uma Filha que transporta agora toda a roupa dentro de malas, trocando, finalmente, a família pelos amigos, afastando-se, com pressa, do Pai que sobrevive num sofá, sempre à espera que alguém lhe vista um casaco, retalhando a cara quando se barbeia sozinho.
Os jornalistas assustam-se com a explosão, ponho mais força na coronha da pistola, obrigo o Pai Natal a gritar:
“Estou bem. Não me aconteceu nada.”
Filmo a porta da casa de banho, algum fumo, talvez o Enteado sem mãos, cego e com o coração à vista, um cobarde que se escondia nos armários quando lhe propunha uma luta, gritando através dos casacos nos cabides:
“Não somos irmãos.”
Se por acaso o Pai pede um copo de água, o Enteado arruma as chaves no bolso, veste o casaco, abre a porta:
“Não posso, velho. Tenho de sair.”
Mas eu estou aqui, em nome do meu Pai, em meu nome. Pretendemos apenas celebrar o Natal. Precisamos de ajuda, queremos falar, buscamos companhia. Se nos levarem para a casa de uma família, se nos sentarem à mesa com pessoas que recebam as caixas do meu Pai, prometemos, Eu prometo, que nada acontecerá a este Pai Natal. A pistola nem tem balas no carregador, fiz saltar a bala da câmara, está aqui, podem filmar. Só queremos que nos vejam, que nos levem, que nos mostrem em directo. Depois cedemos os direitos, oferecemos a cassete que roda dentro desta câmara. Podem fazer um programa especial, damos entrevistas, contamos tudo. Mas por favor alertem as famílias, é Natal, e nós só precisamos desta noite, como se fosse um comprimido que acabasse com os tremores, um saco de gelo a reduzir um inchaço, ou pelo menos os aplausos que a audiência oferece no final de cada combate.
Rua
O camião derrapa na curva e arranca um marco de correio que atravessa a montra de uma sapataria, o vidro explode, iniciam-se os gritos e os telefonemas para a Polícia. O camião esventra os carros em cima do passeio e um poste esmaga uma motorizada, arrastando as luzes de Natal suspensas em fios e destruindo o sistema de som que funcionava nas paredes dos prédios. O camião, roubado num estaleiro de obras, avança agora para as portas automáticas de um armazém comercial. Após uma travagem e marcas de borracha no mármore, fumo libertando-se dos pneus, corpos que se colam às paredes para fugirem ao metal, o camião destrói as portas de vidro, rasga os tectos falsos e imobiliza-se ao derrubar uma árvore de Natal.
O Pai abre a porta do camião, salta para cima de alguns embrulhos, bolas e estrelas de papel. Desce a máscara que tem na cabeça para a cara. As pestanas falham os buracos para os olhos. O Pai contempla a água que espirra do sistema anti-incêndios e os clientes que abandonam o edifício sem pagarem as compras. Caminha pelos corredores à procura do Refém. Os funcionários ajoelham-se, juntam as mãos para pedir misericórdia ou começam a correr. A pistola que assusta as testemunhas deste rapto é uma Glock nove milímetros, semi-automática, capacidade para dez balas no carregador e uma bala na câmara.
A máscara escorrega-lhe na cara, os sapatos ensopam-se com água, o dedos sentem frio e tremem até que o gatilho cede, a pistola dispara e a bala arranca lascas de tinta de uma parede antes de se alojar no fémur de uma balconista. Os rádios dos seguranças podem ouvir-se, escondidos atrás das mesas, das cadeiras, e dos ramos da árvore de Natal. O Pai continua sem identificar o Refém, movendo o braço da pistola sempre que receia um ataque, disparando tiros contra um caixote do lixo, um cão e as malas de viagem que caem de uma montra.
O rapaz que acabou de desligar o motor do camião, levanta os braços para a pistola, tira a máscara:
“Sou eu, Pai. Não dispares. Eu disse-te para não pegares na arma.”
O rapaz, conhecido em casa como Filho, aponta para um corpo que se esconde dentro de um trenó puxado por renas de plástico:
“Ele está ali. Vamos apanhá-lo e desaparecer.”
Os raptores saem do edifício, o Refém está algemado, e o Filho estica o braço da pistola para afastar as pessoas que aparecem no passeio:
“Não estejam a olhar. Isto não é um assalto. É um rapto.”
Elevador
O corpo é enorme, ombros de pugilista que amoleceram, o nariz largo, sem osso. Os dedos procuram tocar o botão que convoca o elevador, movem-se sem acertar no círculo de plástico com uma seta a apontar para cima. O Pai precisa de comprimidos, de injecções, de um Filho que lhe guarde as mãos nos bolsos das calças para aprisionar os tremores:
“Será que o elevador avariou outra vez?”
O Refém admira os próprios pés, por vezes estuda os raptores e compreende que nunca serão profissionais do crime. Está agora num prédio onde vivem famílias. Observa os panfletos de publicidade nas caixas de correio, os vasos, as plantas, as luzes que piscam numa árvore de Natal.
O Pai descansa o corpo contra a parede. Os pulmões demoram a encher, gastaram-se, os braços morrem ao lado do tronco. Começou a combater quando era adolescente, lutas para amadores com todos os bilhetes vendidos. Quando abandonava o ringue, cortava as ligaduras, recebia dinheiro, alinhava as mangas da camisa com as mangas do casaco. Mesmo com cortes por cicatrizar, o Pai era admirado por todas as aspirantes a actrizes, e recebia sexo oral em casas de banho públicas. Semanas mais tarde, os treinadores chupavam cigarros, sopravam o fumo, rondavam o Pai que saltava à corda:
“Nunca serás um campeão.”
Os golpes eram pesados, podiam derrubar, mas os braços tardavam, as pernas mantinham-se coladas ao chão. A cabeça encaixava cada vez mais os murros, o pescoço arqueava e a coluna vertebral transformava-se num elástico. O Pai esquecia-se das esquivas, incapaz de antecipar um ataque, e recebia mais golpes, um gancho nas costelas a rachar um osso, um directo no queixo que rebentava com alguns vasos sanguíneos, o cérebro insuflado, os ouvidos derramando sangue.
O Pai era um adulto que se magoara no avesso do corpo, os ossos, os músculos, o sistema nervoso. E acabara a carreira sem glória. Como só sabia lutar, alistou-se no exército. No quartel, nas semanas de treino, a metralhadora saltava-lhe nas mãos e os outros soldados lançavam-se para trás das árvores:
“Tirem-lhe aquela merda.”
Quando regressou a casa, após a recruta, sentava-se numa caixa de madeira, observando os militares de licença e as mulheres que se agarravam aos braços das fardas. Os médicos queriam-no num hospital, o Pai recusou os medicamentos e começou a trabalhar numa fábrica.
Como nunca recorda o acidente, há quem fale de uma caixa a cair-lhe sobre as costas, ou uma máquina a descarregar electricidade. Os médicos voltaram a aparecer, assinaram os papéis, garantiram-lhe uma pensão por invalidez, e o advogado assegurou uma indemnização a ser paga todos os meses como um ordenado.
O Pai nunca conseguiu transportar os filhos ao colo. Permanecia no sofá, às escuras, esperando que alguém mudasse uma lâmpada. Olhava a roupa no tambor da máquina mas não podia levantar os braços para o estendal, doía-lhe o cérebro, os dedos largavam as molas.
Na tarde em que o Filho chegou a casa e lhe mostrou um rasgão no nariz, o Pai perguntou-lhe quem eram os culpados. À porta da escola, protegeu a cara como se participasse num combate. Os agressores riram-se quando o viram de luvas, procurando controlar a tosse e limpando o sangue que escorria do nariz. O Filho segurou-lhe o tremor das mãos e levou-o para casa.
A porta abre-se. O Refém tenta denunciar o rapto ao Vizinho que aparece no elevador, um homem que deixou de atender os telefonemas do Pai:
“Já lhe disse que os meus cães não incomodam ninguém. Não volte a ligar cá para casa.”
Um homem sem altura, que usa saltos, um fio de bigode, laca no cabelo, e que sorri sempre que encontra o Pai a tremer uma chave à frente do prédio:
“Se calhar é melhor ser eu. Ou quer ficar todo o dia na rua?”
As portas do elevador vão fechar-se, o Vizinho observa os raptores e o Refém, mas o Filho avança, os músculos do tórax contraem-se, os ombros alargam, e o corpo todo atropela o Vizinho que desliza pelo chão, desloca uma clavícula e abre a cabeça num vaso com plantas.
Cozinha
Esta é a Mãe e apenas lhe importa a organização dos ingredientes e a certeza de um vestido sem nódoas. O pescoço mantém-se imóvel para que a cabeça conserve a estrutura do penteado e a precisão da maquilhagem. Os anéis encontram-se protegidos pelas luvas de borracha. O rádio em cima do frigorífico produz música e a Mãe bate um dos sapatos nos azulejos, sem descobrir os homens emoldurados na porta, uma pistola, roupa escorrendo água. O Pai prepara uma frase, avançando um passo, mas depois anula o movimento, como se lhe agradasse esperar, observando a mulher que caminhava todos os dias no outro lado da rua e que entrava num autocarro com um filho preso à mão.
A Mãe chegara ao país sem falar a língua, raspava a sujidade das retretes, passava a ferro, executava vénias de obediência a cada ordem da Senhora. Mas sempre que os patrões viajavam, a Mãe convidada homens e apresentava-se como proprietária da casa, nadando na piscina ou comentando o valor das jóias da Senhora nos seus dedos. Um desses homens só a queria na cama, sem roupa, com uma mão a cobrir-lhe os lábios. Os dedos avançaram para o fecho da saia, sentiram a marca do elástico na pele, depois um polegar empurrou as meias a partir das coxas:
“Cala-te e ajuda-me a despir-te.”
Na manhã seguinte, sobravam apenas alguns cabelos do homem na almofada. A mãe encontrou no espelho os ombros mordidos, as nádegas com manchas de sangue pisado, a barriga onde adivinhava a certeza de uma gravidez.
Todas as tardes, depois do trabalho, via a caixa de madeira e o Pai contando os autocarros, os homens que paravam para cumprimentá-lo, mentindo, talvez com pena da imobilidade do pugilista:
“Ainda és o maior.”
E a Mãe começou a olhar para o outro lado da rua, um dia apareceu-lhe nas costas, os dedos que costumavam trazer o filho pousaram no ombro do Pai:
“Olá.”
Durante a tarde visitaram ringues, observaram luvas, o Pai desenrolou cartazes que anunciavam combates. A Mãe pensou que as letras com o nome do Pai eram as letras que se ofereciam às pessoas com sucesso:
“Por que não voltas a combater?”
Mas antes, numa cerimónia em que as testemunhas presenciaram a incapacidade do Pai para segurar numa caneta, a Mãe assinou os papéis do casamento e preencheu os formulários para a legalização no país.
A meio do primeiro assalto, o árbitro levantou os olhos do Pai para a luz e mandou-o para canto do ringue. A luva tinha-lhe esmagado o nariz. A força do murro expandiu-se pelos ossos do crânio, a ressonância alastrou para o cérebro e o Pai perdeu a localização do adversário, babando-se, cuspindo a protecção dos dentes, lançando ganchos flácidos num lugar do ringue sem ninguém. A Mãe agarrou na barriga, grávida de gémeos, desviou-se das pernas dos espectadores e abandonou a luta. Nesse momento, o Pai atravessava o ar com um último murro e tombava o corpo sobre as cordas, aterrando a cabeça no chão do ringue. O árbitro abriu os braços e voltou a fechá-los, finalizando assim o regresso do Pai.
A Mãe enganara-se porque o marido nunca seria um campeão. Mas conseguira uma nova nacionalidade e não precisava de trabalhar, ocupando-se apenas com a decoração da casa e organizando encontros para as mulheres do seu país. Todas as outras celebrações foram proibidas. Na Noite de Natal, os filhos vestiam o pijama, comiam na cozinha, os pés frios sobre os azulejos, sem doces, música, nem anjos pendurados nas portas. Perguntas sobre presentes resultariam em castigos. O Pai levava-os para a cama, puxava-lhes os cobertores até ao queixo e escondia uma caixa com um laço debaixo de cada almofada.
Certo dia, o Filho colou nas paredes da sala os cartazes em que o Pai ameaçava outros lutadores, luvas à frente da cara, músculos tensos, pernas que anunciavam uma combinação de murros. Na mesma casa, aconteceria nessa tarde uma reunião para os convidados que costumavam parar a chávena a caminho dos lábios para elogiar as carpetes, os cortinados, o tecido dos sofás. Quando a Mãe entrou na sala, rasgou os cartazes, tropeçando nos papéis, equilibrando-se dentro dos sapatos:
“Como é que me podem envergonhar desta maneira?”
É apenas depois de fechar o forno que a Mãe repara no Pai, no Filho e no Refém. Verifica a limpeza do vestido, tira as luvas de borracha e caminha com um dedo apontado aos sapatos do Refém:
“Diz ao teu amigo para limpar essa lama dos pés antes de entrar na minha sala.”
E regressa à receita pendurada na porta do frigorífico, sem dar conta das algemas, do casaco vermelho, do barrete, ou da barba do Refém, afastando as mãos de tudo para evitar qualquer estrago no verniz das unhas.
Quarto
A porta está trancada. Ouvem-se os pés da cama que rangem e um barulho de lençóis. O Pai bate na madeira apenas com dois dedos, receando interromper o descanso da Filha:
“Preciso do telefone.”
De joelhos, sobre o corpo do Rapaz, a Filha pára o movimento de cintura, afastando o cabelo dos olhos. No fundo das costas, espalhando-se para as nádegas, o Rapaz observa-lhe a tatuagem e imagina outras mulheres na cama, procurando manter a erecção dentro do preservativo. Mas desconcentra-se quando sorri para o espelho, antecipando a descrição das habilidades da Filha aos amigos e aos colegas de trabalho. É um profissional que não precisa de vestir fatos para ganhar dinheiro. Escolhe mulheres à noite. Utiliza as mesmas frases para iniciar uma conversa, leva as mulheres aos mesmos lugares, repete os presentes, os embrulhos e a cor dos laços. Encontrou uma fórmula de sucesso. Mas a obediência dessas mulheres no sexo é apenas uma satisfação temporária. O desespero que elas revelam depois da separação, apesar de confirmar o génio e justificar a vaidade do Rapaz, é insuficiente, perturba-lhe a rotina. Dentro de alguns dias, quando já conhecer todos os pormenores do corpo da Filha, procurará outra mulher.
O colchão produz o ruído de um corpo que se levanta e que depois muda o peso para o soalho. Em bicos de pés, a Filha ronda o quarto à procura do telefone. Na cómoda, entre um espelho, caixas de jóias e frascos de perfume, esconde-se uma câmara. Os filmes amadores são vendidos a uma empresa de distribuição de conteúdos pornográficos e lançados em diversos países. Os protagonistas masculinos nunca sabem que estão a ser filmados, e por isso aparecem numa fita magnética sem disfarçarem a proeminência da barriga nem as dificuldades respiratórias durante o sexo.
Um sapato pisado por um calcanhar, a pele de um joelho a rasgar-se na esquina da mesa de cabeceira, roupa lançada para o chão. Depois, a Filha desliza os dedos na parede à procura do interruptor. Quando avança para o telefone, observa um pedaço de borracha amarrotado sobre o ventre do Rapaz, esfrega a pele da cara, abre a porta, mostrando apenas a cabeça:
“Aqui está.”
A Filha utilizou um sorriso para substituir um beijo na cara do Pai. Sabe que apenas habitam a mesma casa. Sempre quis existir além da família. Se a Mãe programava uma festa, a Filha ensaiava uma doença para permanecer no quarto. Nunca se incomodou com a extinção do Natal. E a caixa que encontrava debaixo da almofada era apenas uma cedência à dedicação do Pai.
No outro lado da porta, o Filho marca vários números no telefone. Sempre que respondem, lê as frases que escreveu no papel, olha para o Refém:
“Raptámos um Pai Natal. Temos exigências. Queremos que sejam cumpridas. Esta é a nossa morada. Esperem-nos na rua.”
Casa de Banho
A bateria está no lavatório e o prego é empurrado pelo martelo. As instruções indicam apenas uma suave pressão para fazer sair o ar. O Enteado começa a serrar o plástico e retira o óxido de magnésio com uma colher. A substância deverá secar à luz de uma lâmpada e depois misturar-se-á com água oxigenada. Nesse momento, o Enteado estará no banco traseiro de um carro e terá entre dez e vinte segundos até que a garrafa inicie uma explosão no interior de uma loja que vende doces de Natal. Esta é a sua nova missão, zelar pela saúde pública e proibir as pessoas de aumentarem de peso, controlar-lhes o colesterol, acabar com a obesidade.
Sem emprego, o Enteado passa os dias em casa, recebendo os amigos. Não fazem parte de um movimento político, nem sequer de um grupo terrorista. São adultos que inventam causas para resolver a inactividade, o aborrecimento, e que só experimentam emoção nos dias em que os jornais mostram imagens dos atentados.
A porta abre-se, o Enteado segura o plástico da bateria com luvas. Encontra o Pai Natal através das lentes dos óculos de mergulho. Mas continua a remover o óxido de magnésio com a colher. O Pai Natal acena com a cabeça para pedir desculpa, procura os botões das calças e com um sapato levanta a tampa da retrete:
“Se olhar para mim não consigo fazer.”
No último ano, após largar as injecções de heroína, o Enteado decidiu casar-se, elegendo uma empregada de livraria. Entregou-lhe um anel, caindo sobre os joelhos para receber uma resposta:
“És simpático mas não nos conhecemos. Só vens aqui para comprar livros.”
Os psicólogos recearam o regresso aos garrotes, ao líquido morno misturando-se com o sangue, ou mesmo o suicídio. Em casa eliminaram-se os insecticidas e trancou-se a gaveta dos medicamentos. O Enteado copiava poemas para as paredes da livraria e deixava bilhetes em cima do balcão. Após várias queixas na Polícia, os agentes pediram-lhe para manter a distância com algumas bastonadas nas costas e nas nádegas. Mas o Enteado acredita que o amor é perseverança, que magoa, que é preciso abdicar do orgulho e executar números com perigo, como lançar bolas de ténis recheadas com pólvora que arrancam as cabeças de manequins em montras de lojas.
Quando começam os gritos, a porta da casa de banho volta a abrir-se, um pontapé na fechadura, no lado de fora. O Filho aparece com a pistola levantada e encontra o Enteado, com um isqueiro na mão, a empurrar uma bola de ténis para dentro da boca do Pai Natal. O Filho desactiva a patilha de segurança, faz pontaria para um ombro:
“Sabes que gostaria de magoar-te?”
“Eu estou preparado para sofrer.”
“Vou mostrar-te o que dói levar um tiro na barriga.”
O Pai entra na casa de banho, agarra na pistola e depois no isqueiro, encosta a cara na cara do Enteado, os objectos agitam-se entre os seus dedos.:
“Filho.”
E o Enteado reconhece o cheiro da água de colónia, recupera o nojo da barba a roçar-lhe numa bochecha, a mesma repulsa que conheceu depois de se mudar para casa do Pai, afinal um padrasto que queria ser Pai:
“És o meu primeiro filho.”
Mas o Enteado sabia que não se pareciam no espelho, na cor da pele, nas mãos que o Pai verificava depois de um treino:
“Vais ser um campeão, filho.”
O Enteado chorava antes de ir para o ginásio, queria ficar em casa, esticando o corpo no sofá. Mas o Pai sentava-se nesse mesmo sofá, dono de um controlo remoto que lhe escorregava das mãos, levantando-se apenas para mostrar o saco do equipamento:
“Vamos, campeão?”
No interior do carro repetia-se o cheiro de um Pai que era um engano, que nem sequer trabalhava, como os outros pais, os verdadeiros, e que se esforçava por cuidar de uma criança:
“Aqui têm meu filho para treinar.”
O Enteado sofria dentro do ginásio com o odor da transpiração no forro das luvas, com o cabedal dos sacos a estalar, com o sangue nas gengivas acumulando-se na protecção para os dentes. Fugia dos adversários, mas a campainha demorava, mais murros, esquivas, outro corte na sobrancelha, um gancho abaixo do externo que o fazia vomitar.
Quando saem da casa de banho e o Filho volta a activar a patilha de segurança da pistola, a luva do Enteado tenta eliminar o cheiro que se entranhou na pele da cara e reinicia o ofício de construir bombas dentro de garrafas de plástico.
Varanda
Eu sou Eu. Eu sou o Filho e asseguro a narrativa de tudo o que se passou ou poderá acontecer. Imagino as acções dos protagonistas no outro lado da porta. É fácil, sei quem são as pessoas, as rotinas, afinal, tudo aquilo que nunca mudará. E caso suceda um acidente, uma bala disparada por azar, uma sentença de prisão por rapto, teremos sempre as imagens desta câmara para provar que apenas precisamos de ajuda.
Encosto o cano da pistola à têmpora do Pai Natal. Lá em baixo, as equipas de televisão procuram o criminoso que reivindicou o rapto. Mostro metade do corpo do Pai Natal na varanda, como se ameaçasse empurrá-lo. As câmaras começam a filmar e os jornalistas gritam perguntas, inclinam a cabeça para trás, cuspindo as palavras para cima:
“Qual é o valor do resgate?”
A Mãe atravessa o visor da minha câmara com uma caixa de papel. O bolo será um presente para o financiador dos cortinados, do vestido e dos anéis nos dedos. O comprimento do risco dos olhos é verificado no espelho uma última vez. É possível que se imagine descalça, dobrada sobre a cama, o fio de bigode do Vizinho a decretar as regras:
“De joelhos se queres uns sapatos.”
E todos os anos outro papel de parede, as molduras novas sem fotografias do meu Pai, apenas paisagens, um monumento, ou a minha Mãe no centro de uma praça:
“São só dois dias. É um curso de decoração. Não posso ficar parada.”
O Vizinho sempre no outro lado da máquina fotográfica, ou num quarto de hotel, pressionando-lhe os ombros e sorrindo como sorri para o meu Pai:
“Quer ajuda a apertar os cordões dos sapatos?”
Mas desta vez o Vizinho não abrirá a porta, o bolo começa a desfazer-se dentro da caixa, talvez apareça alguém nas escadas:
“Foi numa ambulância, deitava muito sangue da cabeça.”
E a minha Mãe perguntará que hospital, entrará num táxi, passará toda a viagem a arranjar o laço na caixa, temendo um acidente vascular cerebral, um lado da cara congelado, outro homem a precisar de ajuda para correr o fecho das calças.
As luzes dos carros da Polícia aparecem no parque de estacionamento do prédio. Continuo a segurar na pistola, com a outra mão filmo o meu Pai, e lá atrás, na sala, passa a minha irmã gémea, a Filha, concebida noutro óvulo, os olhos diferentes, outra vontade, sem nunca perceber o silêncio do meu Pai e a língua que quer falar mas que é apenas um músculo danificado:
“Feliz Natal, Filha.”
Uma Filha que transporta agora toda a roupa dentro de malas, trocando, finalmente, a família pelos amigos, afastando-se, com pressa, do Pai que sobrevive num sofá, sempre à espera que alguém lhe vista um casaco, retalhando a cara quando se barbeia sozinho.
Os jornalistas assustam-se com a explosão, ponho mais força na coronha da pistola, obrigo o Pai Natal a gritar:
“Estou bem. Não me aconteceu nada.”
Filmo a porta da casa de banho, algum fumo, talvez o Enteado sem mãos, cego e com o coração à vista, um cobarde que se escondia nos armários quando lhe propunha uma luta, gritando através dos casacos nos cabides:
“Não somos irmãos.”
Se por acaso o Pai pede um copo de água, o Enteado arruma as chaves no bolso, veste o casaco, abre a porta:
“Não posso, velho. Tenho de sair.”
Mas eu estou aqui, em nome do meu Pai, em meu nome. Pretendemos apenas celebrar o Natal. Precisamos de ajuda, queremos falar, buscamos companhia. Se nos levarem para a casa de uma família, se nos sentarem à mesa com pessoas que recebam as caixas do meu Pai, prometemos, Eu prometo, que nada acontecerá a este Pai Natal. A pistola nem tem balas no carregador, fiz saltar a bala da câmara, está aqui, podem filmar. Só queremos que nos vejam, que nos levem, que nos mostrem em directo. Depois cedemos os direitos, oferecemos a cassete que roda dentro desta câmara. Podem fazer um programa especial, damos entrevistas, contamos tudo. Mas por favor alertem as famílias, é Natal, e nós só precisamos desta noite, como se fosse um comprimido que acabasse com os tremores, um saco de gelo a reduzir um inchaço, ou pelo menos os aplausos que a audiência oferece no final de cada combate.
sexta-feira, dezembro 19, 2003
A única coisa que se expande tanto como o universo é a estupidez
Já escrevi que fumar não é um crime. As pessoas devem poder fumar em lugares públicos onde se encontram de livre vontade – restaurantes, bares, discotecas – ao contrário, por exemplo, dos edifícios onde trabalham e onde têm de estar de manhã à noite. Mas que fumem com o bom senso de olhar em redor e perceber que os cigarros também incomodam, sem o pedantismo de pensar que podem impor o fumo. Fumar não é um estigma, mas também não é um privilégio. Da mesma maneira que me perturba a perseguição aos fumadores em Nova Iorque ou na Califórnia, incomoda-me arrogância daqueles que julgam que têm o direito de fumar em todo o lado.
No Hospital de Santa Maria vi pessoas a fumar. Pareceu-me estranho. Mais ainda quando caminhei pelos corredores onde os estudantes de Medicina acendiam cigarros depois de uma aula, ou quando uma médica encolheu os ombros à minha reclamação, como se fosse normal acender cigarros num lugar onde há pessoas doentes, algumas em macas, à espera, durante horas, outras chorando com dores, como a mulher que era confortada pela filha enquanto se agarrava à barriga. O hospital de Santa Maria é – se calhar como todos os hospitais – um espectáculo da fragilidade e da miséria humana. Magoa ver a solidão daqueles que aparecem sem acompanhantes, assusta o desespero dos velhos nas cadeiras de rodas que quase morrem ao suspender a respiração, os braços mordidos por agulhas e tubos, metades de corpos paralisadas depois de uma veia que explodiu na cabeça.
Quando a mulher que acabava de fumar apagou o cigarro no chão, no corredor onde os doentes aguardavam uma consulta, compreendi que o egoísmo, a soberba, a indiferença, são muito mais fortes que o respeito. E apeteceu-me dar-lhe um estalo. É por isso que me custa-me escrever tudo isto, por ser um lugar comum, algo tão evidente, claro, fácil de saber e, no entanto, ainda haver tanta gente a escolher a estupidez.
Já escrevi que fumar não é um crime. As pessoas devem poder fumar em lugares públicos onde se encontram de livre vontade – restaurantes, bares, discotecas – ao contrário, por exemplo, dos edifícios onde trabalham e onde têm de estar de manhã à noite. Mas que fumem com o bom senso de olhar em redor e perceber que os cigarros também incomodam, sem o pedantismo de pensar que podem impor o fumo. Fumar não é um estigma, mas também não é um privilégio. Da mesma maneira que me perturba a perseguição aos fumadores em Nova Iorque ou na Califórnia, incomoda-me arrogância daqueles que julgam que têm o direito de fumar em todo o lado.
No Hospital de Santa Maria vi pessoas a fumar. Pareceu-me estranho. Mais ainda quando caminhei pelos corredores onde os estudantes de Medicina acendiam cigarros depois de uma aula, ou quando uma médica encolheu os ombros à minha reclamação, como se fosse normal acender cigarros num lugar onde há pessoas doentes, algumas em macas, à espera, durante horas, outras chorando com dores, como a mulher que era confortada pela filha enquanto se agarrava à barriga. O hospital de Santa Maria é – se calhar como todos os hospitais – um espectáculo da fragilidade e da miséria humana. Magoa ver a solidão daqueles que aparecem sem acompanhantes, assusta o desespero dos velhos nas cadeiras de rodas que quase morrem ao suspender a respiração, os braços mordidos por agulhas e tubos, metades de corpos paralisadas depois de uma veia que explodiu na cabeça.
Quando a mulher que acabava de fumar apagou o cigarro no chão, no corredor onde os doentes aguardavam uma consulta, compreendi que o egoísmo, a soberba, a indiferença, são muito mais fortes que o respeito. E apeteceu-me dar-lhe um estalo. É por isso que me custa-me escrever tudo isto, por ser um lugar comum, algo tão evidente, claro, fácil de saber e, no entanto, ainda haver tanta gente a escolher a estupidez.
quarta-feira, dezembro 17, 2003
You’ve been hit by a smooth criminal
Mr. Ayala acorda antes do despertador e procura recordar-se do nome da pessoa que vai matar esta manhã. Desliza um polegar no lençol e sai da cama, sem o ruído da roupa ou do colchão, caminhando em bicos de pés depois de tirar a pistola debaixo da almofada e de a prender entre a base das costas e o elástico das calças do pijama. Evita ainda o som do metal sobre o mármore quando aterra a pistola na bancada da casa de banho. Prepara a água quente, a lâmina e a espuma de barbear, entra na banheira, esfrega a cara e o corpo com um esfoliante, utiliza amaciador no cabelo.
O fato está pendurado na porta da casa de banho. Consegue o nó da gravata à primeira tentativa, deixa cair um produto fixante nas mãos que pressiona sobre o couro cabeludo, veste o casaco e confere a posição dos botões de punho.
Com os sapatos na mão, passa pela cama, beijando os dedos e depois levando-os à cara da mulher que ainda dorme. No outro quarto, acorda os filhos soprando-lhes ao ouvido:
“O papá vai fazer o pequeno-almoço.”
Escolhe a roupa dos filhos no armário, lava-lhes a cara e aperta-lhes os cordões dos sapatos. Na cozinha enfia-lhes guardanapos de pano nas camisas do uniforme escolar e fica a observá-los, corrigindo por vezes uma boca aberta ou os dedos que se enganam ao agarrar numa colher.
No carro escolhe a estação de rádio que emite música para crianças. Canta com os filhos e, quando os deixa à porta da escola, lambe um polegar e limpa-lhes o que resta de comida e pasta de dentes nos cantos dos lábios.
No quarto de um apartamento, o lenço de pano é empurrado para dentro da boca, imobilizando a língua e impossibilitando qualquer pedido de ajuda. Os pulsos estão amarrados com um fio de nylon e começam a sangrar. O silenciador foi enroscado no cano da pistola que se encontra agora em cima da mesa. Mr. Ayala conversa ao telefone diante da vítima, questionando as ordens que exigiam tiros nas rótulas para obter informações:
“O homem não tem pernas, está numa cadeira de rodas.”
Mr. Ayala decide improvisar. Depois de transportar a vítima para a banheira e de forrar o chão com folhas de jornal, fecha a cortina e aponta o silenciador para os cotovelos. O sangue espirra para os azulejos brancos e para Mr. Ayala que tem uma máscara de cirurgião e veste um fato amarelo para a chuva. A vítima fornece as informações necessárias e em seguida é executada. Mr. Ayala corta o corpo com uma serra e guarda-o num saco de plástico e numa mala de viagem que atira para um contentor de lixo.
Em casa, debaixo do chuveiro, Mr. Ayala elimina as pintas de sangue na pele e passa uma escova nas unhas. Veste a mesma roupa, mudando apenas de cuecas e de meias. Passa o resto do dia a executar tarefas domésticas, corta a relva, muda uma lâmpada, tempera os alimentos que cozinhará antes de anoitecer. A mulher chega a casa com os filhos. Comem, vêem televisão e Mr. Ayala certifica-se que as crianças estão bem protegidas pela roupa de cama. Um dos filhos aponta para os sapatos do pai que apaga a luz e responde:
“Não é nada, filho. Agora dorme.”
Mr. Ayala tira os sapatos e caminha para a garagem onde, com uma faca e uma esponja, limpa o sangue coagulado nas solas, rapidamente, porque quer entrar na cama e a colar-se ao corpo da mulher que abandonará um livro e o beijará na boca.
Mr. Ayala acorda antes do despertador e procura recordar-se do nome da pessoa que vai matar esta manhã. Desliza um polegar no lençol e sai da cama, sem o ruído da roupa ou do colchão, caminhando em bicos de pés depois de tirar a pistola debaixo da almofada e de a prender entre a base das costas e o elástico das calças do pijama. Evita ainda o som do metal sobre o mármore quando aterra a pistola na bancada da casa de banho. Prepara a água quente, a lâmina e a espuma de barbear, entra na banheira, esfrega a cara e o corpo com um esfoliante, utiliza amaciador no cabelo.
O fato está pendurado na porta da casa de banho. Consegue o nó da gravata à primeira tentativa, deixa cair um produto fixante nas mãos que pressiona sobre o couro cabeludo, veste o casaco e confere a posição dos botões de punho.
Com os sapatos na mão, passa pela cama, beijando os dedos e depois levando-os à cara da mulher que ainda dorme. No outro quarto, acorda os filhos soprando-lhes ao ouvido:
“O papá vai fazer o pequeno-almoço.”
Escolhe a roupa dos filhos no armário, lava-lhes a cara e aperta-lhes os cordões dos sapatos. Na cozinha enfia-lhes guardanapos de pano nas camisas do uniforme escolar e fica a observá-los, corrigindo por vezes uma boca aberta ou os dedos que se enganam ao agarrar numa colher.
No carro escolhe a estação de rádio que emite música para crianças. Canta com os filhos e, quando os deixa à porta da escola, lambe um polegar e limpa-lhes o que resta de comida e pasta de dentes nos cantos dos lábios.
No quarto de um apartamento, o lenço de pano é empurrado para dentro da boca, imobilizando a língua e impossibilitando qualquer pedido de ajuda. Os pulsos estão amarrados com um fio de nylon e começam a sangrar. O silenciador foi enroscado no cano da pistola que se encontra agora em cima da mesa. Mr. Ayala conversa ao telefone diante da vítima, questionando as ordens que exigiam tiros nas rótulas para obter informações:
“O homem não tem pernas, está numa cadeira de rodas.”
Mr. Ayala decide improvisar. Depois de transportar a vítima para a banheira e de forrar o chão com folhas de jornal, fecha a cortina e aponta o silenciador para os cotovelos. O sangue espirra para os azulejos brancos e para Mr. Ayala que tem uma máscara de cirurgião e veste um fato amarelo para a chuva. A vítima fornece as informações necessárias e em seguida é executada. Mr. Ayala corta o corpo com uma serra e guarda-o num saco de plástico e numa mala de viagem que atira para um contentor de lixo.
Em casa, debaixo do chuveiro, Mr. Ayala elimina as pintas de sangue na pele e passa uma escova nas unhas. Veste a mesma roupa, mudando apenas de cuecas e de meias. Passa o resto do dia a executar tarefas domésticas, corta a relva, muda uma lâmpada, tempera os alimentos que cozinhará antes de anoitecer. A mulher chega a casa com os filhos. Comem, vêem televisão e Mr. Ayala certifica-se que as crianças estão bem protegidas pela roupa de cama. Um dos filhos aponta para os sapatos do pai que apaga a luz e responde:
“Não é nada, filho. Agora dorme.”
Mr. Ayala tira os sapatos e caminha para a garagem onde, com uma faca e uma esponja, limpa o sangue coagulado nas solas, rapidamente, porque quer entrar na cama e a colar-se ao corpo da mulher que abandonará um livro e o beijará na boca.
segunda-feira, dezembro 15, 2003
Retrato de Rapariga
MacKayla inclinou o corpo sobre a mesa que nos separava, apertou-me a mão e depois despiu-se e agarrou nas mamas como se eu lhe apontasse uma câmara fotográfica. Esperei que se sentasse, baixei a cabeça, mas espreitei as televisões que mostravam os filmes protagonizados por MacKayla, encontrando-a cercada por homens que a estimulavam com palmadas.
A actriz porno voltou a apertar os mamilos, procurando um sorriso na minha cara, como se não acreditasse que eu conseguiria resistir à sua nudez, beleza, ou – ainda mais difícil – à devassidão do seu outro corpo nos ecrãs. MacKayla desiludiu-se quando descobriu que eu apenas estava equipado com um caderno e uma caneta. Porque em vez do registo acelerado das suas respostas em folhas de papel, queria flashes, câmaras, holofotes, algo que iluminasse ainda mais o seu brilhantismo sexual. Sem espectáculo, vestiu uma camisola, aterrou a cara na palma de uma mão e pediu comida a uma assistente:
“Estive a gravar toda a manhã, num quarto de hotel, e ainda não comi nada.”
Depois de relatar a normalidade da infância e da adolescência, MacKayla assegurou-me que gostava muito de sexo e que nunca se sentira explorada. Era actriz porno porque a indústria enriquecia os melhores profissionais, tornava-os famosos, susceptíveis de serem amados por estranhos. Quando regressei às perguntas sobre a família, distraíu-se outra vez, observando o verniz nas unhas ou mastigando a sandes que a assistente pousara na mesa. MacKayla aborrecia-se com a minha seriedade, com o meu esforço para evitar as imagens nas televisões.
Mas quando nos despedíamos, pediu-me para a acompanhar à rua. Tive de esperar, observando uma audiência de homens que se sentavam num sofá, suportando o corpo de MacKayla nas pernas, encaixando-lhe os dedos em concha nas mamas e esperando uma polaroide que depois compravam à assistente. No final, perguntou-me se também queria uma recordação fotográfica, abrindo as pernas, mostrando-me o sexo e deslizando as mãos no corpo como costumava fazer nos filmes. Sorri, encolhendo os ombros, como se lhe confessasse que gostaria mas que obedecia a um código de conduta. Queria ser subtil, revelar controlo, profissionalismo, mostrar-lhe que ainda existiam pessoas que podiam resistir.
Ajudei-a a vestir um casaco de peles. Por baixo havia apenas uma saia. Carreguei-lhe a mochila pelos corredores do Festival de Sexo e esperei quando os fotógrafos pediram para que abrisse o casaco. Depois deu-me o braço e anunciou à assistência:
“Este é o meu novo namorado, vai fazer-me famosa na Europa.”
MacKayla tinha 21 anos, eu era pouco mais velho, e sentia-me importante. Imaginei-me a escrever poemas, na sua própria pele, nalguma pensão, escutando bêbedos e sirenes de ambulância, cedendo ao fascínio das mulheres bonitas que parecem querer estar sempre nuas. Nesse momento, acreditava que a insolência criativa seria viver com uma rapariga que encontrava estilo na decadência, inspiração no deboche e fama na utilização virtuosa do corpo. Mas MacKayla vivia em Los Angeles, estava de partida, e eu era um rigoroso cumpridor das regras profissionais que desconfiava já do deslumbramento com as estrelas da pornografia.
Acompanhei-a pelo passeio, chamei um táxi, trocámos beijos nas bochechas e abri-lhe a porta, esperando um convite que deveria recusar. Ela apenas sorriu e fechou a porta, condescendendo a minha inocência – que era também a sua inocência, agora que estava num espaço sem público ou câmaras ou realizadores.
Observo os cartazes dos filmes de McKayla que encontrei entre papéis, numa caixa, numa arrecadação. As carreiras das actrizes pornográficas costumam ser breves, mas MacKayla é quase tão famosa como ambicionou. Será hoje outra pessoa, e apesar do corpo ainda duro, da tatuagem colorida que lhe aperta o umbigo, haverá um desgaste que não se mede na carne. Eu também mudei, estando mais preocupado com as pessoas do que com as regras profissionais. E certo de que já não preciso de esperar por um convite sempre que quero entrar num táxi.
MacKayla inclinou o corpo sobre a mesa que nos separava, apertou-me a mão e depois despiu-se e agarrou nas mamas como se eu lhe apontasse uma câmara fotográfica. Esperei que se sentasse, baixei a cabeça, mas espreitei as televisões que mostravam os filmes protagonizados por MacKayla, encontrando-a cercada por homens que a estimulavam com palmadas.
A actriz porno voltou a apertar os mamilos, procurando um sorriso na minha cara, como se não acreditasse que eu conseguiria resistir à sua nudez, beleza, ou – ainda mais difícil – à devassidão do seu outro corpo nos ecrãs. MacKayla desiludiu-se quando descobriu que eu apenas estava equipado com um caderno e uma caneta. Porque em vez do registo acelerado das suas respostas em folhas de papel, queria flashes, câmaras, holofotes, algo que iluminasse ainda mais o seu brilhantismo sexual. Sem espectáculo, vestiu uma camisola, aterrou a cara na palma de uma mão e pediu comida a uma assistente:
“Estive a gravar toda a manhã, num quarto de hotel, e ainda não comi nada.”
Depois de relatar a normalidade da infância e da adolescência, MacKayla assegurou-me que gostava muito de sexo e que nunca se sentira explorada. Era actriz porno porque a indústria enriquecia os melhores profissionais, tornava-os famosos, susceptíveis de serem amados por estranhos. Quando regressei às perguntas sobre a família, distraíu-se outra vez, observando o verniz nas unhas ou mastigando a sandes que a assistente pousara na mesa. MacKayla aborrecia-se com a minha seriedade, com o meu esforço para evitar as imagens nas televisões.
Mas quando nos despedíamos, pediu-me para a acompanhar à rua. Tive de esperar, observando uma audiência de homens que se sentavam num sofá, suportando o corpo de MacKayla nas pernas, encaixando-lhe os dedos em concha nas mamas e esperando uma polaroide que depois compravam à assistente. No final, perguntou-me se também queria uma recordação fotográfica, abrindo as pernas, mostrando-me o sexo e deslizando as mãos no corpo como costumava fazer nos filmes. Sorri, encolhendo os ombros, como se lhe confessasse que gostaria mas que obedecia a um código de conduta. Queria ser subtil, revelar controlo, profissionalismo, mostrar-lhe que ainda existiam pessoas que podiam resistir.
Ajudei-a a vestir um casaco de peles. Por baixo havia apenas uma saia. Carreguei-lhe a mochila pelos corredores do Festival de Sexo e esperei quando os fotógrafos pediram para que abrisse o casaco. Depois deu-me o braço e anunciou à assistência:
“Este é o meu novo namorado, vai fazer-me famosa na Europa.”
MacKayla tinha 21 anos, eu era pouco mais velho, e sentia-me importante. Imaginei-me a escrever poemas, na sua própria pele, nalguma pensão, escutando bêbedos e sirenes de ambulância, cedendo ao fascínio das mulheres bonitas que parecem querer estar sempre nuas. Nesse momento, acreditava que a insolência criativa seria viver com uma rapariga que encontrava estilo na decadência, inspiração no deboche e fama na utilização virtuosa do corpo. Mas MacKayla vivia em Los Angeles, estava de partida, e eu era um rigoroso cumpridor das regras profissionais que desconfiava já do deslumbramento com as estrelas da pornografia.
Acompanhei-a pelo passeio, chamei um táxi, trocámos beijos nas bochechas e abri-lhe a porta, esperando um convite que deveria recusar. Ela apenas sorriu e fechou a porta, condescendendo a minha inocência – que era também a sua inocência, agora que estava num espaço sem público ou câmaras ou realizadores.
Observo os cartazes dos filmes de McKayla que encontrei entre papéis, numa caixa, numa arrecadação. As carreiras das actrizes pornográficas costumam ser breves, mas MacKayla é quase tão famosa como ambicionou. Será hoje outra pessoa, e apesar do corpo ainda duro, da tatuagem colorida que lhe aperta o umbigo, haverá um desgaste que não se mede na carne. Eu também mudei, estando mais preocupado com as pessoas do que com as regras profissionais. E certo de que já não preciso de esperar por um convite sempre que quero entrar num táxi.
sexta-feira, dezembro 12, 2003
One is the loneliest number
“I have been drawn to a certain character: a person, usually a male, who drifts on the edge of urban society, always peeping, looking into the lives of others. He’d like to have a life of his own but doesn’t know how to get one.”
Paul Schrader
É aqui que os observo, enquanto atiram a pressa de perna para perna, preparando-se para regressar a casa. Os semáforos mudam de cor e as pessoas iniciam a corrida, roçam os casacos nos casacos daqueles com quem se cruzam na passadeira. As duas partes encaixam-se, depois atravessam-se e dispersam quando atingem o outro lado da rua. No meio de todo este movimento eu mantenho-me quieto, uma mão no bolso, a outro aproximando as duas partes do casaco de porteiro de hotel. Estou com os calcanhares no passeio, as pontas dos sapatos sem apoio, e balanço o corpo, como se também quisesse chegar a casa. Mas finjo, porque nunca avanço, admiro apenas as pessoas que esperam para atravessar e os condutores dentro dos carros, ajustando o volume do rádio, movendo os dedos sobre o volante, trabalhando a impaciência com um pé a carregar no acelerador e a cabeça inclinada para os semáforos.
Um desses condutores investiga-me, abre a janela e procura a minha cara, depois percebe a farda do hotel, lê o meu nome na placa cravada no tecido do casaco:
“Desculpe, pensei que fosse outra pessoa.”
E esquece-me, preocupando-se com o semáforo, espreitando os jornais em cima do banco e as pessoas que se movimentam diante do carro. Eu mantenho o sorriso, como se aguardasse uma fotografia, e tenho a mão levantada, para dizer-lhe adeus. Talvez ele ainda me reconheça, despedindo-se antes de engrenar uma mudança, levantar o pé da embraiagem e pressionar o acelerador.
Atrás de um vidro há fruta preparando-se para apodrecer. O empregado tira uma laranja que coloca num prato e que entrega na mesa de um cliente. Uma faca crava-se na casca e há um explosão de sumo. Mas mais ninguém repara. Neste lugar é de noite. Encontro homens sem companhia admirando a televisão que os ilumina e os ajuda a respirar como um ventilador nos cuidados intensivos. São poucos homens, alguns sentados, outros inclinando-se sobre o balcão, com os pés colados num soalho de nódoas. Ninguém se fala, apenas fumam cigarros. Compro comida, mando embrulhar, e caminho para o emprego.
Tenho de sorrir sempre que abro a porta do hotel. Os hóspedes regressam. Os homens protegem as mulheres, ofereceram-lhes os casacos, tremem de frio mas revelam um rubor de álcool nas bochechas, os olhos com finas redes de sangue, a boca cuspindo gargalhadas antes de entrarem no elevador.
Espero que ela elimine um ruga na saia e que avance para a porta, o pescoço enfiado num casaco de peles, sem malas, a maquilhagem a garantir-me que é uma mulher adulta:
“Não quero incomodá-la. Mas, lembra-se de mim?”
Ela demora-se diante da minha cara, esperando um esclarecimento, depois desinteressa-se, olha em redor, procura alguém. Digo-lhe que estudámos na mesma escola. Sem se lembrar, admira o relógio várias vezes, ensaiando uma desculpa. Está atrasada, mas concede-me um encontro no dia seguinte, logo de manhã, antes da sessão de ginástica.
Acordo cedo e tonifico os músculos com água fria. Utilizo mesmo maquilhagem para atenuar os riscos escuros debaixo dos olhos. Esfrego os pulsos com perfume, cuspo na biqueira de um sapato em que esfrego um pano. Compro flores e começa a chover. Na paragem de autocarros, as pessoas empurram-se, protestam contra os atrasos. Tenho frio nos pés ensopados, o cabelo escorre água e colou-se à testa. Os ponteiros do meu relógio escondem-se debaixo do vapor do vidro, mas pararam, o mecanismo está inundado.
Quando chego ao hotel, rodo a cabeça, procurando-a entre os turistas e os carrinhos com malas. Avanço para o piso do ginásio e encosto-me ao vidro. Ela corre em cima de um tapete rolante, com auscultadores nos ouvidos. Continuo à espera, até que ela enrola uma toalha à volta do pescoço e passa por mim, sem perceber que sou eu:
“Desculpe, atrasei-me por causa da chuva.”
Ela pressiona o botão do elevador, muitas vezes, como se pudesse acelerar o mecanismo, e quando me aproximo e lhe entrego as flores:
“Eu não me lembro de si, deve estar enganado.”
Em casa decido telefonar-lhe para o quarto. Identifico-me, claro que ela se lembra de mim, e as flores, comprei-lhe mais flores, combinávamos amanhã, outra oportunidade, eu prometo que não me atraso, apanho um táxi, levanto-me mais cedo. Mas ela não responde. Na minha casa, uma divisão, ouve-se apenas uma torneira deficiente, pingando no lavatório. Olho o colchão, sem cama, onde gostaria de a deitar. Imagino-a a sair da casa de banho, desviando-se do sofá e atirando-se para os lençóis, o cão do vizinho sem ladrar, os relógios numa gaveta, o telefone desligado, longe da minha orelha:
“O senhor está a incomodar a minha mulher. Ela já disse que não o conhece. Não volte a ligar.”
No armário encontro o bastão, serro-o ao meio e escondo-o dentro do casaco. Vou castigar o homem que a impede de falar comigo, o homem que me quer roubar, o homem a quem esmagarei o crânio. Continua a chover, dias e dias a chover assim, e desta vez avanço na passadeira, misturo-me com as pessoas que querem chegar a casa. Alguém me empurra, mas nem me olha, continuando, sem me pedir desculpa, como se eu não tivesse carne.
Quando me aproximo do hotel, encontro -a, o homem agarra-a, obriga-a a entrar no táxi, talvez pressione uma pistola contra as suas costelas, a ameace de violação, lhe assegure um castigo. Vou magoá-lo como ele me quer magoar, com este bastão que afinal deixo ficar no casaco, porque os pés agora sem se moverem, outra vez os calcanhares sobre o passeio, as pontas dos sapatos sem apoio, balanço o corpo quando o táxi arranca, ela encosta a cabeça ao vidro, mas nem se despede. E por isso continuo aqui, observando as pessoas que atravessam a rua, analisando os condutores, batendo no vidro de um carro que acaba de obedecer à cor do semáforo:
“Não quero incomodá-la. Mas, lembra-se de mim?”
“I have been drawn to a certain character: a person, usually a male, who drifts on the edge of urban society, always peeping, looking into the lives of others. He’d like to have a life of his own but doesn’t know how to get one.”
Paul Schrader
É aqui que os observo, enquanto atiram a pressa de perna para perna, preparando-se para regressar a casa. Os semáforos mudam de cor e as pessoas iniciam a corrida, roçam os casacos nos casacos daqueles com quem se cruzam na passadeira. As duas partes encaixam-se, depois atravessam-se e dispersam quando atingem o outro lado da rua. No meio de todo este movimento eu mantenho-me quieto, uma mão no bolso, a outro aproximando as duas partes do casaco de porteiro de hotel. Estou com os calcanhares no passeio, as pontas dos sapatos sem apoio, e balanço o corpo, como se também quisesse chegar a casa. Mas finjo, porque nunca avanço, admiro apenas as pessoas que esperam para atravessar e os condutores dentro dos carros, ajustando o volume do rádio, movendo os dedos sobre o volante, trabalhando a impaciência com um pé a carregar no acelerador e a cabeça inclinada para os semáforos.
Um desses condutores investiga-me, abre a janela e procura a minha cara, depois percebe a farda do hotel, lê o meu nome na placa cravada no tecido do casaco:
“Desculpe, pensei que fosse outra pessoa.”
E esquece-me, preocupando-se com o semáforo, espreitando os jornais em cima do banco e as pessoas que se movimentam diante do carro. Eu mantenho o sorriso, como se aguardasse uma fotografia, e tenho a mão levantada, para dizer-lhe adeus. Talvez ele ainda me reconheça, despedindo-se antes de engrenar uma mudança, levantar o pé da embraiagem e pressionar o acelerador.
Atrás de um vidro há fruta preparando-se para apodrecer. O empregado tira uma laranja que coloca num prato e que entrega na mesa de um cliente. Uma faca crava-se na casca e há um explosão de sumo. Mas mais ninguém repara. Neste lugar é de noite. Encontro homens sem companhia admirando a televisão que os ilumina e os ajuda a respirar como um ventilador nos cuidados intensivos. São poucos homens, alguns sentados, outros inclinando-se sobre o balcão, com os pés colados num soalho de nódoas. Ninguém se fala, apenas fumam cigarros. Compro comida, mando embrulhar, e caminho para o emprego.
Tenho de sorrir sempre que abro a porta do hotel. Os hóspedes regressam. Os homens protegem as mulheres, ofereceram-lhes os casacos, tremem de frio mas revelam um rubor de álcool nas bochechas, os olhos com finas redes de sangue, a boca cuspindo gargalhadas antes de entrarem no elevador.
Espero que ela elimine um ruga na saia e que avance para a porta, o pescoço enfiado num casaco de peles, sem malas, a maquilhagem a garantir-me que é uma mulher adulta:
“Não quero incomodá-la. Mas, lembra-se de mim?”
Ela demora-se diante da minha cara, esperando um esclarecimento, depois desinteressa-se, olha em redor, procura alguém. Digo-lhe que estudámos na mesma escola. Sem se lembrar, admira o relógio várias vezes, ensaiando uma desculpa. Está atrasada, mas concede-me um encontro no dia seguinte, logo de manhã, antes da sessão de ginástica.
Acordo cedo e tonifico os músculos com água fria. Utilizo mesmo maquilhagem para atenuar os riscos escuros debaixo dos olhos. Esfrego os pulsos com perfume, cuspo na biqueira de um sapato em que esfrego um pano. Compro flores e começa a chover. Na paragem de autocarros, as pessoas empurram-se, protestam contra os atrasos. Tenho frio nos pés ensopados, o cabelo escorre água e colou-se à testa. Os ponteiros do meu relógio escondem-se debaixo do vapor do vidro, mas pararam, o mecanismo está inundado.
Quando chego ao hotel, rodo a cabeça, procurando-a entre os turistas e os carrinhos com malas. Avanço para o piso do ginásio e encosto-me ao vidro. Ela corre em cima de um tapete rolante, com auscultadores nos ouvidos. Continuo à espera, até que ela enrola uma toalha à volta do pescoço e passa por mim, sem perceber que sou eu:
“Desculpe, atrasei-me por causa da chuva.”
Ela pressiona o botão do elevador, muitas vezes, como se pudesse acelerar o mecanismo, e quando me aproximo e lhe entrego as flores:
“Eu não me lembro de si, deve estar enganado.”
Em casa decido telefonar-lhe para o quarto. Identifico-me, claro que ela se lembra de mim, e as flores, comprei-lhe mais flores, combinávamos amanhã, outra oportunidade, eu prometo que não me atraso, apanho um táxi, levanto-me mais cedo. Mas ela não responde. Na minha casa, uma divisão, ouve-se apenas uma torneira deficiente, pingando no lavatório. Olho o colchão, sem cama, onde gostaria de a deitar. Imagino-a a sair da casa de banho, desviando-se do sofá e atirando-se para os lençóis, o cão do vizinho sem ladrar, os relógios numa gaveta, o telefone desligado, longe da minha orelha:
“O senhor está a incomodar a minha mulher. Ela já disse que não o conhece. Não volte a ligar.”
No armário encontro o bastão, serro-o ao meio e escondo-o dentro do casaco. Vou castigar o homem que a impede de falar comigo, o homem que me quer roubar, o homem a quem esmagarei o crânio. Continua a chover, dias e dias a chover assim, e desta vez avanço na passadeira, misturo-me com as pessoas que querem chegar a casa. Alguém me empurra, mas nem me olha, continuando, sem me pedir desculpa, como se eu não tivesse carne.
Quando me aproximo do hotel, encontro -a, o homem agarra-a, obriga-a a entrar no táxi, talvez pressione uma pistola contra as suas costelas, a ameace de violação, lhe assegure um castigo. Vou magoá-lo como ele me quer magoar, com este bastão que afinal deixo ficar no casaco, porque os pés agora sem se moverem, outra vez os calcanhares sobre o passeio, as pontas dos sapatos sem apoio, balanço o corpo quando o táxi arranca, ela encosta a cabeça ao vidro, mas nem se despede. E por isso continuo aqui, observando as pessoas que atravessam a rua, analisando os condutores, batendo no vidro de um carro que acaba de obedecer à cor do semáforo:
“Não quero incomodá-la. Mas, lembra-se de mim?”
terça-feira, dezembro 09, 2003
Come fly with me
Depois de vestir as calças, Kalashnikov percorre o apartamento descalço, atravessa a família na cozinha – um pai que mastiga, os irmãos calados, a mãe levantando-se para servir mais um prato – e abre a porta do frigorífico para beber leite pelo pacote. Regressa ao quarto, sem olhar para as pessoas que se sentam à mesa, distante da pergunta:
“Não vens almoçar?”
Na rua acende um cigarro e enfia um boné. Kalashnikov tem nome de metralhadora porque dispara palavras, como se falasse sozinho, e gosta de magoar. Os rapazes saltam do muro para cumprimentá-lo. Encaixam as mãos, tocam os ombros, passam os cigarros de erva. Quase todos têm uma película de pele sobre a pele, cicatrizes de balas ou facas, elevações sobre um osso, mesmo ao lado de um órgão vital. Permanecem na sombra do muro, sem camisas, regando-se com garrafas de água. O carro da Polícia passa devagar, cada vez mais devagar, cruzando o calor que se pode ver à superfície do alcatrão, ligando a sirene e depois desligando-a, para assustar os adolescentes que seguram o sexo por cima das calças e que lançam o fumo dos cigarros para a estrada.
Kalashnikov manobra uma faca, treina-se para um combate. Há um mês que deixou de estudar, conseguindo dinheiro através dos roubos. Levanta-se com a faca na mão, ao lado do corpo, e observa os namorados de fim-de-semana, as famílias que saem das lojas com sacos de comida. Toda a tranquilidade feliz o incomoda. No outro lado da rua aparece o Arquitecto, um casaco, camisa e gravata, meias dentro dos sapatos, como se o seu corpo conseguisse suportar ao calor. Kalashnikov sempre odiou o Arquitecto, gostaria de castigá-lo por aparecer com mulheres que depois abandonam apartamento a meio da noite, ou de magoá-lo por nunca se assustar com os insultos dos adolescentes no muro, nem com o lixo acumulado nas sarjetas, nem com as pedras que rebentam com os vidros dos carros.
Kalashnikov atravessa a estrada e ataca o Arquitecto pela costas, um murro que atinge o pescoço e a faca que atravessa a carne entre duas costelas, lascando o osso sem atingir os pulmões. O Arquitecto está agora sentado, encostado à parede, e Kalashnikov põe-lhe um pé no ombro, procurando esmagar-lhe uma clavícula:
“És tão bonito não és?”
Os outros adolescentes atacam os bolsos do Arquitecto, procuram uma carteira, arrancam–lhe o relógio. Depois começam a correr, empurrando as pessoas nos passeios, atingindo-os nas costas, derrubando aqueles que não se desviam. Outros adolescentes juntam-se ao grupo em cada esquina, gritam para anunciar a passagem, sentem-se cada vez mais poderosos, seguindo a liderança de Kalashnikov que abre o peito como se corresse para um adversário.
No supermercado derrubam prateleiras, lançam carne aos clientes, latas de conservas, roubam tudo aquilo de que não precisam. Quando um segurança agarra um dos adolescentes pelos cabelos e o imobiliza com um joelho nas costas, Kalashnikov pontapeia-lhe a boca e ri-se ao ver o sangue escorrendo nas gengivas, continuando depois com os pontapés, repetindo o som dos sapatos contra a caixa torácica, como se o corpo fosse apenas uma mala de viagem, sem reacção, sem se ouvir uma fractura. E embora o segurança já nem apare os golpes com os braços, Kalashnikov continua a procurar partes do corpo para destruir.
Os adolescentes dispersam, dividem-se, saltam muros quando os carros da Polícia aceleram e ligam as sirenes, insistindo no ruído para assustar os criminosos. Kalashnikov corre, os músculos das pernas queimam, sente as virilhas encharcadas, os pés a escorregar dentro dos ténis:
“Anda cá.”
É uma rapariga, no outro lado da rua, Betsy, que se sentava atrás de Kalashnikov no autocarro para a escola:
“Eu ajudo-te.”
E sobem as escadas, entram no apartamento, onde fitas de papel vibram atadas às ventoinhas. Betsy entrega-lhe uma toalha e um copo com água e gelo. Ficam sentados na bancada da cozinha, o rádio emite música desde o quarto. Conversam sobre os outros adolescentes, as pessoas que conhecem, aquilo que gostariam de ser. Kalashnikov mente muitas vezes, cria uma personagem, acrescenta riqueza e crueldade a todos os crimes que protagonizou.
Começa a anoitecer, mas o calor ainda se sente nas paredes da casa, no sons abafados que se ouvem na rua, tubos de escape, chinelos no passeio, mães que chamam as crianças para casa, e no cheiro da gasolina, da comida, das pessoas que chegam da praia. Betsy desaperta o botão das calças de Kalashnikov, empurra a palma de uma mão contra os abdominais, sobe para o pescoço e agarra-lhe os cabelos:
“Já beijaste alguma rapariga?”
O corpo de Kalashnikov recua, as mãos apoiadas na bancada, a cara que se afasta, olhando para a janela, denunciando a mentira:
“Claro que sim. Pensas que sou um miúdo?”
E Betsy sorri, afunda os dedos dentro das calças de Kalashnikov, beija-o, lambe-lhe os lábios, agarra-lhe numa mão e pousa-a sobre uma mama, depois movimenta-lhe os dedos sobre o mamilo, empurrando o ventre contra a coxa de Kalashnikov, roçando o sexo no tecido das calças, para cima, para baixo, até que as pernas cedem e Betsy suspende a respiração, geme quase nada, crava-lhe as unhas num ombro, depois volta a respirar, ainda de olhos fechados:
“Obrigada. Mas agora tens de ir embora. Os meus pais estão a chegar.”
Kalashnikov olha para o próprio corpo, estranho, diferente, o sexo duro, inacabado, uma dor que descobre quando sai do prédio, como se tivesse que tocar-se, aliviar o sofrimento. Quando chega a casa, a família continua à mesa. A mãe oferece-lhe melancia, um copo de sumo, fatias de pão, mas Kalashnikov apaga a luz do corredor, entra no quarto sem responder, liga uma ventoinha e abre uma caixa de madeira de onde tira um saco. Em cima uma revista corta a erva com uma tesoura, mistura tabaco que despeja para uma mortalha. Enrola, fuma e, com as calças pelos joelhos, começa a masturbar-se.
Mas distrai-se, ouvindo as vozes da família, uma televisão, pneus que sobem o passeio para estacionar um carro, uma sequência de sons cada vez mais limpos por causa da erva. Ou as ideias que se demoram pouco tempo. Esquece-se daquilo que estava a pensar, projectos de assaltos, as mamas de Betsy, brancas, com sardas, a crescerem, e o sexo empurrado contra as suas calças, alastrando uma mancha de humidade no tecido. Kalashnikov está nu, o corpo sobre a cama, as imagens agradam-lhe, o calor adormece-o ainda mais, mas sabe que a erva lhe come as memórias e por isso interrompe a masturbação para escrever num papel:
Começar um diário
Assaltar um banco
Roubar um descapotável
Fugir com a Betsy
Depois de vestir as calças, Kalashnikov percorre o apartamento descalço, atravessa a família na cozinha – um pai que mastiga, os irmãos calados, a mãe levantando-se para servir mais um prato – e abre a porta do frigorífico para beber leite pelo pacote. Regressa ao quarto, sem olhar para as pessoas que se sentam à mesa, distante da pergunta:
“Não vens almoçar?”
Na rua acende um cigarro e enfia um boné. Kalashnikov tem nome de metralhadora porque dispara palavras, como se falasse sozinho, e gosta de magoar. Os rapazes saltam do muro para cumprimentá-lo. Encaixam as mãos, tocam os ombros, passam os cigarros de erva. Quase todos têm uma película de pele sobre a pele, cicatrizes de balas ou facas, elevações sobre um osso, mesmo ao lado de um órgão vital. Permanecem na sombra do muro, sem camisas, regando-se com garrafas de água. O carro da Polícia passa devagar, cada vez mais devagar, cruzando o calor que se pode ver à superfície do alcatrão, ligando a sirene e depois desligando-a, para assustar os adolescentes que seguram o sexo por cima das calças e que lançam o fumo dos cigarros para a estrada.
Kalashnikov manobra uma faca, treina-se para um combate. Há um mês que deixou de estudar, conseguindo dinheiro através dos roubos. Levanta-se com a faca na mão, ao lado do corpo, e observa os namorados de fim-de-semana, as famílias que saem das lojas com sacos de comida. Toda a tranquilidade feliz o incomoda. No outro lado da rua aparece o Arquitecto, um casaco, camisa e gravata, meias dentro dos sapatos, como se o seu corpo conseguisse suportar ao calor. Kalashnikov sempre odiou o Arquitecto, gostaria de castigá-lo por aparecer com mulheres que depois abandonam apartamento a meio da noite, ou de magoá-lo por nunca se assustar com os insultos dos adolescentes no muro, nem com o lixo acumulado nas sarjetas, nem com as pedras que rebentam com os vidros dos carros.
Kalashnikov atravessa a estrada e ataca o Arquitecto pela costas, um murro que atinge o pescoço e a faca que atravessa a carne entre duas costelas, lascando o osso sem atingir os pulmões. O Arquitecto está agora sentado, encostado à parede, e Kalashnikov põe-lhe um pé no ombro, procurando esmagar-lhe uma clavícula:
“És tão bonito não és?”
Os outros adolescentes atacam os bolsos do Arquitecto, procuram uma carteira, arrancam–lhe o relógio. Depois começam a correr, empurrando as pessoas nos passeios, atingindo-os nas costas, derrubando aqueles que não se desviam. Outros adolescentes juntam-se ao grupo em cada esquina, gritam para anunciar a passagem, sentem-se cada vez mais poderosos, seguindo a liderança de Kalashnikov que abre o peito como se corresse para um adversário.
No supermercado derrubam prateleiras, lançam carne aos clientes, latas de conservas, roubam tudo aquilo de que não precisam. Quando um segurança agarra um dos adolescentes pelos cabelos e o imobiliza com um joelho nas costas, Kalashnikov pontapeia-lhe a boca e ri-se ao ver o sangue escorrendo nas gengivas, continuando depois com os pontapés, repetindo o som dos sapatos contra a caixa torácica, como se o corpo fosse apenas uma mala de viagem, sem reacção, sem se ouvir uma fractura. E embora o segurança já nem apare os golpes com os braços, Kalashnikov continua a procurar partes do corpo para destruir.
Os adolescentes dispersam, dividem-se, saltam muros quando os carros da Polícia aceleram e ligam as sirenes, insistindo no ruído para assustar os criminosos. Kalashnikov corre, os músculos das pernas queimam, sente as virilhas encharcadas, os pés a escorregar dentro dos ténis:
“Anda cá.”
É uma rapariga, no outro lado da rua, Betsy, que se sentava atrás de Kalashnikov no autocarro para a escola:
“Eu ajudo-te.”
E sobem as escadas, entram no apartamento, onde fitas de papel vibram atadas às ventoinhas. Betsy entrega-lhe uma toalha e um copo com água e gelo. Ficam sentados na bancada da cozinha, o rádio emite música desde o quarto. Conversam sobre os outros adolescentes, as pessoas que conhecem, aquilo que gostariam de ser. Kalashnikov mente muitas vezes, cria uma personagem, acrescenta riqueza e crueldade a todos os crimes que protagonizou.
Começa a anoitecer, mas o calor ainda se sente nas paredes da casa, no sons abafados que se ouvem na rua, tubos de escape, chinelos no passeio, mães que chamam as crianças para casa, e no cheiro da gasolina, da comida, das pessoas que chegam da praia. Betsy desaperta o botão das calças de Kalashnikov, empurra a palma de uma mão contra os abdominais, sobe para o pescoço e agarra-lhe os cabelos:
“Já beijaste alguma rapariga?”
O corpo de Kalashnikov recua, as mãos apoiadas na bancada, a cara que se afasta, olhando para a janela, denunciando a mentira:
“Claro que sim. Pensas que sou um miúdo?”
E Betsy sorri, afunda os dedos dentro das calças de Kalashnikov, beija-o, lambe-lhe os lábios, agarra-lhe numa mão e pousa-a sobre uma mama, depois movimenta-lhe os dedos sobre o mamilo, empurrando o ventre contra a coxa de Kalashnikov, roçando o sexo no tecido das calças, para cima, para baixo, até que as pernas cedem e Betsy suspende a respiração, geme quase nada, crava-lhe as unhas num ombro, depois volta a respirar, ainda de olhos fechados:
“Obrigada. Mas agora tens de ir embora. Os meus pais estão a chegar.”
Kalashnikov olha para o próprio corpo, estranho, diferente, o sexo duro, inacabado, uma dor que descobre quando sai do prédio, como se tivesse que tocar-se, aliviar o sofrimento. Quando chega a casa, a família continua à mesa. A mãe oferece-lhe melancia, um copo de sumo, fatias de pão, mas Kalashnikov apaga a luz do corredor, entra no quarto sem responder, liga uma ventoinha e abre uma caixa de madeira de onde tira um saco. Em cima uma revista corta a erva com uma tesoura, mistura tabaco que despeja para uma mortalha. Enrola, fuma e, com as calças pelos joelhos, começa a masturbar-se.
Mas distrai-se, ouvindo as vozes da família, uma televisão, pneus que sobem o passeio para estacionar um carro, uma sequência de sons cada vez mais limpos por causa da erva. Ou as ideias que se demoram pouco tempo. Esquece-se daquilo que estava a pensar, projectos de assaltos, as mamas de Betsy, brancas, com sardas, a crescerem, e o sexo empurrado contra as suas calças, alastrando uma mancha de humidade no tecido. Kalashnikov está nu, o corpo sobre a cama, as imagens agradam-lhe, o calor adormece-o ainda mais, mas sabe que a erva lhe come as memórias e por isso interrompe a masturbação para escrever num papel:
Começar um diário
Assaltar um banco
Roubar um descapotável
Fugir com a Betsy
quinta-feira, dezembro 04, 2003
O Messias, finalmente
Lá fora as pessoas amam-me. Neste quarto há uma mulher de joelhos para me apertar os sapatos. Outra mulher cuida de pentear-me. Com as calças nos tornozelos apareço na janela e a multidão começa a gritar, oferecendo-se para me servir. Todos querem estar junto de mim.
O mundo é lindo. Não. Eu explico melhor. O meu mundo é lindo. O outro é uma merda, uma vez que as pessoas disparam à queima-roupa, os doentes morrem sozinhos e os carros saltam da estrada e eliminam famílias dentro da chapa. Nesse outro mundo há enterros sem audiência, depressões a pedir comprimidos e a certeza de que as pessoas são muito piores que os animais que comem as próprias crias.
Mas o meu mundo é lindo. Imaginem tudo o que já foi inventado, todos os filmes, livros, músicas, todas as imagens de felicidade alguma vez produzidas. Esse é o meu mundo, e milhares de pessoas que esperam que eu desça sobre um palco, através de uma corda pendurada num helicóptero. Quando a luzes me mostrarem, e a minha voz se ouvir no sistema de som, aquelas pessoas tornar-se-ão personagens do meu mundo.
Brinco com eles, como se fossem bonecos, como se fossem crianças que acreditam que a obediência os recompensará. Levanto a mão e eles imitam-me, cantam as palavras que inventei, choram, esmagando-se uns contra os outros, procurando estar mais próximos do palco. Os seguranças estão instruídos para me trazerem um casal de namorados entre a sétima e a oitava canção. Aparecem, quase adolescentes, e ele queria ser como eu, e ela queria casar-se comigo. Começo a despi-los, digo para ficarem nus, os corpos encontram-se ampliados nos ecrãs gigantes, prontos para aceitar as minhas ordens. Os bailarinos apertam o rapaz, lambem-lhe os ombros, sobem-lhe os dedos pelas pernas, e a rapariga procura beijar-me, treme as mãos quando me abraça e eu lhe ocupo a boca com a minha língua. Depois envio-os de volta para a multidão, com a minha assinatura numa omoplata e num pulso, sem roupa, mas outra vez anónimos, inúteis, desempregados, potenciais assassinos, embora seguros de que mudaram para sempre porque me conheceram.
O guitarrista inicia um solo para que eu possa regressar ao meu camarim. Os convidados recebem-me com um aplauso, levantam as cabeças das travessas com cocaína ou tiram da boca o gargalo de uma garrafa. Procedem ao ritual da felicidade, dançam em cima da mobília e comportam-se como aprenderam em todas as revistas, filmes ou programas de televisão. O meu mundo, mesmo sendo um cópia, é o melhor mundo. Encontro a mulher que ateou fogo à cortina da casa de banho do meu quarto de hotel. Nessa mesma noite, atacou a empregada que queria fazer as camas, marcou-lhe as bochechas com os anéis e mostrou-me os cabelos da empregada presos nas suas unhas com verniz. Mas a agressão – inspirada numa reportagem sobre os elementos de uma banda que morreram de overdose – não me provocou qualquer entusiasmo. Decido oferecer-lhe o peixe cru que está a ser preparado por um cozinheiro oriental. Ela informa-me que é alérgica, que a pele muda de cor e que pode iniciar um processo de asfixia. Seguro numa colher que encho com peixe cru e peço-lhe para abrir a boca. Ela mastiga como se me quisesse provar que está inocente, que me obedece e que lhe agradam os sacrifícios.
Não autorizo que as mulheres que desconheço aproximem a boca da minha cara. Conseguiram entrar neste avião privado depois de passarem pelos seguranças que só oferecem passes a quem os chupa nas casa de banho de plástico dos concertos. Outras mulheres leram sobre o meu fascínio por espartilhos e aparecem com o tronco apertado, a circulação falha nos vasos sanguíneos da cara, partem uma costela, quase deixam de respirar.
Um elemento de outra banda, convidado para viajar comigo, cospe whisky e acusa-me de plagiar uma música. Em pé, em cima do banco, desrespeita o sinal que nos obriga a apertar os cintos. Os motores do avião trabalham depressa, lá fora a pista parece mais rápida nas janelas, a fuselagem inclina-se, levantamos do chão quando uma garrafa atravessa os bancos e me acerta num joelho. Os outros convidados avançam para participar em mais uma cena de violência, começam a arrancar os bancos, a chicotear as assistentes de bordo, a morder as mãos de quem procura responder às agressões.
Estou sozinho, num banco de madeira, num mundo que já não é meu. Desagrada-me estar aqui. Os pilotos alertaram as autoridades e quando aterrámos esperavam-me umas algemas e fotos de frente, de lado, e outra vez de lado. Tenho o indicador da mão direita manchado com tinta. Espero que me venham buscar, porque eu não preciso de um castigo ou de uma morte para ser um mártir. Sou adorado. Há muitas pessoas que dependem de mim, daquilo que eu tenho para lhes dizer ou ensinar. Por minha causa, há paraplégicos que voltaram a andar, crianças com cancro que abandonaram camas de hospital, adolescentes que cancelaram um suicídio. Eu sou a salvação, a prova de que existe um mundo alternativo, só precisam de me seguir, de me obedeceder. Vocês são os meus filhos, as minhas cópias, seres infelizes que apenas conseguem fugir do mundo estragado onde vivem quando me ouvem cantar. Vocês precisam de mim para sobreviver. De outra maneira, matavam-se, ainda mais, todos os dias, com violência, até desaparecerem.
Lá fora as pessoas amam-me. Neste quarto há uma mulher de joelhos para me apertar os sapatos. Outra mulher cuida de pentear-me. Com as calças nos tornozelos apareço na janela e a multidão começa a gritar, oferecendo-se para me servir. Todos querem estar junto de mim.
O mundo é lindo. Não. Eu explico melhor. O meu mundo é lindo. O outro é uma merda, uma vez que as pessoas disparam à queima-roupa, os doentes morrem sozinhos e os carros saltam da estrada e eliminam famílias dentro da chapa. Nesse outro mundo há enterros sem audiência, depressões a pedir comprimidos e a certeza de que as pessoas são muito piores que os animais que comem as próprias crias.
Mas o meu mundo é lindo. Imaginem tudo o que já foi inventado, todos os filmes, livros, músicas, todas as imagens de felicidade alguma vez produzidas. Esse é o meu mundo, e milhares de pessoas que esperam que eu desça sobre um palco, através de uma corda pendurada num helicóptero. Quando a luzes me mostrarem, e a minha voz se ouvir no sistema de som, aquelas pessoas tornar-se-ão personagens do meu mundo.
Brinco com eles, como se fossem bonecos, como se fossem crianças que acreditam que a obediência os recompensará. Levanto a mão e eles imitam-me, cantam as palavras que inventei, choram, esmagando-se uns contra os outros, procurando estar mais próximos do palco. Os seguranças estão instruídos para me trazerem um casal de namorados entre a sétima e a oitava canção. Aparecem, quase adolescentes, e ele queria ser como eu, e ela queria casar-se comigo. Começo a despi-los, digo para ficarem nus, os corpos encontram-se ampliados nos ecrãs gigantes, prontos para aceitar as minhas ordens. Os bailarinos apertam o rapaz, lambem-lhe os ombros, sobem-lhe os dedos pelas pernas, e a rapariga procura beijar-me, treme as mãos quando me abraça e eu lhe ocupo a boca com a minha língua. Depois envio-os de volta para a multidão, com a minha assinatura numa omoplata e num pulso, sem roupa, mas outra vez anónimos, inúteis, desempregados, potenciais assassinos, embora seguros de que mudaram para sempre porque me conheceram.
O guitarrista inicia um solo para que eu possa regressar ao meu camarim. Os convidados recebem-me com um aplauso, levantam as cabeças das travessas com cocaína ou tiram da boca o gargalo de uma garrafa. Procedem ao ritual da felicidade, dançam em cima da mobília e comportam-se como aprenderam em todas as revistas, filmes ou programas de televisão. O meu mundo, mesmo sendo um cópia, é o melhor mundo. Encontro a mulher que ateou fogo à cortina da casa de banho do meu quarto de hotel. Nessa mesma noite, atacou a empregada que queria fazer as camas, marcou-lhe as bochechas com os anéis e mostrou-me os cabelos da empregada presos nas suas unhas com verniz. Mas a agressão – inspirada numa reportagem sobre os elementos de uma banda que morreram de overdose – não me provocou qualquer entusiasmo. Decido oferecer-lhe o peixe cru que está a ser preparado por um cozinheiro oriental. Ela informa-me que é alérgica, que a pele muda de cor e que pode iniciar um processo de asfixia. Seguro numa colher que encho com peixe cru e peço-lhe para abrir a boca. Ela mastiga como se me quisesse provar que está inocente, que me obedece e que lhe agradam os sacrifícios.
Não autorizo que as mulheres que desconheço aproximem a boca da minha cara. Conseguiram entrar neste avião privado depois de passarem pelos seguranças que só oferecem passes a quem os chupa nas casa de banho de plástico dos concertos. Outras mulheres leram sobre o meu fascínio por espartilhos e aparecem com o tronco apertado, a circulação falha nos vasos sanguíneos da cara, partem uma costela, quase deixam de respirar.
Um elemento de outra banda, convidado para viajar comigo, cospe whisky e acusa-me de plagiar uma música. Em pé, em cima do banco, desrespeita o sinal que nos obriga a apertar os cintos. Os motores do avião trabalham depressa, lá fora a pista parece mais rápida nas janelas, a fuselagem inclina-se, levantamos do chão quando uma garrafa atravessa os bancos e me acerta num joelho. Os outros convidados avançam para participar em mais uma cena de violência, começam a arrancar os bancos, a chicotear as assistentes de bordo, a morder as mãos de quem procura responder às agressões.
Estou sozinho, num banco de madeira, num mundo que já não é meu. Desagrada-me estar aqui. Os pilotos alertaram as autoridades e quando aterrámos esperavam-me umas algemas e fotos de frente, de lado, e outra vez de lado. Tenho o indicador da mão direita manchado com tinta. Espero que me venham buscar, porque eu não preciso de um castigo ou de uma morte para ser um mártir. Sou adorado. Há muitas pessoas que dependem de mim, daquilo que eu tenho para lhes dizer ou ensinar. Por minha causa, há paraplégicos que voltaram a andar, crianças com cancro que abandonaram camas de hospital, adolescentes que cancelaram um suicídio. Eu sou a salvação, a prova de que existe um mundo alternativo, só precisam de me seguir, de me obedeceder. Vocês são os meus filhos, as minhas cópias, seres infelizes que apenas conseguem fugir do mundo estragado onde vivem quando me ouvem cantar. Vocês precisam de mim para sobreviver. De outra maneira, matavam-se, ainda mais, todos os dias, com violência, até desaparecerem.
quarta-feira, dezembro 03, 2003
# 48, Wickoff Street, Apt 25, Brooklyn, New York
‘No hay dolor en la voz. Aquí solo existe la tierra.
La tierra con sus puertas de siempre’
Panorama Ciego de Nueva York, Federico García Lorca
Sabes que vivo sempre à frente, que subo todas as escadas a correr e que me imagino já a caminho de outro lugar. Para isso é preciso pouca bagagem, não olhar muitas vezes para trás, esquecer o valor dos objectos. Mas há imagens que transporto, que carrego, um peso nos pulmões, bocados no avesso da carne que às vezes me dificultam as palavras. Como quando desligámos o telefone, eu aqui, tu noutro continente. Começaste por falar da luz, dos teus alunos, e depois entrámos na inevitabilidade de estarmos longe. Somos pessoas que escolhem magoar-se em vez de viver enganadas. Não mentimos. E por isso cancelas a viagem a Lisboa, dizes que não poderias visitar-me, dormir comigo, para depois, uma semana depois, regressares a casa. Somos pragmáticos, dizemos, como se a palavra fosse um analgésico, ou uma absolvição. Ou continuamos: “É melhor assim”, ou, “Não vamos deixar de falar”, ou ainda, “Sabes que és muito importante”. E mesmo que tudo isto seja verdade pareço agora um insecto em redor de uma lâmpada, incapaz de fugir das imagens de antes, dos lugares comuns, às vezes ridículos, que afinal têm todas as pessoas que fodem, ou que fazem amor, ou que dormem procurando a proximidade da pele do outro corpo na cama.
É por isso que regresso ao teu apartamento. Cuidavas de mim, os copos de vinho, o queijo deixado sobre a língua, as pernas a abraçarem-me o corpo todo, uma tempestade sempre que estávamos na cama, o colchão em vez de lençóis, a mobília que mudava de lugar. Ou a tranquilidade da manhã – cuidavas sempre de mim– quando esperavas que acordasse, um jornal, o leite, o pão, o doce, os passeios nas ruas de Brooklyn, em cima do rio, quando sabia já que me ia custar tanto abandonar Manhattan. Pensei escrever sobre isto muito vezes, sobre o livro que me compraste no Upper West Side, o passeio por TriBeCa, observando as pessoas que trabalham nos escritórios até de madrugada. Mas sabes que prefiro carregar as imagens sem dizer nada.
Porque eu não quero escrever sobre mim, sobre o teu corpo cobrindo a cama, ou num jardim onde os cães saltavam para morder a água que saía de uma boca de incêndio, ou na ombreira da porta, admirando-me o sono:
“For my darling who is never at rest.”
Não és apenas tu, sou eu, o meu corpo todo à espera de outra coisa qualquer, menos isto, uma espécie de morte na rua, no outro lado da janela, pessoas que não sorriem, que viram a cara, esta cidade submersa, em câmara ardente, tudo aquilo que me prova que não quero viver aqui. Sinto-me um estrangeiro, mesmo que se fale a minha língua, aborreço-me, desagradam-me os costumes. Talvez eu seja um equívoco, um erro demográfico, e é por isso que me preparo para sair, levando um livro de Al Berto onde encontro:
“Nasci neste país de água por engano.”
Porque quando estou mal ando para a frente, não me enterro, não me mato, paro de me queixar e proíbo-me de escrever à volta do umbigo. Desculpa a enumeração das imagens, uma vez mais. Mas agora, para substituir tudo o que me incomoda – sei que é o antídoto mais fácil – quero apenas as tuas sandálias, os livros que espiava quando saías para comprar comida, o apartamento sem antena de televisão, a viagem de metro do Upper East Side até Brooklyn. Ou pelo menos a travessia que o meu corpo, com as mãos nos bolsos e as golas levantadas, fazia pela cidade, sozinho, à procura, à caça, encontrando sempre algo de improvável. Sei que amanhã estará tudo bem – cuidavas de mim – que vamos falar pelo telefone cada vez menos, e que escolherei outra cidade. Não te preocupes comigo. Lembra-te apenas de quando adormecíamos, com os músculos magoados, depois do sexo, e a cama, a ventoinha, as paredes, a humidade, o calor em Brooklyn, tudo tão branco. Era Agosto em Nova Iorque e a mesma música na sala. Disse-te que apenas ficava triste uma vez por ano. É verdade. E nem sequer é hoje.
‘No hay dolor en la voz. Aquí solo existe la tierra.
La tierra con sus puertas de siempre’
Panorama Ciego de Nueva York, Federico García Lorca
Sabes que vivo sempre à frente, que subo todas as escadas a correr e que me imagino já a caminho de outro lugar. Para isso é preciso pouca bagagem, não olhar muitas vezes para trás, esquecer o valor dos objectos. Mas há imagens que transporto, que carrego, um peso nos pulmões, bocados no avesso da carne que às vezes me dificultam as palavras. Como quando desligámos o telefone, eu aqui, tu noutro continente. Começaste por falar da luz, dos teus alunos, e depois entrámos na inevitabilidade de estarmos longe. Somos pessoas que escolhem magoar-se em vez de viver enganadas. Não mentimos. E por isso cancelas a viagem a Lisboa, dizes que não poderias visitar-me, dormir comigo, para depois, uma semana depois, regressares a casa. Somos pragmáticos, dizemos, como se a palavra fosse um analgésico, ou uma absolvição. Ou continuamos: “É melhor assim”, ou, “Não vamos deixar de falar”, ou ainda, “Sabes que és muito importante”. E mesmo que tudo isto seja verdade pareço agora um insecto em redor de uma lâmpada, incapaz de fugir das imagens de antes, dos lugares comuns, às vezes ridículos, que afinal têm todas as pessoas que fodem, ou que fazem amor, ou que dormem procurando a proximidade da pele do outro corpo na cama.
É por isso que regresso ao teu apartamento. Cuidavas de mim, os copos de vinho, o queijo deixado sobre a língua, as pernas a abraçarem-me o corpo todo, uma tempestade sempre que estávamos na cama, o colchão em vez de lençóis, a mobília que mudava de lugar. Ou a tranquilidade da manhã – cuidavas sempre de mim– quando esperavas que acordasse, um jornal, o leite, o pão, o doce, os passeios nas ruas de Brooklyn, em cima do rio, quando sabia já que me ia custar tanto abandonar Manhattan. Pensei escrever sobre isto muito vezes, sobre o livro que me compraste no Upper West Side, o passeio por TriBeCa, observando as pessoas que trabalham nos escritórios até de madrugada. Mas sabes que prefiro carregar as imagens sem dizer nada.
Porque eu não quero escrever sobre mim, sobre o teu corpo cobrindo a cama, ou num jardim onde os cães saltavam para morder a água que saía de uma boca de incêndio, ou na ombreira da porta, admirando-me o sono:
“For my darling who is never at rest.”
Não és apenas tu, sou eu, o meu corpo todo à espera de outra coisa qualquer, menos isto, uma espécie de morte na rua, no outro lado da janela, pessoas que não sorriem, que viram a cara, esta cidade submersa, em câmara ardente, tudo aquilo que me prova que não quero viver aqui. Sinto-me um estrangeiro, mesmo que se fale a minha língua, aborreço-me, desagradam-me os costumes. Talvez eu seja um equívoco, um erro demográfico, e é por isso que me preparo para sair, levando um livro de Al Berto onde encontro:
“Nasci neste país de água por engano.”
Porque quando estou mal ando para a frente, não me enterro, não me mato, paro de me queixar e proíbo-me de escrever à volta do umbigo. Desculpa a enumeração das imagens, uma vez mais. Mas agora, para substituir tudo o que me incomoda – sei que é o antídoto mais fácil – quero apenas as tuas sandálias, os livros que espiava quando saías para comprar comida, o apartamento sem antena de televisão, a viagem de metro do Upper East Side até Brooklyn. Ou pelo menos a travessia que o meu corpo, com as mãos nos bolsos e as golas levantadas, fazia pela cidade, sozinho, à procura, à caça, encontrando sempre algo de improvável. Sei que amanhã estará tudo bem – cuidavas de mim – que vamos falar pelo telefone cada vez menos, e que escolherei outra cidade. Não te preocupes comigo. Lembra-te apenas de quando adormecíamos, com os músculos magoados, depois do sexo, e a cama, a ventoinha, as paredes, a humidade, o calor em Brooklyn, tudo tão branco. Era Agosto em Nova Iorque e a mesma música na sala. Disse-te que apenas ficava triste uma vez por ano. É verdade. E nem sequer é hoje.