sexta-feira, outubro 31, 2003
O que eu quero ser agora
Como em todas as outras manhãs, a minha mãe pergunta-me se estou feliz. Eu respondo-lhe que sou demasiado precoce para acreditar na felicidade que ela imagina para os filhos. Os meus irmãos penteiam-se durante todo o pequeno almoço. Estão a preparar-se para o evento que – mesmo sem saberem – vai mudar as suas vidas.
O mais novo sempre impressionou os pediatras, coisas relacionadas com as capacidades cognitivas. Aprendeu a ler quando os outro miúdos ainda nem sabiam esticar a mão para anunciarem a vontade de se sentarem numa retrete. O mais velho vai agora estudar para a universidade. Quer ser médico e ajudar as pessoas pobres e as outras que morrem à fome em África. Recebeu imensos prémios, inventou um instrumento que é hoje utilizado por cirurgiões, saltava muito alto e incentivava o trabalho junto de velhos a quem é preciso mudar as fraldas. Os meus pais vão oferecer-lhe uma viagem à Europa para ver cidades onde eu poderia caminhar sem mapa. É que já li muitos livros. Já viajei muito, sou a pessoa mais brilhante desta família de pessoas brilhantes. Mas não sou uma redundância dos meus familiares, nem sequer uma versão melhorada. Sou algo diferente, algo que nunca se viu.
É por isso que estão todos a olhar para mim. Escolheram sapatos por estrear e andam de um lado para o outro tocando nos objectos sem lhes dar uso, como fazem todas as pessoas que não conseguem esperar. Eu digo-lhes que é apenas o meu aniversário e que 15 anos na vida de um génio não representam ainda uma mudança na História do Mundo. Mas minto-lhes. Esta é uma das minhas capacidades, a ilusão, os gestos de mãos sem um tremor sequer, as palavras a acertarem no lugar certo das frases. Eu existo para vencer. Basta entrar numa sala e as pessoas sabem que algo se alterou.
Agora eles só têm que me deixar sozinho. Digo ao meu pai para me entregar a chave de um dos carros e, devido às minhas capacidades, ele autoriza-me a conduzir. Garanto-lhes que estarei em casa às cinco da tarde quando começará uma festa com professores, cientistas, políticas e jornalistas de televisão. Este ano o bolo será tão grandioso que ficará no jardim da casa.
Estou ao volante, atravessando a cidade, controlando o carro com uma precisão que apenas os condutores profissionais da velocidade poderiam copiar. Paro nos semáforos e pondero se as crianças que atravessam a rua deveriam ser personagens a incluir no meu projecto. Todas, umas atrás das outras, as mão dadas, caminham sobre o alcatrão, sem saberem que eu as poderia tornar em pessoas que seriam recordadas em monumentos de pedra. As crianças serão sempre necessárias em redor dos génios, porque lhe providenciam uma inocência que eles não possuem mas de que necessitam para conviverem com os outros homens. Abro a porta e agarro numa criança. Sento-a no banco de trás e ponho-lhe o cinto. Ela gosta da música que se ouve na rádio. Conversamos como se ela fosse um adulto. Vai ser a primeira testemunha.
Quando comecei a andar queria ser um super-herói, mas nunca lhes compreendi as máscaras, o altruísmo anónimo, como se a fama fosse possível sem reconhecimento do público. Depois, quando comecei a descobrir as incapacidades dos outros, desejei ser General, conquistar-lhes as casas, lançá-los em campos de concentração. Com a descoberta da masturbação e das mulheres ambicionei a veneração que os ignorantes – e os frustrados sem criatividade – oferecem aos artistas. Sempre fui o melhor em tudo o que decidi fazer. Sou alto, bonito, as raparigas gostam de mim, os rapazes querem ser meus amigos e correr tão depressa como eu corro nas aulas de ginástica. Mas tudo isto é insuficiente, não me serve, cresço demasiado depressa para que estas pessoas entendam a minha importância nas suas vidas, tudo aquilo que lhes poderei fazer, o que mudarei para sempre. É por isso que os actos que se vão seguir não poderão ser entendidos. Eles – vocês – existem numa outra fase da evolução, um dia haverá quadros nas paredes das escolas onde a vossa imagem de Homens precederá a Minha Imagem.
Os jornais falarão do que está a acontecer – tiro a criança do carro e a caixa da bagageira. Vai haver mulheres maquilhadas a falar em directo diante de câmaras como se estivessem a chorar – abro a caixa, escuto o estalar metálico dos fechos. Os vizinhos vão querer contar as vezes que me empurraram nos baloiços - começo a encaixar as peças, quando está montada, elevo-a diante da luz. E aparecerão especialistas, professores, a família, todos a procurar protagonismo por algo que nunca inventaram.
Começo agora a escolher os convidados para o evento que mudará a História da Humanidade – abro as pernas, estou em pé, não preciso sequer de me apoiar, não se ouve o meu coração, a minha pulsação cardíaca é tão baixa que posso parecer morto, esvazio os pulmões, é como se voasse, a mão molda-se ao aço, o ombro está imóvel, o dedo aproxima-se do gatilho da espingarda de precisão.
A criança olha uma última vez para a arma antes que dispare. E como a beleza e a juventude sempre foram condições necessárias para a mudança, vou iniciar a Nova História do Mundo quando apertar o gatilho e uma bala rebentar a cabeça da rapariga mais bonita da escola.
Já está. E ainda me resta uma caixa de munições.
Este é o começo de uma nova época.
Como em todas as outras manhãs, a minha mãe pergunta-me se estou feliz. Eu respondo-lhe que sou demasiado precoce para acreditar na felicidade que ela imagina para os filhos. Os meus irmãos penteiam-se durante todo o pequeno almoço. Estão a preparar-se para o evento que – mesmo sem saberem – vai mudar as suas vidas.
O mais novo sempre impressionou os pediatras, coisas relacionadas com as capacidades cognitivas. Aprendeu a ler quando os outro miúdos ainda nem sabiam esticar a mão para anunciarem a vontade de se sentarem numa retrete. O mais velho vai agora estudar para a universidade. Quer ser médico e ajudar as pessoas pobres e as outras que morrem à fome em África. Recebeu imensos prémios, inventou um instrumento que é hoje utilizado por cirurgiões, saltava muito alto e incentivava o trabalho junto de velhos a quem é preciso mudar as fraldas. Os meus pais vão oferecer-lhe uma viagem à Europa para ver cidades onde eu poderia caminhar sem mapa. É que já li muitos livros. Já viajei muito, sou a pessoa mais brilhante desta família de pessoas brilhantes. Mas não sou uma redundância dos meus familiares, nem sequer uma versão melhorada. Sou algo diferente, algo que nunca se viu.
É por isso que estão todos a olhar para mim. Escolheram sapatos por estrear e andam de um lado para o outro tocando nos objectos sem lhes dar uso, como fazem todas as pessoas que não conseguem esperar. Eu digo-lhes que é apenas o meu aniversário e que 15 anos na vida de um génio não representam ainda uma mudança na História do Mundo. Mas minto-lhes. Esta é uma das minhas capacidades, a ilusão, os gestos de mãos sem um tremor sequer, as palavras a acertarem no lugar certo das frases. Eu existo para vencer. Basta entrar numa sala e as pessoas sabem que algo se alterou.
Agora eles só têm que me deixar sozinho. Digo ao meu pai para me entregar a chave de um dos carros e, devido às minhas capacidades, ele autoriza-me a conduzir. Garanto-lhes que estarei em casa às cinco da tarde quando começará uma festa com professores, cientistas, políticas e jornalistas de televisão. Este ano o bolo será tão grandioso que ficará no jardim da casa.
Estou ao volante, atravessando a cidade, controlando o carro com uma precisão que apenas os condutores profissionais da velocidade poderiam copiar. Paro nos semáforos e pondero se as crianças que atravessam a rua deveriam ser personagens a incluir no meu projecto. Todas, umas atrás das outras, as mão dadas, caminham sobre o alcatrão, sem saberem que eu as poderia tornar em pessoas que seriam recordadas em monumentos de pedra. As crianças serão sempre necessárias em redor dos génios, porque lhe providenciam uma inocência que eles não possuem mas de que necessitam para conviverem com os outros homens. Abro a porta e agarro numa criança. Sento-a no banco de trás e ponho-lhe o cinto. Ela gosta da música que se ouve na rádio. Conversamos como se ela fosse um adulto. Vai ser a primeira testemunha.
Quando comecei a andar queria ser um super-herói, mas nunca lhes compreendi as máscaras, o altruísmo anónimo, como se a fama fosse possível sem reconhecimento do público. Depois, quando comecei a descobrir as incapacidades dos outros, desejei ser General, conquistar-lhes as casas, lançá-los em campos de concentração. Com a descoberta da masturbação e das mulheres ambicionei a veneração que os ignorantes – e os frustrados sem criatividade – oferecem aos artistas. Sempre fui o melhor em tudo o que decidi fazer. Sou alto, bonito, as raparigas gostam de mim, os rapazes querem ser meus amigos e correr tão depressa como eu corro nas aulas de ginástica. Mas tudo isto é insuficiente, não me serve, cresço demasiado depressa para que estas pessoas entendam a minha importância nas suas vidas, tudo aquilo que lhes poderei fazer, o que mudarei para sempre. É por isso que os actos que se vão seguir não poderão ser entendidos. Eles – vocês – existem numa outra fase da evolução, um dia haverá quadros nas paredes das escolas onde a vossa imagem de Homens precederá a Minha Imagem.
Os jornais falarão do que está a acontecer – tiro a criança do carro e a caixa da bagageira. Vai haver mulheres maquilhadas a falar em directo diante de câmaras como se estivessem a chorar – abro a caixa, escuto o estalar metálico dos fechos. Os vizinhos vão querer contar as vezes que me empurraram nos baloiços - começo a encaixar as peças, quando está montada, elevo-a diante da luz. E aparecerão especialistas, professores, a família, todos a procurar protagonismo por algo que nunca inventaram.
Começo agora a escolher os convidados para o evento que mudará a História da Humanidade – abro as pernas, estou em pé, não preciso sequer de me apoiar, não se ouve o meu coração, a minha pulsação cardíaca é tão baixa que posso parecer morto, esvazio os pulmões, é como se voasse, a mão molda-se ao aço, o ombro está imóvel, o dedo aproxima-se do gatilho da espingarda de precisão.
A criança olha uma última vez para a arma antes que dispare. E como a beleza e a juventude sempre foram condições necessárias para a mudança, vou iniciar a Nova História do Mundo quando apertar o gatilho e uma bala rebentar a cabeça da rapariga mais bonita da escola.
Já está. E ainda me resta uma caixa de munições.
Este é o começo de uma nova época.
terça-feira, outubro 28, 2003
Aquilo que nunca me sairá do sangue
Está tudo tão arrumado nesta casa, os aquecimentos a funcionar, os livros ordenados no quarto e, no entanto, continuo a não conseguir lançar as palavras até onde elas deveriam chegar. Logo agora que o conforto é diário, que não uso relógio no pulso, que encontro tempo para pensar enquanto levito nas ruas da cidade. Hoje até comprei a farinha que misturavas no leite porque quis andar para trás. Como se procurasse regressar à cozinha onde me aproximavas a colher da boca, elogiando-me os olhos, enquanto me observavas com a mesma cara das fotografias – desculpa, mas apenas me lembro da tua cara nas fotografias, deixaste de ter carne, espessura e muito menos cheiro.
Estou seguro que recordas a minha inquietação física e que sabes que nenhum conforto me consegue sossegar. Garanto-te que estou igual, como se ficar no mesmo sítio – uma cidade, um texto, uma pessoa – fosse uma sentença de eternidade para o meu aborrecimento. Já não ando de patins no terraço, é verdade, mas continuo a andar de um lado para o outro, mesmo que seja dentro da cabeça.
Olho para o planeta e começo a contar o número de mortos nas notícias. São números, não perturbam ninguém, impressionam-me muito mais as pessoas, como uma cara sem expressão que aparece no canto do ecrã. Escuto que atacaram a sede de uma organização humanitária, morreram pessoas que apenas queriam ajudar. E penso como as ideias políticas – seja qual for o lado da guerra – são tantas vezes o melhor instrumento para iniciar o nossa natureza assassina.
E, de repente, quando caminho da sala para a cozinha, tenho outra vez a boca cheia de um nome que me inquietou tantas vezes:
“Valmeri Camejo”
A criança que vi nos braços de um médico, emergindo dos escombros, enquanto a mãe parecia desfazer-se a cada soluço de choro. Estava na Venezuela e parei na estrada para dar água a pessoas que levavam a vida à costas depois das inundações – um frigorífico, um filho, às vezes apenas um saco com alguma roupa. Era a primeira vez que compreendia o sofrimento dos outros e, no regresso a casa, procurei relativizar as comichões no ego que designava por angustias. Havia pessoas com feridas sem solução.
Não está mais ninguém nesta casa, mas penso muito em outras pessoas, algumas que receio que me faltem, outras que me magoam pela sua ausência. Como o amigo que encontrei deitado numa cama – não pode ser ele, parece-se com uma pessoa doente – apenas porque se distraiu numa curva. E está ali, sem falar, está ali e é tão absurdo, não há qualquer lógica ou sequer justiça de Deus.
Hoje, porque chove, ou porque sou incapaz de encaixar o que sinto naquilo que escrevo – não fiques preocupada, é uma patologia de quem escreve, ficar sempre aquém, ser insuficiente – hoje, dizia-te, estou com muito mais frio do que é costume. Mas não pode ser tristeza, deixei de chorar e talvez sejas a culpada, desaprendi, já não sei como se faz.
Lembro-me de Stephen King que chorou depois de ver um mau filme, confessando que, após ter sido atropelado, perdera a capacidade para gerir as emoções. Hoje vejo-me assim, como se a cabeça estivesse danificada. Mas é apenas a chuva, sabes como me incomoda o mau tempo. Daqui a nada as nuvens desaparecem e prometo que vou levantar-me, escrever e sair de casa. E mesmo que apareças no corredor – sei que não podes aparecer –, mesmo que grites quando ouvires bater a porta:
“Onde vais a esta hora? Vem imediatamente para a mesa.”
Vais ter que me ir procurar a outro lugar, onde estarei a escrever uma obra prima e onde me encontrarás de guarda levantada, pronto a viver com aqueles que são muito melhores pessoas do que alguma vez eu serei, aqueles que morrem com bombas, em acidentes e terramotos – afinal, tudo aquilo a que se poderia chamar uma falha humana provocada por Deus. Vais ter que me procurar, porque são raras as pessoas – tu eras uma delas – que me conseguem fazer ficar quieto, sem vontade de partir outra vez.
Está tudo tão arrumado nesta casa, os aquecimentos a funcionar, os livros ordenados no quarto e, no entanto, continuo a não conseguir lançar as palavras até onde elas deveriam chegar. Logo agora que o conforto é diário, que não uso relógio no pulso, que encontro tempo para pensar enquanto levito nas ruas da cidade. Hoje até comprei a farinha que misturavas no leite porque quis andar para trás. Como se procurasse regressar à cozinha onde me aproximavas a colher da boca, elogiando-me os olhos, enquanto me observavas com a mesma cara das fotografias – desculpa, mas apenas me lembro da tua cara nas fotografias, deixaste de ter carne, espessura e muito menos cheiro.
Estou seguro que recordas a minha inquietação física e que sabes que nenhum conforto me consegue sossegar. Garanto-te que estou igual, como se ficar no mesmo sítio – uma cidade, um texto, uma pessoa – fosse uma sentença de eternidade para o meu aborrecimento. Já não ando de patins no terraço, é verdade, mas continuo a andar de um lado para o outro, mesmo que seja dentro da cabeça.
Olho para o planeta e começo a contar o número de mortos nas notícias. São números, não perturbam ninguém, impressionam-me muito mais as pessoas, como uma cara sem expressão que aparece no canto do ecrã. Escuto que atacaram a sede de uma organização humanitária, morreram pessoas que apenas queriam ajudar. E penso como as ideias políticas – seja qual for o lado da guerra – são tantas vezes o melhor instrumento para iniciar o nossa natureza assassina.
E, de repente, quando caminho da sala para a cozinha, tenho outra vez a boca cheia de um nome que me inquietou tantas vezes:
“Valmeri Camejo”
A criança que vi nos braços de um médico, emergindo dos escombros, enquanto a mãe parecia desfazer-se a cada soluço de choro. Estava na Venezuela e parei na estrada para dar água a pessoas que levavam a vida à costas depois das inundações – um frigorífico, um filho, às vezes apenas um saco com alguma roupa. Era a primeira vez que compreendia o sofrimento dos outros e, no regresso a casa, procurei relativizar as comichões no ego que designava por angustias. Havia pessoas com feridas sem solução.
Não está mais ninguém nesta casa, mas penso muito em outras pessoas, algumas que receio que me faltem, outras que me magoam pela sua ausência. Como o amigo que encontrei deitado numa cama – não pode ser ele, parece-se com uma pessoa doente – apenas porque se distraiu numa curva. E está ali, sem falar, está ali e é tão absurdo, não há qualquer lógica ou sequer justiça de Deus.
Hoje, porque chove, ou porque sou incapaz de encaixar o que sinto naquilo que escrevo – não fiques preocupada, é uma patologia de quem escreve, ficar sempre aquém, ser insuficiente – hoje, dizia-te, estou com muito mais frio do que é costume. Mas não pode ser tristeza, deixei de chorar e talvez sejas a culpada, desaprendi, já não sei como se faz.
Lembro-me de Stephen King que chorou depois de ver um mau filme, confessando que, após ter sido atropelado, perdera a capacidade para gerir as emoções. Hoje vejo-me assim, como se a cabeça estivesse danificada. Mas é apenas a chuva, sabes como me incomoda o mau tempo. Daqui a nada as nuvens desaparecem e prometo que vou levantar-me, escrever e sair de casa. E mesmo que apareças no corredor – sei que não podes aparecer –, mesmo que grites quando ouvires bater a porta:
“Onde vais a esta hora? Vem imediatamente para a mesa.”
Vais ter que me ir procurar a outro lugar, onde estarei a escrever uma obra prima e onde me encontrarás de guarda levantada, pronto a viver com aqueles que são muito melhores pessoas do que alguma vez eu serei, aqueles que morrem com bombas, em acidentes e terramotos – afinal, tudo aquilo a que se poderia chamar uma falha humana provocada por Deus. Vais ter que me procurar, porque são raras as pessoas – tu eras uma delas – que me conseguem fazer ficar quieto, sem vontade de partir outra vez.
segunda-feira, outubro 27, 2003
Um dia como outro qualquer
Manhã
Porque não sabe escrever, Mandrake Maneta gosta de falar. Enquanto Dona Lulu caminha para a paragem de ônibus, o filho conta-lhe o que ouviu às mulheres dos outros barracos. Coisas sobre homens que chegam a casa com o cheiro da cachaça ou uma camisa que roubaram do estendal. O discurso pára quando se ouve o motor do ônibus, e a cabeça forrada a carapinha de Mandrake é agarrada pelas têmporas. A mãe pousa-lhe os lábios nos caracóis que nunca se desfazem:
“Um dia cê vai sê como o senhô da TV. Vai morá lá no Rio. Deus te abençoe.”
Mandrake Maneta entra nas ruas onde inicia o trabalho do engano e o consequente número que o faz desaparecer. Desde criança que pratica truques com cartas e a velocidade nas curvas. Não há ninguém que o apanhe. Com sete anos já distribuía maconha para o Telinha, criminoso que aprende tudo através da televisão, sem sair de casa, viciando-se em documentários.
No dia em que informaram Telinha da visita dos polícias, encontraram Mandrake no chão, os olhos brancos e a língua imobilizada pelos vapores da cola que ainda estava dentro do saco de plástico. Carregaram o corpo para a casa de Telinha que depressa finalizou o interrogatório:
“Cê contou alguma coisa prá eles? Se não fala é porque é culpado.”
E como acabara de assistir a um documentário sobre os castigos praticados na Idade Média, Telinha pediu um machado e cortou-lhe uma das mãos:
“Não trabalha mais prá mim não, filho dá putá.”
Mandrake transformou-se em Mandrake Maneta. Nunca mais cheirou cola e começou uma actividade de profissional sem patrão, roubando carteiras no ônibus ou vendendo maconha a adolescentes de colégio privado.
Tarde
A boca de uma mulher acorda Ramilson Marmelo. A saliva aquece-lhe o sexo. Mas o sono impede o resto do corpo de responder. Está nu sobre o colchão. Tem a pistola debaixo da almofada. Mantém os olhos fechados e procura conciliar o prazer da sonolência com os movimentos da boca da mulher. Ela aumenta a velocidade quando suspeita que Ramilson vai ejacular. E, depois, continua, mesmo que comece já a sentir a carne a amolecer dentro da boca. Até que Ramilson contrai os músculos e se desvia, protege-se, como se o sexo fosse um dente vulnerável a um cubo de gelo. Ela quer beijá-lo nos lábios e com língua, ele desvia a cara e levanta-se, procura a pistola, caminha para a casa de banho:
“Não vem com essa boca prá cima de mim não vagabunda que eu meto bala em tu.”
Até sair do quarto, Ramilson Marmelo, sargento condecorado da Polícia Militar, não se aproxima da mulher. Veste a roupa, e verifica a cara no espelho quando passa pela casa de banho, procurando alguma marca de dentes na pele. Antes de fechar a porta olha para o relógio:
“Puta merda tou atrasado.”
Na recepção descobre um homem que o olha, de cima para baixo, parando na pistola que se encontra presa entre as calças e a barriga:
“Cê tá olhando o quê ó pálhaço? Vai trabalhá. Esse mundo tá cheio de merdas que não faiz nada.”
O carro da Polícia Militar está estacionado diante da pensão. Todos os sábados, durante a noite, Ramilson percorre as ruas da cidade à procura de uma prostituta. Gosta de mulheres com mamas grandes. Pára o carro e abre o vidro. Elas assustam-se e ensaiam uma normalidade falsa, como se fosse possível ocultar os sapatos, o perfume, ou a forma como as nádegas se movimentam assim que se caminham para a janela de um carro. O medo da polícia permite a Ramilson noites de sexo sem pagar. Mas regressa sempre a casa, todos os domingos, para almoçar com a família.
Noite
Depois de engomar camisas e de lavar retretes no apartamento do Doutor, Dona Lulu atravessa a cidade, mudando várias vezes de ônibus. Carrega os sacos do supermercado sozinha. O marido viajou para a Europa para trabalhar mas nunca escreveu. O filho mais velho substituiu a mão de Mandrake Maneta na organização de Telinha. A mãe implorou-lhe que continuasse a vender isqueiros nas ruas do centro da cidade. Mas Telinha acabara de ver um documentário sobre criminosos que se tornavam missionários e decidiu contratar o irmão de Mandrake. O dinheiro e o respeito de trabalhar para Telinha seriam restituídos à casa de Dona Lulu.
A mãe desce do ônibus e encontra Mandrake a fumar numa esquina. Os outros miúdos - não estudam mas assaltam à porta das escolas – mostram um rádio roubado. O irmão de Mandrake aparece na outra esquina, o corpo derrapando quando faz a curva, a boca a gritar palavras que não se compreendem mas que denunciam medo.
Ao volante vai Ramilson Marmelo. Os outros homens são colegas da Polícia Militar. Tal como o corpo do irmão de Mandrake, na curva, as rodas da carrinha perdem a aderência, a traseira roça um muro. Os homens assustam-se, mas sabem que têm armas nas mãos e que a velocidade faz parte da caça aos bandidos que vivem sem castigo.
Dona Lulu mantém-se no passeio, os sacos prolongando o tamanho dos braços. Os filhos estão juntos, na rua, fugindo na mesma direcção. Os homens saem da carrinha, as caras cobertas por capuzes, e disparam. Algumas crianças morrem, outras escondem-se e agarram em pistolas. Dona Lulu sente um músculo a arder. Depois a perna deixa de existir, sem força, a carne cede à bala e o corpo da mulher cai sobre o alcatrão.
Ela sabe que não vai morrer. Mas assusta-se com os filhos, protegidos por uma vedação, aparecendo apenas para disparar sobre os homens que os atacam, os purificadores que querem enterrar o lixo humano. O tiroteio continua, mas Dona Lulu fecha os olhos.
Ramilson Marmelo é interrogado na dia seguinte. A mulher e os filhos garantem que nunca saiu de casa. O irmão mais velho de Mandrake Maneta ficou sem maxilar e língua. Mas continua a entregar sacos de droga. Dona Lulu está em casa, sentada numa cadeira, diante de uma televisão oferecida por Telinha, um sábio dos processos de redenção. No funeral de Mandrake Maneta não apareceu ninguém. Os vizinhos não choraram. E a mãe acreditou que era apenas mais um truque de mágico. Talvez o corpo com a cara desfeita pelos tiros não fosse o filho. Ele apareceria a qualquer momento para a mãe aplaudir.
Telinha vestiu-se de negro. Pôs uma gravata. Abandonou a televisão. Chegou tarde ao cemitério mas leu um texto da Bíblia para Dona Lulu. E depois acrescentou com a certeza de um profeta:
“A vida aqui não vale nada mesmo.”
Manhã
Porque não sabe escrever, Mandrake Maneta gosta de falar. Enquanto Dona Lulu caminha para a paragem de ônibus, o filho conta-lhe o que ouviu às mulheres dos outros barracos. Coisas sobre homens que chegam a casa com o cheiro da cachaça ou uma camisa que roubaram do estendal. O discurso pára quando se ouve o motor do ônibus, e a cabeça forrada a carapinha de Mandrake é agarrada pelas têmporas. A mãe pousa-lhe os lábios nos caracóis que nunca se desfazem:
“Um dia cê vai sê como o senhô da TV. Vai morá lá no Rio. Deus te abençoe.”
Mandrake Maneta entra nas ruas onde inicia o trabalho do engano e o consequente número que o faz desaparecer. Desde criança que pratica truques com cartas e a velocidade nas curvas. Não há ninguém que o apanhe. Com sete anos já distribuía maconha para o Telinha, criminoso que aprende tudo através da televisão, sem sair de casa, viciando-se em documentários.
No dia em que informaram Telinha da visita dos polícias, encontraram Mandrake no chão, os olhos brancos e a língua imobilizada pelos vapores da cola que ainda estava dentro do saco de plástico. Carregaram o corpo para a casa de Telinha que depressa finalizou o interrogatório:
“Cê contou alguma coisa prá eles? Se não fala é porque é culpado.”
E como acabara de assistir a um documentário sobre os castigos praticados na Idade Média, Telinha pediu um machado e cortou-lhe uma das mãos:
“Não trabalha mais prá mim não, filho dá putá.”
Mandrake transformou-se em Mandrake Maneta. Nunca mais cheirou cola e começou uma actividade de profissional sem patrão, roubando carteiras no ônibus ou vendendo maconha a adolescentes de colégio privado.
Tarde
A boca de uma mulher acorda Ramilson Marmelo. A saliva aquece-lhe o sexo. Mas o sono impede o resto do corpo de responder. Está nu sobre o colchão. Tem a pistola debaixo da almofada. Mantém os olhos fechados e procura conciliar o prazer da sonolência com os movimentos da boca da mulher. Ela aumenta a velocidade quando suspeita que Ramilson vai ejacular. E, depois, continua, mesmo que comece já a sentir a carne a amolecer dentro da boca. Até que Ramilson contrai os músculos e se desvia, protege-se, como se o sexo fosse um dente vulnerável a um cubo de gelo. Ela quer beijá-lo nos lábios e com língua, ele desvia a cara e levanta-se, procura a pistola, caminha para a casa de banho:
“Não vem com essa boca prá cima de mim não vagabunda que eu meto bala em tu.”
Até sair do quarto, Ramilson Marmelo, sargento condecorado da Polícia Militar, não se aproxima da mulher. Veste a roupa, e verifica a cara no espelho quando passa pela casa de banho, procurando alguma marca de dentes na pele. Antes de fechar a porta olha para o relógio:
“Puta merda tou atrasado.”
Na recepção descobre um homem que o olha, de cima para baixo, parando na pistola que se encontra presa entre as calças e a barriga:
“Cê tá olhando o quê ó pálhaço? Vai trabalhá. Esse mundo tá cheio de merdas que não faiz nada.”
O carro da Polícia Militar está estacionado diante da pensão. Todos os sábados, durante a noite, Ramilson percorre as ruas da cidade à procura de uma prostituta. Gosta de mulheres com mamas grandes. Pára o carro e abre o vidro. Elas assustam-se e ensaiam uma normalidade falsa, como se fosse possível ocultar os sapatos, o perfume, ou a forma como as nádegas se movimentam assim que se caminham para a janela de um carro. O medo da polícia permite a Ramilson noites de sexo sem pagar. Mas regressa sempre a casa, todos os domingos, para almoçar com a família.
Noite
Depois de engomar camisas e de lavar retretes no apartamento do Doutor, Dona Lulu atravessa a cidade, mudando várias vezes de ônibus. Carrega os sacos do supermercado sozinha. O marido viajou para a Europa para trabalhar mas nunca escreveu. O filho mais velho substituiu a mão de Mandrake Maneta na organização de Telinha. A mãe implorou-lhe que continuasse a vender isqueiros nas ruas do centro da cidade. Mas Telinha acabara de ver um documentário sobre criminosos que se tornavam missionários e decidiu contratar o irmão de Mandrake. O dinheiro e o respeito de trabalhar para Telinha seriam restituídos à casa de Dona Lulu.
A mãe desce do ônibus e encontra Mandrake a fumar numa esquina. Os outros miúdos - não estudam mas assaltam à porta das escolas – mostram um rádio roubado. O irmão de Mandrake aparece na outra esquina, o corpo derrapando quando faz a curva, a boca a gritar palavras que não se compreendem mas que denunciam medo.
Ao volante vai Ramilson Marmelo. Os outros homens são colegas da Polícia Militar. Tal como o corpo do irmão de Mandrake, na curva, as rodas da carrinha perdem a aderência, a traseira roça um muro. Os homens assustam-se, mas sabem que têm armas nas mãos e que a velocidade faz parte da caça aos bandidos que vivem sem castigo.
Dona Lulu mantém-se no passeio, os sacos prolongando o tamanho dos braços. Os filhos estão juntos, na rua, fugindo na mesma direcção. Os homens saem da carrinha, as caras cobertas por capuzes, e disparam. Algumas crianças morrem, outras escondem-se e agarram em pistolas. Dona Lulu sente um músculo a arder. Depois a perna deixa de existir, sem força, a carne cede à bala e o corpo da mulher cai sobre o alcatrão.
Ela sabe que não vai morrer. Mas assusta-se com os filhos, protegidos por uma vedação, aparecendo apenas para disparar sobre os homens que os atacam, os purificadores que querem enterrar o lixo humano. O tiroteio continua, mas Dona Lulu fecha os olhos.
Ramilson Marmelo é interrogado na dia seguinte. A mulher e os filhos garantem que nunca saiu de casa. O irmão mais velho de Mandrake Maneta ficou sem maxilar e língua. Mas continua a entregar sacos de droga. Dona Lulu está em casa, sentada numa cadeira, diante de uma televisão oferecida por Telinha, um sábio dos processos de redenção. No funeral de Mandrake Maneta não apareceu ninguém. Os vizinhos não choraram. E a mãe acreditou que era apenas mais um truque de mágico. Talvez o corpo com a cara desfeita pelos tiros não fosse o filho. Ele apareceria a qualquer momento para a mãe aplaudir.
Telinha vestiu-se de negro. Pôs uma gravata. Abandonou a televisão. Chegou tarde ao cemitério mas leu um texto da Bíblia para Dona Lulu. E depois acrescentou com a certeza de um profeta:
“A vida aqui não vale nada mesmo.”
sexta-feira, outubro 24, 2003
Vai devagar
Para o Ricardo e Teresinha
Quando falhaste a curva ias sozinho. Nunca mais nos voltámos a ver. Mas não quero encontrar-te assim, os pulsos mais magros, sentado numa cadeira, a língua imóvel dentro da boca, sem seres capaz de receber-me com a violência dos abraços que nós, os homens, nunca poderíamos abandonar.
Guiavas sempre depressa. Assustava-me a dedicação que entregavas aos carros e à velocidade. Chegavas mesmo a acompanhar as corridas dos profissionais da condução, na beira da estrada, para admirar os automóveis que levantavam as rodas e que lançavam poeira para os olhos dos espectadores.
Na manhã do acidente – apenas me telefonaram à tarde, já estavas no hospital – talvez quisesses ser como eles. Mas não acertaste. E é por isso que ainda hoje me recuso a assumir que já não apareces na praia, o teu corpo enorme, para recordares episódios do colégio ou suspenderes o discurso quando encontravas as pernas de alguma mulher que fugia à rebentação.
Contigo nunca conversei sobre motores, pneus, ou velocímetros. Como sabes, sempre achei que os carros são instrumentos utilitários. Não lhes reconheço beleza e raramente me oferecem prazer. Mas compreendia a tua vontade de seres veloz, afinal, o mesmo fascínio que outros experimentam com vícios, pessoas ou objectos. Eu dava-te tudo isso de graça. Até ao dia em que fugiste à trajectória e deixaste de me visitar.
Não é apenas pelo que aconteceu contigo, mas sucede tornar-me violento quando descubro que há criminosos a organizar corridas sobre pontes e auto-estradas, os carros com os faróis desligados, a vertigem de poderem acabar numa cama, mudos, com o sistema nervoso às escuras.
Eu gosto do risco. Mas o que estes criminosos de corrida não compreendem – como é que não compreendem? – é que a fragilidade da vida se acentua ainda mais sempre que carregam no pedal do acelerador. Se querem emoção, saltem de pára-quedas. Se errarem, estão sozinhos, não levam ninguém que deslize, sem culpa, na outra faixa da estrada.
Eu sei que haverá sempre a possibilidade de um desconhecido agarrar numa pistola, sair para a rua, e disparar ao acaso depois de enlouquecer. Talvez uma das balas atravesse uma janela, rebente um vidro, terminando na jugular de alguém que se transportava da sala à cozinha. A polícia aparecerá depois de tudo. E dir-se-á que ninguém poderia prever a loucura.
Mesmo sabendo como se morre na estrada, os criminosos usam um carro como quem dispara uma pistola ao acaso. Mas o que estes corredores fazem não é resultado de uma loucura que não se pode evitar. É apenas o mais perigoso género de estupidez – a voluntária, a assassina, que mata não apenas os protagonistas, mas os outros.
Canso-me da alarvidade humana. E, quando reajo, começo também a transformar-me num animal doente. Às vezes gostava que as rotas de emigração incluissem outros planetas, lugares onde o absurdo do teu silêncio não fosse autorizado. Depois sossego, escuto as novidades, vejo os gestos do teu irmão – alarga os braços diante da cara e executa um círculo como se quisesse devorar o mundo – e recebo o relato sobre o nascimento da Teresinha. Diz-me que ela é linda. Eu acredito e recupero-te, estando já certo de que vou entrar no teu quarto e que me vais reconhecer. Claro que me vais reconhecer.
Para o Ricardo e Teresinha
Quando falhaste a curva ias sozinho. Nunca mais nos voltámos a ver. Mas não quero encontrar-te assim, os pulsos mais magros, sentado numa cadeira, a língua imóvel dentro da boca, sem seres capaz de receber-me com a violência dos abraços que nós, os homens, nunca poderíamos abandonar.
Guiavas sempre depressa. Assustava-me a dedicação que entregavas aos carros e à velocidade. Chegavas mesmo a acompanhar as corridas dos profissionais da condução, na beira da estrada, para admirar os automóveis que levantavam as rodas e que lançavam poeira para os olhos dos espectadores.
Na manhã do acidente – apenas me telefonaram à tarde, já estavas no hospital – talvez quisesses ser como eles. Mas não acertaste. E é por isso que ainda hoje me recuso a assumir que já não apareces na praia, o teu corpo enorme, para recordares episódios do colégio ou suspenderes o discurso quando encontravas as pernas de alguma mulher que fugia à rebentação.
Contigo nunca conversei sobre motores, pneus, ou velocímetros. Como sabes, sempre achei que os carros são instrumentos utilitários. Não lhes reconheço beleza e raramente me oferecem prazer. Mas compreendia a tua vontade de seres veloz, afinal, o mesmo fascínio que outros experimentam com vícios, pessoas ou objectos. Eu dava-te tudo isso de graça. Até ao dia em que fugiste à trajectória e deixaste de me visitar.
Não é apenas pelo que aconteceu contigo, mas sucede tornar-me violento quando descubro que há criminosos a organizar corridas sobre pontes e auto-estradas, os carros com os faróis desligados, a vertigem de poderem acabar numa cama, mudos, com o sistema nervoso às escuras.
Eu gosto do risco. Mas o que estes criminosos de corrida não compreendem – como é que não compreendem? – é que a fragilidade da vida se acentua ainda mais sempre que carregam no pedal do acelerador. Se querem emoção, saltem de pára-quedas. Se errarem, estão sozinhos, não levam ninguém que deslize, sem culpa, na outra faixa da estrada.
Eu sei que haverá sempre a possibilidade de um desconhecido agarrar numa pistola, sair para a rua, e disparar ao acaso depois de enlouquecer. Talvez uma das balas atravesse uma janela, rebente um vidro, terminando na jugular de alguém que se transportava da sala à cozinha. A polícia aparecerá depois de tudo. E dir-se-á que ninguém poderia prever a loucura.
Mesmo sabendo como se morre na estrada, os criminosos usam um carro como quem dispara uma pistola ao acaso. Mas o que estes corredores fazem não é resultado de uma loucura que não se pode evitar. É apenas o mais perigoso género de estupidez – a voluntária, a assassina, que mata não apenas os protagonistas, mas os outros.
Canso-me da alarvidade humana. E, quando reajo, começo também a transformar-me num animal doente. Às vezes gostava que as rotas de emigração incluissem outros planetas, lugares onde o absurdo do teu silêncio não fosse autorizado. Depois sossego, escuto as novidades, vejo os gestos do teu irmão – alarga os braços diante da cara e executa um círculo como se quisesse devorar o mundo – e recebo o relato sobre o nascimento da Teresinha. Diz-me que ela é linda. Eu acredito e recupero-te, estando já certo de que vou entrar no teu quarto e que me vais reconhecer. Claro que me vais reconhecer.
quinta-feira, outubro 23, 2003
O preço do amor, na voz de Clemente Honório
Não deveria ser o meu pai a entrar no quarto, para abrir as persianas, ao mesmo tempo que tosse o fumo de um cigarro em jejum sobre roupa do dia. Mas as comissões militares habituaram-no a manter-se vigilante até de madrugada. Acorda-me como se eu fosse um soldado que acabou de chegar ao mato. Enquanto mantém a postura dos veteranos que andam a matar inimigos há décadas. Quando não atiro as pernas para fora da cama, vejo-lhe as falanges amarelas puxarem os cobertores para entregarem o meu corpo à casa sem aquecimento. É apenas quando saio para trabalhar que ele consegue dormir. E se me esquecer de dinheiro ou de algum documento não volto atrás. Não tenho chave e ele nunca me abriria a porta.
A urgência do meu pai obriga-me a esperar no passeio pelo autocarro. Por vezes, falha as horas e fico aqui sentado, enterrando o gorro na cabeça, multiplicando os ordenados para saber daqui a quantos anos levarei Júlia a visitar as praias do México onde conhecerá a metade hispânica da minha família. Após o divórcio, a minha mãe regressou à vila onde os turistas se embebedam e onde um vizinho guarda um crocodilo num poço porque não há recolha de lixo. O animal consegue destruir garrafas de plástico e cadeiras coxas que já não sentam ninguém. Ela diz-me que é fácil viver no México com o dinheiro que o meu pai lhe envia. Resta-me convencer Júlia de que conseguirei abrir um hotel onde os turistas possam dormir depois de vomitarem a bebedeira.
Entro no autocarro e avanço para o mesmo lugar de sempre, o último do corredor. Cumprimento os outros empregados e sento-me junto de Gino, ele do lado da janela, eu do lado de fora. Mesmo que lhe veja a indiferença e os vasos sanguíneos nos olhos, porque acabou de fumar erva, pergunto-lhe se o autocarro parou na casa de Júlia. Gino descola a cara do vidro:
“Esquece essa puta. Tu queres é uma mãe de família. Não um cu que se oferece a qualquer preto com um carro.”
Como Gino é meu amigo, mais velho, divorciado duas vezes, e é o chefe da secção de carnes do supermercado, mantenho-me mudo, sabendo, no entanto, que Júlia é uma mulher que quer casar, ter filhos e que talvez nem se importe de cozinhar num establecimento turístico na Península de Yúcatan.
Esta manhã sou responsável por mudar os preços no corredor da Higiene Pessoal. No intervalo procuro visitar Gino. Dizem-me que está no frigorífico. Alguém acrescenta que levou uma das raparigas da limpeza. Gino encosta-as aos lombos de vaca e impede-lhes a fuga. Conta-me que as mulheres gostam de ser fodidas contra a carne. E que o cheiro lhes acelera os orgasmos. É por isso que muitas das empregadas do supermercado arrastam constipações durante meses.
Regresso aos preços e às clientes que procuram desodorizantes, lâminas e anti-sépticos. Não se demoram comigo, e preferem os empregados brancos sempre que apresentam dúvidas. Ao fundo do corredor encontro a caixa 23, onde deveria estar Júlia, mas onde vejo uma gorda, pálida, com olhos azuis. Gosto das mulheres escuras, com a pele grossa nas mãos e nos cotovelos. O meu pai, branco, ordena-me que evite mulheres de outras raças. Ele casou com uma latina e depressa percebeu que não lhe suportava os cozinhados ou o cheiro dos produtos que despejava no cabelo. O meu pai costuma caminhar na sala, com as calças de camuflado, sem camisa, as chapas de identificação balançando no pescoço:
“Nem pretas, nem latinas, nem chinas.”
Mas o meu pai esquece-se que eu tenho braços curtos e um pescoço que se enterra entre os ombros. Na escola todos esperavam que eu abrisse a boca para falar com sotaque. Os estrangeiros ilegais aproximam-se nas paragens de autocarro para me pedirem informações. Eu não quero – nem posso – lançar-me às mulheres brancas.
A única vez que conversei com Júlia estávamos a morder hamburguers. Era o aniversário de uma das empregadas que Gino empurrava entre as carcaças dos porcos. Ficámos sentados no mesmo lado da mesa. Júlia tocou-me no pulso e, quando encontrou gelo no fundo do copo, pediu para beber o meu refrigerante. Vi como pousava os lábios na palhinha, sem nojo, como se fossemos namorados. Perguntou-me ainda os preços das viagens para o México, porque estava a pensar fazer férias na praia. Depois, nunca mais conversámos. Mas ela sorri-me sempre que atravesso o corredor do autocarro.
Esta noite, mais uma vez, o meu pai serve rações de combate ao jantar. É sexta-feira e lembro-me que tenho que sair de casa. Estes são os serões em que o meu pai recebe as mulheres – brancas – que conhece através de anúncios no jornal. Gino vem-me buscar de carro. E sou cúmplice na actividade de tráfico de droga. No fim-de-semana, Gino distribui e fuma erva com clientes. Hoje faz apenas duas entregas. Depois ficamos num parque de estacionamento, diante das salas de cinema, a beber cervejas. Gino fala-me das mulheres que vai levar para o frigorífico:
“Aquela puta porto-riquenha não me vai fugir.”
Gino explica-me ainda que as asiáticas são o limite. Nunca comeu uma preta e não compreende a minha paixão por Júlia:
“Tu és quase branco, foda-se.”
As pessoas saem da última sessão e aproximam-se dos carros. Vejo um preto enorme, com o tamanho de um lutador, a cabeça rapada e um comando que destranca as portas de um carro desportivo. Traz Júlia pela mão. Ela vê-me e sorri. Mas não falamos. Entram no carro e beijam-se. Vejo também as pernas de Júlia levantarem-se e os saltos dos sapatos quase que racham os vidros. Peço a Gino, que entorna erva numa mortalha, para sairmos do parque de estacionamento. Ele demora-se e depois grito:
“Liga-me esta merda de carro.”
Gino lambe a mortalha, e antes de arrancar diz:
“Eu não te disse que ela era uma puta?”
Sem papel, caneta, ou máquina calculadora, passo todo o caminho de regresso a casa a contabilizar os preços que colarei em embalagens até me tornar proprietário de um negócio no México. Quando Gino estaciona junto do passeio, imagino ainda o número de vezes que vou entrar no autocarro que demora 32 minutos a chegar ao supermercado, e continuo a esperar que os lábios gordos de Júlia se aproximem da minha orelha para confessarem que estão certos do meu sucesso.
Não deveria ser o meu pai a entrar no quarto, para abrir as persianas, ao mesmo tempo que tosse o fumo de um cigarro em jejum sobre roupa do dia. Mas as comissões militares habituaram-no a manter-se vigilante até de madrugada. Acorda-me como se eu fosse um soldado que acabou de chegar ao mato. Enquanto mantém a postura dos veteranos que andam a matar inimigos há décadas. Quando não atiro as pernas para fora da cama, vejo-lhe as falanges amarelas puxarem os cobertores para entregarem o meu corpo à casa sem aquecimento. É apenas quando saio para trabalhar que ele consegue dormir. E se me esquecer de dinheiro ou de algum documento não volto atrás. Não tenho chave e ele nunca me abriria a porta.
A urgência do meu pai obriga-me a esperar no passeio pelo autocarro. Por vezes, falha as horas e fico aqui sentado, enterrando o gorro na cabeça, multiplicando os ordenados para saber daqui a quantos anos levarei Júlia a visitar as praias do México onde conhecerá a metade hispânica da minha família. Após o divórcio, a minha mãe regressou à vila onde os turistas se embebedam e onde um vizinho guarda um crocodilo num poço porque não há recolha de lixo. O animal consegue destruir garrafas de plástico e cadeiras coxas que já não sentam ninguém. Ela diz-me que é fácil viver no México com o dinheiro que o meu pai lhe envia. Resta-me convencer Júlia de que conseguirei abrir um hotel onde os turistas possam dormir depois de vomitarem a bebedeira.
Entro no autocarro e avanço para o mesmo lugar de sempre, o último do corredor. Cumprimento os outros empregados e sento-me junto de Gino, ele do lado da janela, eu do lado de fora. Mesmo que lhe veja a indiferença e os vasos sanguíneos nos olhos, porque acabou de fumar erva, pergunto-lhe se o autocarro parou na casa de Júlia. Gino descola a cara do vidro:
“Esquece essa puta. Tu queres é uma mãe de família. Não um cu que se oferece a qualquer preto com um carro.”
Como Gino é meu amigo, mais velho, divorciado duas vezes, e é o chefe da secção de carnes do supermercado, mantenho-me mudo, sabendo, no entanto, que Júlia é uma mulher que quer casar, ter filhos e que talvez nem se importe de cozinhar num establecimento turístico na Península de Yúcatan.
Esta manhã sou responsável por mudar os preços no corredor da Higiene Pessoal. No intervalo procuro visitar Gino. Dizem-me que está no frigorífico. Alguém acrescenta que levou uma das raparigas da limpeza. Gino encosta-as aos lombos de vaca e impede-lhes a fuga. Conta-me que as mulheres gostam de ser fodidas contra a carne. E que o cheiro lhes acelera os orgasmos. É por isso que muitas das empregadas do supermercado arrastam constipações durante meses.
Regresso aos preços e às clientes que procuram desodorizantes, lâminas e anti-sépticos. Não se demoram comigo, e preferem os empregados brancos sempre que apresentam dúvidas. Ao fundo do corredor encontro a caixa 23, onde deveria estar Júlia, mas onde vejo uma gorda, pálida, com olhos azuis. Gosto das mulheres escuras, com a pele grossa nas mãos e nos cotovelos. O meu pai, branco, ordena-me que evite mulheres de outras raças. Ele casou com uma latina e depressa percebeu que não lhe suportava os cozinhados ou o cheiro dos produtos que despejava no cabelo. O meu pai costuma caminhar na sala, com as calças de camuflado, sem camisa, as chapas de identificação balançando no pescoço:
“Nem pretas, nem latinas, nem chinas.”
Mas o meu pai esquece-se que eu tenho braços curtos e um pescoço que se enterra entre os ombros. Na escola todos esperavam que eu abrisse a boca para falar com sotaque. Os estrangeiros ilegais aproximam-se nas paragens de autocarro para me pedirem informações. Eu não quero – nem posso – lançar-me às mulheres brancas.
A única vez que conversei com Júlia estávamos a morder hamburguers. Era o aniversário de uma das empregadas que Gino empurrava entre as carcaças dos porcos. Ficámos sentados no mesmo lado da mesa. Júlia tocou-me no pulso e, quando encontrou gelo no fundo do copo, pediu para beber o meu refrigerante. Vi como pousava os lábios na palhinha, sem nojo, como se fossemos namorados. Perguntou-me ainda os preços das viagens para o México, porque estava a pensar fazer férias na praia. Depois, nunca mais conversámos. Mas ela sorri-me sempre que atravesso o corredor do autocarro.
Esta noite, mais uma vez, o meu pai serve rações de combate ao jantar. É sexta-feira e lembro-me que tenho que sair de casa. Estes são os serões em que o meu pai recebe as mulheres – brancas – que conhece através de anúncios no jornal. Gino vem-me buscar de carro. E sou cúmplice na actividade de tráfico de droga. No fim-de-semana, Gino distribui e fuma erva com clientes. Hoje faz apenas duas entregas. Depois ficamos num parque de estacionamento, diante das salas de cinema, a beber cervejas. Gino fala-me das mulheres que vai levar para o frigorífico:
“Aquela puta porto-riquenha não me vai fugir.”
Gino explica-me ainda que as asiáticas são o limite. Nunca comeu uma preta e não compreende a minha paixão por Júlia:
“Tu és quase branco, foda-se.”
As pessoas saem da última sessão e aproximam-se dos carros. Vejo um preto enorme, com o tamanho de um lutador, a cabeça rapada e um comando que destranca as portas de um carro desportivo. Traz Júlia pela mão. Ela vê-me e sorri. Mas não falamos. Entram no carro e beijam-se. Vejo também as pernas de Júlia levantarem-se e os saltos dos sapatos quase que racham os vidros. Peço a Gino, que entorna erva numa mortalha, para sairmos do parque de estacionamento. Ele demora-se e depois grito:
“Liga-me esta merda de carro.”
Gino lambe a mortalha, e antes de arrancar diz:
“Eu não te disse que ela era uma puta?”
Sem papel, caneta, ou máquina calculadora, passo todo o caminho de regresso a casa a contabilizar os preços que colarei em embalagens até me tornar proprietário de um negócio no México. Quando Gino estaciona junto do passeio, imagino ainda o número de vezes que vou entrar no autocarro que demora 32 minutos a chegar ao supermercado, e continuo a esperar que os lábios gordos de Júlia se aproximem da minha orelha para confessarem que estão certos do meu sucesso.
terça-feira, outubro 21, 2003
A queda do Império
Regressar é também agarrar-me para não cair. E, por isso, equilibrava-me nas curvas ao mesmo tempo que estudava a reacção da minha amiga americana – pela primeira vez em Lisboa – esforçando-me por conseguir mostrar-lhe a cidade na ausência de vidros das janelas da carreira 28. Como Rebecca apenas consegue dizer, na minha língua:
“Obrigada.”
Não se demorou nas palavras – quase gritos – da mulher de óculos escuros, uns bancos mais à frente, que parecia procurar uma audiência que apoiasse a sua condição de vítima:
“Isto é só estrangeirada. Qualquer dia mandam em nós.”
Os outros passageiros acenavam com a cabeça com a indulgência dos indecisos, sem saber se haviam de concordar ou de contestar as afirmações da mulher de óculos escuros:
“Qualquer dia cagam-nos em cima. Portugal anda a dormir.”
E enquanto Rebecca apreciava a cidade que passava diante da janela, imaginei-a na rua, sozinha, com um mapa na mão, caminhando com a elegância dos seus sapatos altos e com a delicadeza das meninas nascidas em Boston, aproximando-se da mulher de óculos escuros para lhe pedir informações. Estou seguro que, para a mulher de óculos escuros, Rebecca não faria parte dos estrangeiros que destroem os país. Porque Rebecca é americana, turista, está de passagem, e não trabalha nas obras.
Portugal julga ser um país tolerante, uma potência colonial mais suave, avessa à violência dos espanhóis ou à arrogância dos ingleses. Mas a verdade é que Portugal nunca foi um campeão da tolerância.
Como apenas tivemos que lidar com outras gentes em lugares distantes – África, América do Sul, Ásia – julgámos ser sempre o exemplo da integração social, os inventores da beleza das mulatas, até porque Marquês de Pombal oferecia terras, no Brasil, aos portugueses que se casassem com nativas. Mas vale a pena reforçar a ideia de que sermos melhores que os outros colonizadores, não faz de nós excelentes pessoas.
Quando, depois da descolonização e, pela primeira vez, os portugueses tiveram que conviver com pessoas estranhas – que até falavam a mesma língua -, inventaram uma palavra::
“Retornado”
Que ainda hoje representa o mesmo nojo que se oferece aos aleijados, um olhar para o lado, ou uma revolta diante daqueles que nos procuravam roubar sem que pudéssemos apresentar resistência.
Mesmo com um império, não nos acostumámos às pessoas diferentes. E diante de qualquer adversidade ou insegurança, utilizamos a nacionalidade, a origem, ou raça dos outros para atacar. É muito mais fácil gritar, pela janela do carro:
“Preto dum cabrão.”
Do que dizer:
“O senhor fez uma manobra perigosa e vou chamar a polícia.”
Portugal nunca foi um país europeu – e não serão os telemóveis, os carros ou os centros comerciais que o aproximarão da Europa. Portugal nunca foi a cara da Europa, mas antes a cauda. E se as auto-estradas e os fundos comunitários não foram condições suficientes, saberemos agora – quase à força – o que é sermos europeus, partilhando, no mesmo espaço, diferentes culturas, línguas e cores de pele. São pessoas como a mulher de óculos escuros que ficarão para trás, porque o isolacionismo mental que nos caracteriza só tem remédio quando iluminado e alargado por outros estilos de vida, outras maneiras de encarar o mundo. Um remédio que só nos poderá fazer bem.
O isolamento não se prolongará. Com a chegada dos novos países à União Europeia, ou abrimos a cabeça ou ficaremos de braços cruzados, batendo com o pé no chão, esperando a solidariedade do Estado. Porque desta vez não nos valerá de nada comentar o descaramento dos estrangeiros que, de acordo com a mulher de óculos escuros:
“Vêm para cá roubar-nos o trabalho.”
Entre o provincianismo e a diversidade, entre a má língua da mulher de óculos escuros e a competência de qualquer estrangeiro, um empresário saberá por onde escolher – eu, pelo menos, saberia. Mesmo com contestação nos transportes públicos, não haverá outra alternativa. E talvez um dia a senhora de óculos escuros concorde com o comentário de um velho que se cansou de lhe ouvir os lamentos:
“Minha senhora, gente má existe em todo lado.”
Regressar é também agarrar-me para não cair. E, por isso, equilibrava-me nas curvas ao mesmo tempo que estudava a reacção da minha amiga americana – pela primeira vez em Lisboa – esforçando-me por conseguir mostrar-lhe a cidade na ausência de vidros das janelas da carreira 28. Como Rebecca apenas consegue dizer, na minha língua:
“Obrigada.”
Não se demorou nas palavras – quase gritos – da mulher de óculos escuros, uns bancos mais à frente, que parecia procurar uma audiência que apoiasse a sua condição de vítima:
“Isto é só estrangeirada. Qualquer dia mandam em nós.”
Os outros passageiros acenavam com a cabeça com a indulgência dos indecisos, sem saber se haviam de concordar ou de contestar as afirmações da mulher de óculos escuros:
“Qualquer dia cagam-nos em cima. Portugal anda a dormir.”
E enquanto Rebecca apreciava a cidade que passava diante da janela, imaginei-a na rua, sozinha, com um mapa na mão, caminhando com a elegância dos seus sapatos altos e com a delicadeza das meninas nascidas em Boston, aproximando-se da mulher de óculos escuros para lhe pedir informações. Estou seguro que, para a mulher de óculos escuros, Rebecca não faria parte dos estrangeiros que destroem os país. Porque Rebecca é americana, turista, está de passagem, e não trabalha nas obras.
Portugal julga ser um país tolerante, uma potência colonial mais suave, avessa à violência dos espanhóis ou à arrogância dos ingleses. Mas a verdade é que Portugal nunca foi um campeão da tolerância.
Como apenas tivemos que lidar com outras gentes em lugares distantes – África, América do Sul, Ásia – julgámos ser sempre o exemplo da integração social, os inventores da beleza das mulatas, até porque Marquês de Pombal oferecia terras, no Brasil, aos portugueses que se casassem com nativas. Mas vale a pena reforçar a ideia de que sermos melhores que os outros colonizadores, não faz de nós excelentes pessoas.
Quando, depois da descolonização e, pela primeira vez, os portugueses tiveram que conviver com pessoas estranhas – que até falavam a mesma língua -, inventaram uma palavra::
“Retornado”
Que ainda hoje representa o mesmo nojo que se oferece aos aleijados, um olhar para o lado, ou uma revolta diante daqueles que nos procuravam roubar sem que pudéssemos apresentar resistência.
Mesmo com um império, não nos acostumámos às pessoas diferentes. E diante de qualquer adversidade ou insegurança, utilizamos a nacionalidade, a origem, ou raça dos outros para atacar. É muito mais fácil gritar, pela janela do carro:
“Preto dum cabrão.”
Do que dizer:
“O senhor fez uma manobra perigosa e vou chamar a polícia.”
Portugal nunca foi um país europeu – e não serão os telemóveis, os carros ou os centros comerciais que o aproximarão da Europa. Portugal nunca foi a cara da Europa, mas antes a cauda. E se as auto-estradas e os fundos comunitários não foram condições suficientes, saberemos agora – quase à força – o que é sermos europeus, partilhando, no mesmo espaço, diferentes culturas, línguas e cores de pele. São pessoas como a mulher de óculos escuros que ficarão para trás, porque o isolacionismo mental que nos caracteriza só tem remédio quando iluminado e alargado por outros estilos de vida, outras maneiras de encarar o mundo. Um remédio que só nos poderá fazer bem.
O isolamento não se prolongará. Com a chegada dos novos países à União Europeia, ou abrimos a cabeça ou ficaremos de braços cruzados, batendo com o pé no chão, esperando a solidariedade do Estado. Porque desta vez não nos valerá de nada comentar o descaramento dos estrangeiros que, de acordo com a mulher de óculos escuros:
“Vêm para cá roubar-nos o trabalho.”
Entre o provincianismo e a diversidade, entre a má língua da mulher de óculos escuros e a competência de qualquer estrangeiro, um empresário saberá por onde escolher – eu, pelo menos, saberia. Mesmo com contestação nos transportes públicos, não haverá outra alternativa. E talvez um dia a senhora de óculos escuros concorde com o comentário de um velho que se cansou de lhe ouvir os lamentos:
“Minha senhora, gente má existe em todo lado.”
segunda-feira, outubro 20, 2003
The sweet smell of success
Os pais de Daniel Lee sempre cumpriram a regra de – como todas as famílias – encontrarem no filho um génio em desenvolvimento. A precocidade da criança não se revelava na escrita, na criação de fórmulas matemáticas, ou na destreza física de saltos mortais para a piscina. Daniel Lee mostrou, numa apresentação, com apenas quatro anos, que seria uma celebridade de palco. Nessa noite, entrou na sala, com pés que procuravam segurar os sapatos da mãe, e dançou como se fosse uma mulher adulta, abanou leques, movimentou os lábios para acompanhar a música das colunas, acabando o espectáculo a fazer um vénia sem que a peruca lhe caísse da cabeça. No final, todos identificaram o filme, a cena, e a actriz que a criança imitara.
No anos de liceu, Daniel Lee transformou-se num activista que queria acordar as consciências através da arte produzida por outros. E mais uma vez os pais – também os professores – julgaram ser testemunhas do processo de construção de uma estrela. Numa conversa entre a mãe de Daniel Lee e uma professora, comentaram-se futuros prémios por interpretação dramática ou mesmo condecorações oficiais.
O momento em que todos tiveram a certeza que aquele rapaz regressaria para inaugurar uma sala de espectáculos com o seu nome, aconteceu no ginásio da escola, na tarde em que Daniel Lee intrepretou, sozinho, várias personagens de diversos sucessos musicais da Broadway. O texto, a iluminação, a música e os cenários eram resultado do seu talento para copiar. As mulheres choraram e os homens apertaram os braços das cadeiras, confundidos, e envergonhados, com a sensibilidade que não queriam revelar.
Quando Daniel Lee partiu para Nova Iorque, a família, amigos e admiradores, esperaram vê-lo nos cartazes da cidade. E viver longe, partilhar um apartamento com outras pessoas, alongar os dias em audições onde dançava, cantava e exprimia o sofrimento do mundo através da expressão corporal, era apenas um processo exigido a todos os génios.
Todos estavam certos que não demoraria até que Daniel Lee deixasse de ser apenas um candidato e começasse a ser protagonista. Porque nas audições a sua voz colava-se à voz de outras celebridades, algumas já mortas, outras que emergiam muito mais depressa que Daniel Lee. As suas prestações eram idênticas aos originais. Restava apenas esperar. Até porque o trabalho e o sacrífico – ele apenas tinha dinheiro para uma refeição por dia – seriam elementos essenciais a introduzir numa autobiografia. O sucesso era inevitável.
Mas o cansaço e a perda de peso prolongaram-se durante alguns anos sem que aparecesse um papel de protagonista. Os amigos de Daniel Lee casaram e mostravam empenho na decoração das casas que pagariam até ao fim da vida. Os irmãos ofereceram sobrinhos à família. E em Nova Iorque não havia ninguém que lhe projectasse o talento numa tela de cinema. A ambição artística transformou-se então na necessidade de pagar as contas. Daniel Lee queria jantar em restaurantes. Havia roupa e sapatos para comprar, uma carpete para a sala, algumas viagens para ver o resto do planeta.
Por isso, o génio dedicou-se à imitação de apenas uma personagem. Actuava nos palcos desmontáveis de bares e de clubes. A aproximação do original era cada vez mais próxima. Os turistas estrangeiros tiravam fotografias. E o dinheiro passou a chegar, todos os meses, certo, suficiente para pagar as virtuosas mãos de um cirurgião plástico que lhe trabalhou o rosto.
Quando a cara regressou ao seu tamanho normal, após a operação, numa tarde de compras no SoHo, uma criança loira esticou o tecido da t-shirt branca que vestia e entregou-lhe uma caneta. Daniel Lee assinou pela pessoa que não era, mas com quem se parecia. E pela primeira vez, em muito anos, limpo da sua identidade, soube o que era ser importante na vida de estranhos.
Os pais de Daniel Lee sempre cumpriram a regra de – como todas as famílias – encontrarem no filho um génio em desenvolvimento. A precocidade da criança não se revelava na escrita, na criação de fórmulas matemáticas, ou na destreza física de saltos mortais para a piscina. Daniel Lee mostrou, numa apresentação, com apenas quatro anos, que seria uma celebridade de palco. Nessa noite, entrou na sala, com pés que procuravam segurar os sapatos da mãe, e dançou como se fosse uma mulher adulta, abanou leques, movimentou os lábios para acompanhar a música das colunas, acabando o espectáculo a fazer um vénia sem que a peruca lhe caísse da cabeça. No final, todos identificaram o filme, a cena, e a actriz que a criança imitara.
No anos de liceu, Daniel Lee transformou-se num activista que queria acordar as consciências através da arte produzida por outros. E mais uma vez os pais – também os professores – julgaram ser testemunhas do processo de construção de uma estrela. Numa conversa entre a mãe de Daniel Lee e uma professora, comentaram-se futuros prémios por interpretação dramática ou mesmo condecorações oficiais.
O momento em que todos tiveram a certeza que aquele rapaz regressaria para inaugurar uma sala de espectáculos com o seu nome, aconteceu no ginásio da escola, na tarde em que Daniel Lee intrepretou, sozinho, várias personagens de diversos sucessos musicais da Broadway. O texto, a iluminação, a música e os cenários eram resultado do seu talento para copiar. As mulheres choraram e os homens apertaram os braços das cadeiras, confundidos, e envergonhados, com a sensibilidade que não queriam revelar.
Quando Daniel Lee partiu para Nova Iorque, a família, amigos e admiradores, esperaram vê-lo nos cartazes da cidade. E viver longe, partilhar um apartamento com outras pessoas, alongar os dias em audições onde dançava, cantava e exprimia o sofrimento do mundo através da expressão corporal, era apenas um processo exigido a todos os génios.
Todos estavam certos que não demoraria até que Daniel Lee deixasse de ser apenas um candidato e começasse a ser protagonista. Porque nas audições a sua voz colava-se à voz de outras celebridades, algumas já mortas, outras que emergiam muito mais depressa que Daniel Lee. As suas prestações eram idênticas aos originais. Restava apenas esperar. Até porque o trabalho e o sacrífico – ele apenas tinha dinheiro para uma refeição por dia – seriam elementos essenciais a introduzir numa autobiografia. O sucesso era inevitável.
Mas o cansaço e a perda de peso prolongaram-se durante alguns anos sem que aparecesse um papel de protagonista. Os amigos de Daniel Lee casaram e mostravam empenho na decoração das casas que pagariam até ao fim da vida. Os irmãos ofereceram sobrinhos à família. E em Nova Iorque não havia ninguém que lhe projectasse o talento numa tela de cinema. A ambição artística transformou-se então na necessidade de pagar as contas. Daniel Lee queria jantar em restaurantes. Havia roupa e sapatos para comprar, uma carpete para a sala, algumas viagens para ver o resto do planeta.
Por isso, o génio dedicou-se à imitação de apenas uma personagem. Actuava nos palcos desmontáveis de bares e de clubes. A aproximação do original era cada vez mais próxima. Os turistas estrangeiros tiravam fotografias. E o dinheiro passou a chegar, todos os meses, certo, suficiente para pagar as virtuosas mãos de um cirurgião plástico que lhe trabalhou o rosto.
Quando a cara regressou ao seu tamanho normal, após a operação, numa tarde de compras no SoHo, uma criança loira esticou o tecido da t-shirt branca que vestia e entregou-lhe uma caneta. Daniel Lee assinou pela pessoa que não era, mas com quem se parecia. E pela primeira vez, em muito anos, limpo da sua identidade, soube o que era ser importante na vida de estranhos.
terça-feira, outubro 14, 2003
Tão bonitos que nós somos
Mantemos os punhos limpos, as mãos levitando acima dos pratos usados até que um empregado apareça para levar os destroços dos clientes que nos antecederam na mesa. Alguns têm gravatas porque os escritórios mandam. Outros exibem cortes de cabelo certeiros, as cores alinhadas na roupa, sapatos sem um risco de poeira. As nossas bocas articulam as melhores ideias. Não vamos mudar o mundo, sabemos isso, mas decoramos a esplanada com vozes eloquentes e iluminamos os que nos admiram. Viajamos pelo planeta e conversamos em outras línguas. Vimos tantos filmes e lemos tantos livros. Contemplamos as mulheres mais bonitas que passam por nós. Elas olham também. Estamos seguros que estariam muito melhor aqui sentadas. Somos profissionais da felicidade.
Mas num instante aparecem os dentes com nódoas, uns lábios gretados que nos pedem moedas em troca de poesia. Os pedintes invadiram a cidade, pensamos, enquanto procuramos manter a conversa. No entanto, começamos a tremer em cada frase, não conseguindo esconder o desconforto que causa aquela mulher feia, com manchas na roupa e um apelo molhado pelo excesso de saliva. Quer vender uma compilação de poemas em folhas amarrotadas e com impressões digitais de sujidade. Mas ninguém quer ouvir literatura amadora, produzida num passeio, esperando moedas na palma da mão.
A mulher senta-se à mesa. E aparecem crianças descalças, velhos cegos tocando violinos sem cordas, mulheres mudas com cartazes pendurados diante do peito de ossos, homens com os pés deformados ou sem mãos, drogados cuspindo doenças a cada mentira que inventam para nos pedirem dinheiro. A mulher diz que espera a resposta de uma editora e insiste em declamar poemas onde pessoas morrem de fome. As vozes e o odor dos miseráveis apertam-nos cada vez mais. Eles estão por todo o lado. A regra é virarmos a cara. É fácil levantarmos a mão, sem sequer falar, para que se afastem à procura de um turista com mapas e com a comiseração dos turistas. Por vezes, satisfazemo-nos quando lhes compramos um sumo, um bolo, uma refeição. Somos os homens mais bonitos e mais caridosos. Entregamos roupa que não usamos e os sapatos que se romperam nas solas. Mas sabemos que não vamos mudar o mundo.
Alguém compõe o nó da gravata quando eles desaparecem a troco do som das moedas que embatem nas moedas. E as conversas voltam a ser internacionais, sem hesitações, tão contundentes que ninguém ousaria contestar-nos. Sentimos agora que melhorámos a vida dos que existem à nossa volta. Somos funcionários da caridade. Pagamos-lhes para se irem embora, como alguns homens fazem com as putas. Porque não os queremos ver durante muito tempo. E como não acreditamos em manifestos moralistas, como dá demasiado trabalho, como sabemos que não vamos salvar o mundo, continuamos a existir apenas entre os que podem ser como nós. A sério que não podemos fazer mais do que aquilo que fazemos.
Mantemos os punhos limpos, as mãos levitando acima dos pratos usados até que um empregado apareça para levar os destroços dos clientes que nos antecederam na mesa. Alguns têm gravatas porque os escritórios mandam. Outros exibem cortes de cabelo certeiros, as cores alinhadas na roupa, sapatos sem um risco de poeira. As nossas bocas articulam as melhores ideias. Não vamos mudar o mundo, sabemos isso, mas decoramos a esplanada com vozes eloquentes e iluminamos os que nos admiram. Viajamos pelo planeta e conversamos em outras línguas. Vimos tantos filmes e lemos tantos livros. Contemplamos as mulheres mais bonitas que passam por nós. Elas olham também. Estamos seguros que estariam muito melhor aqui sentadas. Somos profissionais da felicidade.
Mas num instante aparecem os dentes com nódoas, uns lábios gretados que nos pedem moedas em troca de poesia. Os pedintes invadiram a cidade, pensamos, enquanto procuramos manter a conversa. No entanto, começamos a tremer em cada frase, não conseguindo esconder o desconforto que causa aquela mulher feia, com manchas na roupa e um apelo molhado pelo excesso de saliva. Quer vender uma compilação de poemas em folhas amarrotadas e com impressões digitais de sujidade. Mas ninguém quer ouvir literatura amadora, produzida num passeio, esperando moedas na palma da mão.
A mulher senta-se à mesa. E aparecem crianças descalças, velhos cegos tocando violinos sem cordas, mulheres mudas com cartazes pendurados diante do peito de ossos, homens com os pés deformados ou sem mãos, drogados cuspindo doenças a cada mentira que inventam para nos pedirem dinheiro. A mulher diz que espera a resposta de uma editora e insiste em declamar poemas onde pessoas morrem de fome. As vozes e o odor dos miseráveis apertam-nos cada vez mais. Eles estão por todo o lado. A regra é virarmos a cara. É fácil levantarmos a mão, sem sequer falar, para que se afastem à procura de um turista com mapas e com a comiseração dos turistas. Por vezes, satisfazemo-nos quando lhes compramos um sumo, um bolo, uma refeição. Somos os homens mais bonitos e mais caridosos. Entregamos roupa que não usamos e os sapatos que se romperam nas solas. Mas sabemos que não vamos mudar o mundo.
Alguém compõe o nó da gravata quando eles desaparecem a troco do som das moedas que embatem nas moedas. E as conversas voltam a ser internacionais, sem hesitações, tão contundentes que ninguém ousaria contestar-nos. Sentimos agora que melhorámos a vida dos que existem à nossa volta. Somos funcionários da caridade. Pagamos-lhes para se irem embora, como alguns homens fazem com as putas. Porque não os queremos ver durante muito tempo. E como não acreditamos em manifestos moralistas, como dá demasiado trabalho, como sabemos que não vamos salvar o mundo, continuamos a existir apenas entre os que podem ser como nós. A sério que não podemos fazer mais do que aquilo que fazemos.
segunda-feira, outubro 13, 2003
Os idiotas
Nesse dia vestiu um casaco que lhe dimunuía os ombros e lhe escondia as mãos. A camisa revelava que M. ainda não sabia manobrar o ferro ou que tinha que engomar a roupa sobre a colcha da cama. Mas M. era, finalmente, um adulto, sentado numa sala de aula da universidade. A família despedira-se dias antes. E como presente oferecera-lhe uma mala de pele para guardar os livros. Era tudo tão importante.
No dia em que conheci M. deveria ter ficado em casa, como fizera durante toda a semana. Mas enganei-me, as praxes prolongaram-se. E ali estava, rodeado de pós-adolescentes nervosos, esperando que os alunos mais velhos viessem com marcadores e nos pintassem a cara.
Batendo com o pé no chão, com o ritmo da ansiedade e do receio, M. conversava comigo, explicando a importância do ritual de integração, contando-me como já varrera o chão e como cantara, em cuecas e sem sapatos, em cima de um palco. Chamaram-nos então para a rua e quiseram-me atar um cordel nas calças. Eu disse que estava doente e que não podia ficar ali. Sempre me custou obedecer a ordens de pessoas que desconhecem o valor – e o perigo – da autoridade. E não gosto de ser integrado à força. A universidade não tem que ser o mesmo para todos. Eu – e imagino que outros estudantes – queria ir às aulas e regressar a casa. Ninguém é obrigado a fazer novos amigos ou representar uma cultura – a estudantil – na qual não encontra qualquer identificação.
Mas havia algo de cómico no prazer que os alunos mais velhos adquiriam quando humilhavam os caloiros. Eles tinham a graça dos tristes. Eu fui-me embora, rindo dessa pobre satisfação, embora compreendesse o desejo de M. que não conhecia ninguém na cidade e que vivia sozinho num quarto. M. esperava que o processo de humilhação resultasse em amigos, em noites de festa, em alguém a quem pedir apontamentos. Porque M. pensava que não tinha alternativa. E porque esses eram dias importantes, eram – acreditava ele – momentos decisivos para o seu sucesso académico.
As praxes, e já nem menciono os casos excessivos, apenas as brincadeiras imbecis, servem para agradar uns quantos frustrados. São um caso – lugar comum – de dar poder a quem não sabe o que é poder. Nunca reconheci autoridade a pessoas que me queriam de joelhos apenas porque tinham mais um ano de estudos. A designação:
“Veteranos.”
É tão absurda que me fez rir, sem qualquer vergonha, no dia em que cheguei para me inscrever, em Julho, e uns quantos inúteis – que deveriam estar na praia, em vez de emboscarem estudantes na secretaria – se apressaram a ameaçar-me com canetas e com um tribunal de caloiros.
As praxes são tão infantis que não podem ser levadas a sério. Se os alunos mais velhos estão preocupados com a integração dos que acabam de chegar – esse é o argumento que utilizam – então organizem jantares, reuniões, festas, sessões de perguntas e respostas. E não se satisfaçam com o poder mesquinho de mandar em alguém que esperou muito tempo para estar ali. É que para muita gente, um curso superior ainda é um salto na vida. E tal como M., que vestiu o melhor casaco e que regressava a casa dos pais resplandecendo o brilhantismo de ser um estudante universitário, há muitos alunos que acreditam que uma licenciatura é muito mais um fim – arranjar um emprego, ser doutor, subir na estrutura social – do que um meio para aprender, uma ferramenta para melhorar o chão que pisam, os outros, eles próprios. É que uma licenciatura não é uma condecoração.
É normal que a entrada na universidade seja um momento importante e que os estudantes acreditem que vai determinar o resto das suas vidas. Mas depois as pessoas crescem e compreendem que podem abandonar um curso a meio, viajar, estudar outra coisa qualquer. E que uma licenciatura não muda, dramaticamente, quem somos. O argumento tem ainda mais valor em Portugal onde - salvo algumas excepções – os cursos universitários são fracos, serôdios, e muito mais dogmáticos que estimulantes. Já para não falar das condições em que os alunos aprendem, nos edifícios podres, nos manuais datados, na falta de equipamento. Entenda-se, portanto, que as licenciaturas estão muito, mesmo muito, sobrevalorizadas. É por isso que não compreendo o orgulho dos idiotas que, por terem um cartão universitário, se julgam mais que aqueles que acabam de sair do liceu. Não há qualquer razão palpável para a vaidade com que se passeiam diante dos caloiros.
Gostaria de encontrar M. e, desta vez, descobri-lo com as mãos à vista e os ombros preenchendo o tamanho do casaco. Perguntar-lhe-ia o que ganhou em desfilar, durante todo dia, atado a outros estudantes. Ou o que lhe valeu ser obrigado a gozar com os alunos que não tinham – como ele – entrado no ensino público. Se não me respondesse, eu chegar-me-ia à frente. É que, anos depois, a estupidez e a inutilidade parecem-me imutáveis. Esse é um problema de algumas tradições, prolongam-se por demasiado tempo, opõem-se ao progresso, existem apenas por existirem, mesmo que não nos levem a lado algum.
Nesse dia vestiu um casaco que lhe dimunuía os ombros e lhe escondia as mãos. A camisa revelava que M. ainda não sabia manobrar o ferro ou que tinha que engomar a roupa sobre a colcha da cama. Mas M. era, finalmente, um adulto, sentado numa sala de aula da universidade. A família despedira-se dias antes. E como presente oferecera-lhe uma mala de pele para guardar os livros. Era tudo tão importante.
No dia em que conheci M. deveria ter ficado em casa, como fizera durante toda a semana. Mas enganei-me, as praxes prolongaram-se. E ali estava, rodeado de pós-adolescentes nervosos, esperando que os alunos mais velhos viessem com marcadores e nos pintassem a cara.
Batendo com o pé no chão, com o ritmo da ansiedade e do receio, M. conversava comigo, explicando a importância do ritual de integração, contando-me como já varrera o chão e como cantara, em cuecas e sem sapatos, em cima de um palco. Chamaram-nos então para a rua e quiseram-me atar um cordel nas calças. Eu disse que estava doente e que não podia ficar ali. Sempre me custou obedecer a ordens de pessoas que desconhecem o valor – e o perigo – da autoridade. E não gosto de ser integrado à força. A universidade não tem que ser o mesmo para todos. Eu – e imagino que outros estudantes – queria ir às aulas e regressar a casa. Ninguém é obrigado a fazer novos amigos ou representar uma cultura – a estudantil – na qual não encontra qualquer identificação.
Mas havia algo de cómico no prazer que os alunos mais velhos adquiriam quando humilhavam os caloiros. Eles tinham a graça dos tristes. Eu fui-me embora, rindo dessa pobre satisfação, embora compreendesse o desejo de M. que não conhecia ninguém na cidade e que vivia sozinho num quarto. M. esperava que o processo de humilhação resultasse em amigos, em noites de festa, em alguém a quem pedir apontamentos. Porque M. pensava que não tinha alternativa. E porque esses eram dias importantes, eram – acreditava ele – momentos decisivos para o seu sucesso académico.
As praxes, e já nem menciono os casos excessivos, apenas as brincadeiras imbecis, servem para agradar uns quantos frustrados. São um caso – lugar comum – de dar poder a quem não sabe o que é poder. Nunca reconheci autoridade a pessoas que me queriam de joelhos apenas porque tinham mais um ano de estudos. A designação:
“Veteranos.”
É tão absurda que me fez rir, sem qualquer vergonha, no dia em que cheguei para me inscrever, em Julho, e uns quantos inúteis – que deveriam estar na praia, em vez de emboscarem estudantes na secretaria – se apressaram a ameaçar-me com canetas e com um tribunal de caloiros.
As praxes são tão infantis que não podem ser levadas a sério. Se os alunos mais velhos estão preocupados com a integração dos que acabam de chegar – esse é o argumento que utilizam – então organizem jantares, reuniões, festas, sessões de perguntas e respostas. E não se satisfaçam com o poder mesquinho de mandar em alguém que esperou muito tempo para estar ali. É que para muita gente, um curso superior ainda é um salto na vida. E tal como M., que vestiu o melhor casaco e que regressava a casa dos pais resplandecendo o brilhantismo de ser um estudante universitário, há muitos alunos que acreditam que uma licenciatura é muito mais um fim – arranjar um emprego, ser doutor, subir na estrutura social – do que um meio para aprender, uma ferramenta para melhorar o chão que pisam, os outros, eles próprios. É que uma licenciatura não é uma condecoração.
É normal que a entrada na universidade seja um momento importante e que os estudantes acreditem que vai determinar o resto das suas vidas. Mas depois as pessoas crescem e compreendem que podem abandonar um curso a meio, viajar, estudar outra coisa qualquer. E que uma licenciatura não muda, dramaticamente, quem somos. O argumento tem ainda mais valor em Portugal onde - salvo algumas excepções – os cursos universitários são fracos, serôdios, e muito mais dogmáticos que estimulantes. Já para não falar das condições em que os alunos aprendem, nos edifícios podres, nos manuais datados, na falta de equipamento. Entenda-se, portanto, que as licenciaturas estão muito, mesmo muito, sobrevalorizadas. É por isso que não compreendo o orgulho dos idiotas que, por terem um cartão universitário, se julgam mais que aqueles que acabam de sair do liceu. Não há qualquer razão palpável para a vaidade com que se passeiam diante dos caloiros.
Gostaria de encontrar M. e, desta vez, descobri-lo com as mãos à vista e os ombros preenchendo o tamanho do casaco. Perguntar-lhe-ia o que ganhou em desfilar, durante todo dia, atado a outros estudantes. Ou o que lhe valeu ser obrigado a gozar com os alunos que não tinham – como ele – entrado no ensino público. Se não me respondesse, eu chegar-me-ia à frente. É que, anos depois, a estupidez e a inutilidade parecem-me imutáveis. Esse é um problema de algumas tradições, prolongam-se por demasiado tempo, opõem-se ao progresso, existem apenas por existirem, mesmo que não nos levem a lado algum.
sexta-feira, outubro 10, 2003
Agora que estás finalmente nos meus braços, regresso ao dia em que nasceste
Querido Manuel,
Escrevo-te e uma veia pulsa-me no pescoço, amarrando-me a garganta. Quando o telefone tocou estava longe de casa, o teu avô anunciou que havias chegado e os pulmões falharam-me, as cordas vocais mantiveram-se imóveis, não conseguia controlar o queixo nem o batimento cardíaco, rápido, alastrando por todos o vasos sanguíneos, apertando-me tanto que talvez tenha pensado em chorar. Estava longe de casa.
Um dia vais visitar esta cidade e vou explicar-te cada bairro, o legado que cada rua largou na minha vida, a velocidade das pessoas no passeio, alheias à felicidade que me ofereces. Um dia vou sentar-me contigo na jardim de casa e vamos escutar o estalar dos pinheiros que me acordavam durante a noite, vou falar-te de como o teu pai atravessava a atmosfera para defender um remate à baliza, conversaremos sobre a dedicação do teu avô, com um lápis na mão, uma máquina fotográfica, sempre pronto a guardar-te numa imagem que anuncie ao planeta o teu esplendor. E visitaremos a tua avó, cortando fatias de pão com a certeza das mães, rodando uma colher no teu leite com chocolate, derramando ternura da ponta dos dedos. Um dia vou correr contigo, prometo, na muralha que se prolonga pela praia, um dia regresso para me sentar à mesa mesmo ao teu lado, encarando os meus irmãos, voltando ao jogos, às palmadas, aos puxões de orelhas. Um dia vais perceber que há coisas tão físicas que a distância ou o tempo são incapazes de destruir. Um dia vou buscar-te a casa da tua mãe. Ela vai abraçar-me porque cheguei de longe, depois verificará o rigor do teu penteado e apertará todos os botões do teu casaco porque, onde quer que estejas, terás para sempre os braços da tua mãe em redor do peito. Nesse dia, sentados numa mesa sobre o rio, vou contar-te tudo sobre esta cidade e sobre muitas cidades. Depois, mostro-te os bilhetes de avião e um guia de viagem. Um dia vou estar contigo muitos dias.
Chegaste sem me dar tempo, queria escrever-te antes porque não tenho outro forma de mostrar a importância do teu nascimento. Sei que seria muito mais inábil no quarto de hospital, com um presente nas mãos, um ramo de flores, um sorriso de parabéns incapaz de confessar que durante a noite tive de impedir o choro por saber-te longe, que limpei rapidamente o nariz aos lençóis e que abri os olhos para a luz da janela para que ninguém me descobrisse. Nós, vais aprender isso, somos assim.
Resolvi escrever-te porque preciso de contar-te muitas coisas, porque é a única forma de encurtar a distância e experimentar o mesmo susto de alegria que conheci ao agarrar o teu irmão pela primeira vez. Um dia – muito mais importante que esta carta – prometo que te agarrarei a mão:
‘Manuel’
Na outra mão apertarei os dedos do teu irmão:
‘Francisco’
E não precisarei de escrever, de telefonar, de magoar-me neste egoísmo de viver à volta do mundo, suspeitando que a minha casa são todos aqueles em que penso quando a amplitude do quarto me diminui e acordo a pensar que os pinheiros estão lá fora, que o teu pai vai mostrar-me como se salta do telhado, que a tua mãe, os teus tios, os teus avós, se movimentam entre a sala e a cozinha, como se eu nunca tivesse abandonado a casa.
Hoje, a escrita – um par de sapatos que me ajuda a correr pela vida – parece-me tão pequena diante da tua chegada. Não fui capaz de estruturar as ideias, de inventar metáforas, eu que passo horas a verificar a localização das vírgulas e o ritmo de cada frase. Hoje, nada disso me importa, o mundo apagou-se à minha volta, as infinitas luzes da cidade deixaram de existir, não vejo carros, nem pessoas, nem telefones, nem ambições. E apenas sorrio de volta às mulheres bonitas porque quero falar-lhes de ti.
Escrevo-te para me julgar junto à tua cama, observando-te o sono, indiferente aos barulhos do hospital e aos comentários das outras visitas. Tenho o teu irmão ao meu colo, vamos viajar juntos, comer bolos com açúcar, andar de bicleta durante dias seguidos. E falo-vos ao ouvido de tudo aquilo que havemos de fazer juntos, confesso-vos, muito baixinho – não digam a ninguém – que são aquilo que possuo de mais importante na minha vida. Por isso, não cresçam depressa e esperem por mim no jardim de casa.
Nova Iorque, 12 de Maio, 2003
Querido Manuel,
Escrevo-te e uma veia pulsa-me no pescoço, amarrando-me a garganta. Quando o telefone tocou estava longe de casa, o teu avô anunciou que havias chegado e os pulmões falharam-me, as cordas vocais mantiveram-se imóveis, não conseguia controlar o queixo nem o batimento cardíaco, rápido, alastrando por todos o vasos sanguíneos, apertando-me tanto que talvez tenha pensado em chorar. Estava longe de casa.
Um dia vais visitar esta cidade e vou explicar-te cada bairro, o legado que cada rua largou na minha vida, a velocidade das pessoas no passeio, alheias à felicidade que me ofereces. Um dia vou sentar-me contigo na jardim de casa e vamos escutar o estalar dos pinheiros que me acordavam durante a noite, vou falar-te de como o teu pai atravessava a atmosfera para defender um remate à baliza, conversaremos sobre a dedicação do teu avô, com um lápis na mão, uma máquina fotográfica, sempre pronto a guardar-te numa imagem que anuncie ao planeta o teu esplendor. E visitaremos a tua avó, cortando fatias de pão com a certeza das mães, rodando uma colher no teu leite com chocolate, derramando ternura da ponta dos dedos. Um dia vou correr contigo, prometo, na muralha que se prolonga pela praia, um dia regresso para me sentar à mesa mesmo ao teu lado, encarando os meus irmãos, voltando ao jogos, às palmadas, aos puxões de orelhas. Um dia vais perceber que há coisas tão físicas que a distância ou o tempo são incapazes de destruir. Um dia vou buscar-te a casa da tua mãe. Ela vai abraçar-me porque cheguei de longe, depois verificará o rigor do teu penteado e apertará todos os botões do teu casaco porque, onde quer que estejas, terás para sempre os braços da tua mãe em redor do peito. Nesse dia, sentados numa mesa sobre o rio, vou contar-te tudo sobre esta cidade e sobre muitas cidades. Depois, mostro-te os bilhetes de avião e um guia de viagem. Um dia vou estar contigo muitos dias.
Chegaste sem me dar tempo, queria escrever-te antes porque não tenho outro forma de mostrar a importância do teu nascimento. Sei que seria muito mais inábil no quarto de hospital, com um presente nas mãos, um ramo de flores, um sorriso de parabéns incapaz de confessar que durante a noite tive de impedir o choro por saber-te longe, que limpei rapidamente o nariz aos lençóis e que abri os olhos para a luz da janela para que ninguém me descobrisse. Nós, vais aprender isso, somos assim.
Resolvi escrever-te porque preciso de contar-te muitas coisas, porque é a única forma de encurtar a distância e experimentar o mesmo susto de alegria que conheci ao agarrar o teu irmão pela primeira vez. Um dia – muito mais importante que esta carta – prometo que te agarrarei a mão:
‘Manuel’
Na outra mão apertarei os dedos do teu irmão:
‘Francisco’
E não precisarei de escrever, de telefonar, de magoar-me neste egoísmo de viver à volta do mundo, suspeitando que a minha casa são todos aqueles em que penso quando a amplitude do quarto me diminui e acordo a pensar que os pinheiros estão lá fora, que o teu pai vai mostrar-me como se salta do telhado, que a tua mãe, os teus tios, os teus avós, se movimentam entre a sala e a cozinha, como se eu nunca tivesse abandonado a casa.
Hoje, a escrita – um par de sapatos que me ajuda a correr pela vida – parece-me tão pequena diante da tua chegada. Não fui capaz de estruturar as ideias, de inventar metáforas, eu que passo horas a verificar a localização das vírgulas e o ritmo de cada frase. Hoje, nada disso me importa, o mundo apagou-se à minha volta, as infinitas luzes da cidade deixaram de existir, não vejo carros, nem pessoas, nem telefones, nem ambições. E apenas sorrio de volta às mulheres bonitas porque quero falar-lhes de ti.
Escrevo-te para me julgar junto à tua cama, observando-te o sono, indiferente aos barulhos do hospital e aos comentários das outras visitas. Tenho o teu irmão ao meu colo, vamos viajar juntos, comer bolos com açúcar, andar de bicleta durante dias seguidos. E falo-vos ao ouvido de tudo aquilo que havemos de fazer juntos, confesso-vos, muito baixinho – não digam a ninguém – que são aquilo que possuo de mais importante na minha vida. Por isso, não cresçam depressa e esperem por mim no jardim de casa.
Nova Iorque, 12 de Maio, 2003
quinta-feira, outubro 09, 2003
Não sou obrigado a gostar de todos
Não vou fingir que me interessas. Canso-me mesmo antes de saber a tua vida. Não quero conhecer casa onde vives, o carro que guias, ou o teu filho mais velho, o médico, aquele que se passeava de fato durante os anos de universidade e que, tal como tu, julga que uma licenciatura é o equivalente a um título aristocrático, ou uma súbita oferta de inteligência.
Enquanto os aviões desaparecem nas janelas da sala de espera, quase que roçamos os braços nas cadeiras. Posso mesmo ouvir-te respirar. Até falamos a mesma língua. Mas a tua estupidez incomoda-me. O que tens para me dizer não me interessa. E nunca estarias disposto a deixar-me falar. Apesar de agarrarmos passaportes com a mesma nacionalidade, garanto-te, não seremos amigos.
Já sei que aquela é a tua mulher, reparo como a gordura dos tornozelos transborda o contorno dos sapatos e encontro-lhe os dedos ásperos, procurando cuspo na língua, para depois alcançarem os cantos das páginas de uma revista. Dizes-me que ela é uma mulher doente, que passou a vida a lavar paredes, que gastou o corpo para educar os filhos. Falas-me de como lhe deste uma televisão que ocupa toda a sala e em todo o conforto, comida, e oportunidades, que providenciaste à tua família. Repetes a descrição dos objectos adquiridos e o valor que pagaste por cada um deles. E enquanto relatas tudo isto, mastigas pão que se entranha entre as gengivas e os dentes postiços. A tua vida são coisas e alimentos.
Não consigo encontrar admiração quando me contas como saíste de Portugal para viver numa cave de Newark. Não me interessam os anos em que visitavas, em Agosto, uma aldeia onde os criminosos construíam prédios coloridos e as autoridades locais enriqueciam. Não consigo tolerar como destróis a gramática e como combinas a sintaxe de línguas diferentes sem qualquer imaginação.
Apenas conversas sobre dinheiro, quase nunca sobre pessoas. Agrada-te como enganaste, durante muito tempo, o Estado e os homens que cobram impostos. Falas-me de todas as propriedades de que poderias ser dono. Mas, dizes, houve sempre alguém a querer roubar-te. Não aprendeste nada quando saíste de Portugal. Vives em Newark como se habitasses um buraco na terra. Não consegues ver além. No entanto, julgas-te mais esperto que qualquer estranho. E a insatisfação dos outros é o teu maior prazer. Não trazes nada de novo. És medíocre, e, ao fim e ao cabo, inconsequente. Se deixasses de respirar, poucos se dariam conta. Eu sei que toda a vida humana deve ter um valor. Sem preço. É por isso que – para não começar a acreditar na inutilidade de gente como tu – me levanto e caminho para longe, como se não quisesse apanhar um avião para a mesma cidade onde vais aterrar. Por vezes, gostava de ser de outro país, melhor, de outro planeta.
Não vou fingir que me interessas. Canso-me mesmo antes de saber a tua vida. Não quero conhecer casa onde vives, o carro que guias, ou o teu filho mais velho, o médico, aquele que se passeava de fato durante os anos de universidade e que, tal como tu, julga que uma licenciatura é o equivalente a um título aristocrático, ou uma súbita oferta de inteligência.
Enquanto os aviões desaparecem nas janelas da sala de espera, quase que roçamos os braços nas cadeiras. Posso mesmo ouvir-te respirar. Até falamos a mesma língua. Mas a tua estupidez incomoda-me. O que tens para me dizer não me interessa. E nunca estarias disposto a deixar-me falar. Apesar de agarrarmos passaportes com a mesma nacionalidade, garanto-te, não seremos amigos.
Já sei que aquela é a tua mulher, reparo como a gordura dos tornozelos transborda o contorno dos sapatos e encontro-lhe os dedos ásperos, procurando cuspo na língua, para depois alcançarem os cantos das páginas de uma revista. Dizes-me que ela é uma mulher doente, que passou a vida a lavar paredes, que gastou o corpo para educar os filhos. Falas-me de como lhe deste uma televisão que ocupa toda a sala e em todo o conforto, comida, e oportunidades, que providenciaste à tua família. Repetes a descrição dos objectos adquiridos e o valor que pagaste por cada um deles. E enquanto relatas tudo isto, mastigas pão que se entranha entre as gengivas e os dentes postiços. A tua vida são coisas e alimentos.
Não consigo encontrar admiração quando me contas como saíste de Portugal para viver numa cave de Newark. Não me interessam os anos em que visitavas, em Agosto, uma aldeia onde os criminosos construíam prédios coloridos e as autoridades locais enriqueciam. Não consigo tolerar como destróis a gramática e como combinas a sintaxe de línguas diferentes sem qualquer imaginação.
Apenas conversas sobre dinheiro, quase nunca sobre pessoas. Agrada-te como enganaste, durante muito tempo, o Estado e os homens que cobram impostos. Falas-me de todas as propriedades de que poderias ser dono. Mas, dizes, houve sempre alguém a querer roubar-te. Não aprendeste nada quando saíste de Portugal. Vives em Newark como se habitasses um buraco na terra. Não consegues ver além. No entanto, julgas-te mais esperto que qualquer estranho. E a insatisfação dos outros é o teu maior prazer. Não trazes nada de novo. És medíocre, e, ao fim e ao cabo, inconsequente. Se deixasses de respirar, poucos se dariam conta. Eu sei que toda a vida humana deve ter um valor. Sem preço. É por isso que – para não começar a acreditar na inutilidade de gente como tu – me levanto e caminho para longe, como se não quisesse apanhar um avião para a mesma cidade onde vais aterrar. Por vezes, gostava de ser de outro país, melhor, de outro planeta.
terça-feira, outubro 07, 2003
Para ler e deitar fora
Ainda estou aqui. Corri os fechos das malas, pousei o passaporte na mesa, guardei no bolso algum dinheiro para o táxi. Resta-me esperar. E, no entanto, nada disto me parece dramático, não encontro apertos no estômago ou um estremecimento no interior dos nervos. Há apenas uma serenidade que se estendeu a todas as ruas. Esta manhã caminhei pela cidade e não havia esquinas nostálgicas, apenas um dia de Outono, e o sol resplandecendo nos semáforos e nas montras das lojas. Vejo-me sentado e, mais uma vez, ocorre-me a imagem de um lutador, as mãos penduradas entre as pernas, a cabeça baixa, esperando o momento de começar. Mas não existe medo.
Não vou escrever sobre a cidade. Qualquer um sabe que há sempre coisas que falham quando nos esforçamos por entorná-las para as palavras. Há instantes que são apenas para experimentar, a sós, sem mostrar a ninguém. E o que guardo hoje, o que tenho comigo, não é para ser revelado. Foi em Nova Iorque que aprendi que viver é muito mais importante que escrever. E nem tudo o que nos acontece é susceptível de ser literatura.
Não falarei dos meus amigos nem utilizarei as imagens cinematográficas da cidade. Respiro fundo e espero que me chamem. É como se ouvisse o rumor de uma audiência lá fora. Esperam-me. Tenho que ir. Apanho os óculos escuros que me escondem os olhos. Levanto-me e caminho para a porta. Quando o táxi atravessar a ponte, garanto-vos que não olharei pelo vidro traseiro à procura da cidade. Nestas ocasiões, não sou homem de olhar para trás. Nunca fui.
Ainda estou aqui. Corri os fechos das malas, pousei o passaporte na mesa, guardei no bolso algum dinheiro para o táxi. Resta-me esperar. E, no entanto, nada disto me parece dramático, não encontro apertos no estômago ou um estremecimento no interior dos nervos. Há apenas uma serenidade que se estendeu a todas as ruas. Esta manhã caminhei pela cidade e não havia esquinas nostálgicas, apenas um dia de Outono, e o sol resplandecendo nos semáforos e nas montras das lojas. Vejo-me sentado e, mais uma vez, ocorre-me a imagem de um lutador, as mãos penduradas entre as pernas, a cabeça baixa, esperando o momento de começar. Mas não existe medo.
Não vou escrever sobre a cidade. Qualquer um sabe que há sempre coisas que falham quando nos esforçamos por entorná-las para as palavras. Há instantes que são apenas para experimentar, a sós, sem mostrar a ninguém. E o que guardo hoje, o que tenho comigo, não é para ser revelado. Foi em Nova Iorque que aprendi que viver é muito mais importante que escrever. E nem tudo o que nos acontece é susceptível de ser literatura.
Não falarei dos meus amigos nem utilizarei as imagens cinematográficas da cidade. Respiro fundo e espero que me chamem. É como se ouvisse o rumor de uma audiência lá fora. Esperam-me. Tenho que ir. Apanho os óculos escuros que me escondem os olhos. Levanto-me e caminho para a porta. Quando o táxi atravessar a ponte, garanto-vos que não olharei pelo vidro traseiro à procura da cidade. Nestas ocasiões, não sou homem de olhar para trás. Nunca fui.
segunda-feira, outubro 06, 2003
I’m in a New York state of mind
Tenho três malas em cima da cama. Guardam apenas livros e roupa. Os móveis – quase nenhuns – ficam nesta casa. Os aparelhos eléctricos – ainda menos – serão oferecidos na rua. Não tenho nada, em nenhuma cidade, a não ser as pessoas e os mapas emocionais que desenharam. Os objectos são sobrevalorizados e pesam demasiado quando queremos viajar. Atrasam-nos e adormecem-nos.
Procurei, nestes dias antes da viagem, gastar o corpo para não pensar em mais nada. É por isso que não me despedi, fui largando os amigos a meio de uma conversa, no fim de um jantar, ou quando ainda dançavam numa festa. No entanto, não os abandonei.
Mesmo que viaje amanhã, hoje não é o meu último dia. Mas há quem não entenda que não me vou embora, que não estou a regressar para lado algum, que tudo isto é apenas uma missão profissional e que o regresso será sempre para Nova Iorque. Aprendi que pode haver muitas cidades para visitar, mas apenas algumas para viver. Estou aqui tão bem. Esta cidade é como um adversário que nos abraça sempre no fim do combate. Esta cidade faz de mim um pugilista atento, com os reflexos afiados e o peito ansioso pelo combate.
Vou sair de casa e fazer o mesmo percurso de sempre, sem olhar para cima, sem procurar memórias, sem tentar sentir. Eu sei que não consigo estar quieto e que guardo, no batimento do sangue, junto ao pescoço, a frase de Paul Auster:
“Dado o tamanho do mundo a última coisa que desejava era jogar pelo seguro”
Sei que não vou parar, mesmo que esteja aqui, olhando a cidade do terraço, escutando o som das ambulâncias, atravessando as pessoas nos passeios, pronto a desaparecer entre todos, porque eu não existo, eu apenas levito. E podem esperar por mim.
Tenho três malas em cima da cama. Guardam apenas livros e roupa. Os móveis – quase nenhuns – ficam nesta casa. Os aparelhos eléctricos – ainda menos – serão oferecidos na rua. Não tenho nada, em nenhuma cidade, a não ser as pessoas e os mapas emocionais que desenharam. Os objectos são sobrevalorizados e pesam demasiado quando queremos viajar. Atrasam-nos e adormecem-nos.
Procurei, nestes dias antes da viagem, gastar o corpo para não pensar em mais nada. É por isso que não me despedi, fui largando os amigos a meio de uma conversa, no fim de um jantar, ou quando ainda dançavam numa festa. No entanto, não os abandonei.
Mesmo que viaje amanhã, hoje não é o meu último dia. Mas há quem não entenda que não me vou embora, que não estou a regressar para lado algum, que tudo isto é apenas uma missão profissional e que o regresso será sempre para Nova Iorque. Aprendi que pode haver muitas cidades para visitar, mas apenas algumas para viver. Estou aqui tão bem. Esta cidade é como um adversário que nos abraça sempre no fim do combate. Esta cidade faz de mim um pugilista atento, com os reflexos afiados e o peito ansioso pelo combate.
Vou sair de casa e fazer o mesmo percurso de sempre, sem olhar para cima, sem procurar memórias, sem tentar sentir. Eu sei que não consigo estar quieto e que guardo, no batimento do sangue, junto ao pescoço, a frase de Paul Auster:
“Dado o tamanho do mundo a última coisa que desejava era jogar pelo seguro”
Sei que não vou parar, mesmo que esteja aqui, olhando a cidade do terraço, escutando o som das ambulâncias, atravessando as pessoas nos passeios, pronto a desaparecer entre todos, porque eu não existo, eu apenas levito. E podem esperar por mim.
sexta-feira, outubro 03, 2003
Cartografia íntima de uma ressaca
É como se fosses um profissional do álcool e as mãos tremessem pela manhã. No entanto, estavas ontem seguro, diante de um espelho, passando um polegar no queixo para melhorar o sorriso. Um dos teus amigos levantou-se quando passou uma modelo que se preparava para fumar uma cigarrilha:
“Helena Christiensen. Volto já.”
E enquanto observavas a ausência de roupa interior de uma mulher que não sabia cruzar as pernas, levantavas a mão para pedir uma bebida, avisavas um outro amigo que lhe sobrava pó branco no arco de uma das narinas. Ele riu-se, passou a palma no nariz e entregou-te um maço de cigarros com uma encomenda.
Andas assim toda a semana. Acordas e tomas banhos de imersão para depois aliviares as dores de cabeça com um saco de gelo. Dormes quase nada. Passas um produto debaixo dos olhos para esconder os semi-circulos escuros. Mas durante a noite continuas a ser o protagonista. As mulheres admiram-te a eloquência e a forma como as encostas à parede enquanto conversas. Os homens, os teus amigos, respeitam o teu poder, e parece que tocam chapéus invisíveis, levantando-os, para assinalar a tua chegada.
Ontem estavas sentado na tampa da retrete de uma casa de banho. Trancaste a porta. Tinhas um copo apertado nos dedos e pensavas se querias regressar. No outro lado havia música e pessoas que se acendiam e se apagavam. Afinal, tudo o que já conheces. Sentiste-te cansado.
E hoje acordaste depois do telefone tocar muitas vezes. Nunca atendeste. Estás na cama, incapaz de procurar comida apesar da fome. Encontras-te fraco e imaginas a cidade que visitaste, ainda este mês, mais a norte, onde experimentaste as manhãs e onde avançaste nos corredores de um supermercado com uma mulher a quem gostavas de fazer cócegas. Havia uma universidade, casas sem uma nódoa nas paredes, famílias nos jardins, e um silêncio que não conhecias há alguns anos. No caminho de regresso ao aeroporto, viste como as ruas estavam vazias porque as crianças estavam nas salas de aula e os pais trabalhavam, esperando ir buscá-las mais tarde, prontos para lhes dar banho e as sentar à mesa. A mulher a quem não fugiste na cama, deixando – nunca deixas – que enrolasse o corpo todo no teu corpo, tremeu os lábios mas não chorou. Quando lhe seguravas as mãos pensaste no que aconteceria se ficasses. Mas depois havia uma frase de um escritor – Chuck Palahniuk - que estava colada no céu da tua boca:
“Fuck me for saying this but I don’t want any peace until the day I die”
E como não tinhas a certeza, agarraste na mala e seguiste caminho, procurando o bilhete de avião no bolso do casaco.
Agora, que estás sozinho, na cama, e que o próprio corpo te magoa, percebes que existe outra vida além da cidade onde vives e que talvez consigas sair daqui para outro lugar. Um dia, a mulher que não chorou, talvez esteja à tua espera no aeroporto, para levar-te depois ao quarto tão branco e garantir-te que podes ficar, procurando espaço nos armários para a tua bagagem. Mas, por agora, escolhes uma nova lâmina de barbear e abres as portas do roupeiro, escorrendo uma mão nas camisas. Mais logo, o teu pescoço vai cheirar a perfume e quando entrares num táxi não te vais lembrar de nada disto. Até que voltes a acordar amanhã.
É como se fosses um profissional do álcool e as mãos tremessem pela manhã. No entanto, estavas ontem seguro, diante de um espelho, passando um polegar no queixo para melhorar o sorriso. Um dos teus amigos levantou-se quando passou uma modelo que se preparava para fumar uma cigarrilha:
“Helena Christiensen. Volto já.”
E enquanto observavas a ausência de roupa interior de uma mulher que não sabia cruzar as pernas, levantavas a mão para pedir uma bebida, avisavas um outro amigo que lhe sobrava pó branco no arco de uma das narinas. Ele riu-se, passou a palma no nariz e entregou-te um maço de cigarros com uma encomenda.
Andas assim toda a semana. Acordas e tomas banhos de imersão para depois aliviares as dores de cabeça com um saco de gelo. Dormes quase nada. Passas um produto debaixo dos olhos para esconder os semi-circulos escuros. Mas durante a noite continuas a ser o protagonista. As mulheres admiram-te a eloquência e a forma como as encostas à parede enquanto conversas. Os homens, os teus amigos, respeitam o teu poder, e parece que tocam chapéus invisíveis, levantando-os, para assinalar a tua chegada.
Ontem estavas sentado na tampa da retrete de uma casa de banho. Trancaste a porta. Tinhas um copo apertado nos dedos e pensavas se querias regressar. No outro lado havia música e pessoas que se acendiam e se apagavam. Afinal, tudo o que já conheces. Sentiste-te cansado.
E hoje acordaste depois do telefone tocar muitas vezes. Nunca atendeste. Estás na cama, incapaz de procurar comida apesar da fome. Encontras-te fraco e imaginas a cidade que visitaste, ainda este mês, mais a norte, onde experimentaste as manhãs e onde avançaste nos corredores de um supermercado com uma mulher a quem gostavas de fazer cócegas. Havia uma universidade, casas sem uma nódoa nas paredes, famílias nos jardins, e um silêncio que não conhecias há alguns anos. No caminho de regresso ao aeroporto, viste como as ruas estavam vazias porque as crianças estavam nas salas de aula e os pais trabalhavam, esperando ir buscá-las mais tarde, prontos para lhes dar banho e as sentar à mesa. A mulher a quem não fugiste na cama, deixando – nunca deixas – que enrolasse o corpo todo no teu corpo, tremeu os lábios mas não chorou. Quando lhe seguravas as mãos pensaste no que aconteceria se ficasses. Mas depois havia uma frase de um escritor – Chuck Palahniuk - que estava colada no céu da tua boca:
“Fuck me for saying this but I don’t want any peace until the day I die”
E como não tinhas a certeza, agarraste na mala e seguiste caminho, procurando o bilhete de avião no bolso do casaco.
Agora, que estás sozinho, na cama, e que o próprio corpo te magoa, percebes que existe outra vida além da cidade onde vives e que talvez consigas sair daqui para outro lugar. Um dia, a mulher que não chorou, talvez esteja à tua espera no aeroporto, para levar-te depois ao quarto tão branco e garantir-te que podes ficar, procurando espaço nos armários para a tua bagagem. Mas, por agora, escolhes uma nova lâmina de barbear e abres as portas do roupeiro, escorrendo uma mão nas camisas. Mais logo, o teu pescoço vai cheirar a perfume e quando entrares num táxi não te vais lembrar de nada disto. Até que voltes a acordar amanhã.
quinta-feira, outubro 02, 2003
Guantanamera Guajira Guantanamera, por Robert Davis, Soldado de Infantaria
“Aqui ninguém lhe conhece o nome mas todos lhe chamam Sinbad. No dia em que rapou a barba, um dos oficiais admirou-lhe o rosto magro, adolescente, afagou-lhe as bochechas com o carinho violento que apenas os homens demonstram e disse, para que todos escutassem:
‘Pareces um boneco animado, daqueles que o meu filho vê na televisão”
“Hoje foi o dia em que Sinbad viu o mar. Nas terras sem água do Afeganistão dizem-me que nem sequer existem rios. O comando general decidiu abrir uma espaço na vedação e autorizar os prisioneiros mais novos, os que estudam, os que começam a falar a nossa língua, a ver o oceano. Olho agora para eles e nem sequer penso em enfiar-lhes uma bala no céu da boca. Porque quando as pessoas vivem juntas, observam-se, conhecem os movimentos dos outros quando lavam a cara ou descascam uma maçã. E, mesmo que tenham matado, eles voltam a ser apenas miúdos. Mas, às vezes, penso naqueles que derreteram depois dos atentados, nos prédios a arder e nos telefonemas debaixo de uma secretária, engasgando-se no fumo, procurando as teclas. É nessas alturas que não reconheço aos prisioneiros nenhuma inocência ou qualquer juventude. Deveria agarrar na minha arma e, numa rajada, explodir-lhes com os órgãos de terrorista.”
“Recebi uma carta da minha mãe a contar-me que o Richie caiu de um tanque de combate, em andamento, e que não pode mover as pernas. O Richie foi meu colega de escola e era conhecido pela resistência ao álcool e pela coragem de saltar para o lago, de cabeça, do ponto mais elevado de uma ravina. Depois fez uma tatuagem e alistou-se nas Forças Especiais. Imaginei-me muitas vezes no deserto do Iraque, ao lado do Richie, a matar os inimigos. Mas agora tenho medo de vê-lo assim, com os pulmões ajudados por uma máquina, a comer soro, esperando que lhe mudem o saco de urina.”
“Sinbad escreve cartas para a família mas não tenho a certeza se alguma vez lhe responderam. Sempre que converso com o meu pai, ao telefone, ele explica-me que os prisioneiros deveriam receber assistência jurídica e que, mesmo durante uma guerra, há regras. Eu digo-lhe que apenas os vigio e que não sei nada sobre tortura. O meu pai está revoltado porque visitou Paris, em trabalho – o meu pai é representante de uma empresa de brinquedos – e em todas as reuniões havia sempre alguém a atacar-nos. O meu pai explicou-lhes que nem sequer tinha votado. O meu pai estudou na universidade e combateu na guerra do Vietnam mas nunca quis matar ninguém. Mas os olhos saudáveis e um batimento cardíaco de trinta e quatro pulsações por minuto resultaram num destacamento para o Grupo de Atiradores Especiais. Porque disparava de muito longe, o meu pai nunca via a cara dos homens que recebiam as balas.”
“Eu quero regressar a casa e conduzir o meu carro nas ruas da cidade, comer carne, não fazer nada, ficar sentado, com a mão dentro das cuecas, num sofá, ou então jogar às cartas. Quero ter comida no frigorífico. Canso-me deste trabalho e do calor que nos enterra as boinas mais fundo na cabeça e que nos faz escorregar os dedos na coronha da arma. Começo a desinteressar-me do castigo que estes prisioneiros merecem. Quando o nosso desconforto cresce, a miséria dos outros começa a ter menos importância. É por isso que não quero saber de Sinbad ou das mulheres do seu país, apedrejadas, que nunca estudaram ou conheceram um médico. Não me importa salvar o mundo, nem escutar o meu pai quando discursa para a família, afirmando que a melhor maneira de ensinar os assassinos é julgá-los num tribunal, e jamais utilizando tácticas terroristas. O meu pai diz-me que temos que provar que somos pessoas melhores.”
“Hoje mesmo vou entregar um pedido de transferência. Quero estar mais perto de casa, distante de todos os que me podem magoar. Não posso ir para a guerra. Não quero viver com criminosos e metralhadoras ao ombro. Enganei-me. Há homens que não podem lutar. Eu tenho medo. Eu tenho mesmo nojo.”
“Aqui ninguém lhe conhece o nome mas todos lhe chamam Sinbad. No dia em que rapou a barba, um dos oficiais admirou-lhe o rosto magro, adolescente, afagou-lhe as bochechas com o carinho violento que apenas os homens demonstram e disse, para que todos escutassem:
‘Pareces um boneco animado, daqueles que o meu filho vê na televisão”
“Hoje foi o dia em que Sinbad viu o mar. Nas terras sem água do Afeganistão dizem-me que nem sequer existem rios. O comando general decidiu abrir uma espaço na vedação e autorizar os prisioneiros mais novos, os que estudam, os que começam a falar a nossa língua, a ver o oceano. Olho agora para eles e nem sequer penso em enfiar-lhes uma bala no céu da boca. Porque quando as pessoas vivem juntas, observam-se, conhecem os movimentos dos outros quando lavam a cara ou descascam uma maçã. E, mesmo que tenham matado, eles voltam a ser apenas miúdos. Mas, às vezes, penso naqueles que derreteram depois dos atentados, nos prédios a arder e nos telefonemas debaixo de uma secretária, engasgando-se no fumo, procurando as teclas. É nessas alturas que não reconheço aos prisioneiros nenhuma inocência ou qualquer juventude. Deveria agarrar na minha arma e, numa rajada, explodir-lhes com os órgãos de terrorista.”
“Recebi uma carta da minha mãe a contar-me que o Richie caiu de um tanque de combate, em andamento, e que não pode mover as pernas. O Richie foi meu colega de escola e era conhecido pela resistência ao álcool e pela coragem de saltar para o lago, de cabeça, do ponto mais elevado de uma ravina. Depois fez uma tatuagem e alistou-se nas Forças Especiais. Imaginei-me muitas vezes no deserto do Iraque, ao lado do Richie, a matar os inimigos. Mas agora tenho medo de vê-lo assim, com os pulmões ajudados por uma máquina, a comer soro, esperando que lhe mudem o saco de urina.”
“Sinbad escreve cartas para a família mas não tenho a certeza se alguma vez lhe responderam. Sempre que converso com o meu pai, ao telefone, ele explica-me que os prisioneiros deveriam receber assistência jurídica e que, mesmo durante uma guerra, há regras. Eu digo-lhe que apenas os vigio e que não sei nada sobre tortura. O meu pai está revoltado porque visitou Paris, em trabalho – o meu pai é representante de uma empresa de brinquedos – e em todas as reuniões havia sempre alguém a atacar-nos. O meu pai explicou-lhes que nem sequer tinha votado. O meu pai estudou na universidade e combateu na guerra do Vietnam mas nunca quis matar ninguém. Mas os olhos saudáveis e um batimento cardíaco de trinta e quatro pulsações por minuto resultaram num destacamento para o Grupo de Atiradores Especiais. Porque disparava de muito longe, o meu pai nunca via a cara dos homens que recebiam as balas.”
“Eu quero regressar a casa e conduzir o meu carro nas ruas da cidade, comer carne, não fazer nada, ficar sentado, com a mão dentro das cuecas, num sofá, ou então jogar às cartas. Quero ter comida no frigorífico. Canso-me deste trabalho e do calor que nos enterra as boinas mais fundo na cabeça e que nos faz escorregar os dedos na coronha da arma. Começo a desinteressar-me do castigo que estes prisioneiros merecem. Quando o nosso desconforto cresce, a miséria dos outros começa a ter menos importância. É por isso que não quero saber de Sinbad ou das mulheres do seu país, apedrejadas, que nunca estudaram ou conheceram um médico. Não me importa salvar o mundo, nem escutar o meu pai quando discursa para a família, afirmando que a melhor maneira de ensinar os assassinos é julgá-los num tribunal, e jamais utilizando tácticas terroristas. O meu pai diz-me que temos que provar que somos pessoas melhores.”
“Hoje mesmo vou entregar um pedido de transferência. Quero estar mais perto de casa, distante de todos os que me podem magoar. Não posso ir para a guerra. Não quero viver com criminosos e metralhadoras ao ombro. Enganei-me. Há homens que não podem lutar. Eu tenho medo. Eu tenho mesmo nojo.”