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sexta-feira, novembro 28, 2003

Bang, Bang, My Baby Shot Me Down


O meu pai era outro pai antes da Guerra. Garantiram-me que acordava cedo e que nunca começava uma refeição sem baixar a cabeça para o prato, fechar os olhos, e agradecer a Deus. Nas fotografias aparece sempre com um fato a apertar-lhe os ombros, talvez sem cor nos cotovelos, o avesso de um bolso por coser, um botão pendurado apenas por uma linha. O meu pai procurava a dignidade dos homens que pagam as contas antes do último dia do prazo, cuidava dos familiares doentes, abria a porta aos desconhecidos, dizia-me antes de me adormecer:

“És a filha mais bonita de sempre.”

Na Guerra descobriu um talento. Os médicos contaram trinta e duas pulsações a cada minuto e sabiam que o dedo nunca lhe tremeria no momento de disparar. Os oficiais confirmaram o génio de um soldado que acertava nos alvos que ninguém alcançava sequer com os olhos. O meu pai era um grande atirador, talvez o melhor, segundo os companheiros que continuam a escrever cartas, lembrando episódios onde deveriam ter morrido, oferecendo tanta gratidão que parecem estar de joelhos.

Mesmo que o meu pai nunca fale do primeiro morto, os outros soldados recordam o milagre de clemência. O sargento H. estava no outro lado do rio, capturado por guerrilheiros que usaram uma faca para lhe cortar as orelhas. Cuspiam-lhe para a boca, riam-se, pediam-lhe a língua para limpar a sola das botas. Os dedos do sargento H. eram mostrados numa baioneta quando o meu pai encostou uma bochecha à espingarda, esvaziou os pulmões, escolheu o coração, e estreou-se na carreira de atirador profissional com uma morte por piedade.

Em cima de uma árvore, o meu pai nunca mais precisaria de uma família ou de um fato que se desintegrava nas mangas. Mantinha a cara manchada de lama e sabia-lhe bem esperar, confirmar a suspeita de alguém a aparecer entre a folhagem. Nunca errava uma morte, embora por vezes escolhesse uma perna e aguardasse o resgate do soldado ferido, acumulando vítimas.

O meu pai descobrira a admiração dos outros sem qualquer penitência. Era tudo tão normal, ninguém rezava, nem havia contas para pagar. O respeito dos outros deixara de ser uma consequência do cumprimento das regras. Quando regressava ao quartel, ofereciam-lhe álcool e prostitutas adolescentes que se despiam com a velocidade das mulheres. Os oficiais gostavam de encontrar heróis; esgotaram as medalhas com o meu pai.

E, apesar de repetir comissões durante anos, alguém acabou com a Guerra. O meu pai regressou a casa e lembro-me dos lençóis vomitados, de um canto do quarto que cheirava a urina, da minha mãe, segurando-lhe a cabeça que desaparecia na retrete, sem perceber que o meu pai só queria uma espingarda, um ramo de árvore. Nunca mais vestiu o fato, e passava as tardes a beber de garrafas que fazia explodir nas paredes da sala.

Por vezes encontrávamo-nos ao amanhecer, quando me preparava para apanhar o autocarro. Eu lavava os dentes, e ele voltava a casa, reiniciando o ritual dos vómitos, com a minha mãe a amparar-lhe os desmaios e a esfregar alcatifa com um escova mergulhada num balde de água.

O meu pai precisava dos seus mortos, da espera, e por isso, nesse dia, encontrava-se no alpendre da casa, como se estivesse num ramo de árvore. O colega da minha mãe estacionou o carro e ajudou-a a transportar o sacos para casa. O meu pai atacou-lhe a traqueia. Depois enrolou os cabelos da minha mãe à volta dos dedos, arrastou-a até ao quarto e empurrou-lhe o céu da boca com o cano de uma pistola sem balas no carregador.

O meu pai embebeda-se para ouvir os elogios dos outros soldados, ensina-me a manobrar armas, continua à procura de vítimas para prolongar a glória. E dorme com uma prostituta que esmaga a barriga numa cinta e que imita a voz de uma adolescente sempre que se deita de costas.

A porta estava aberta, e eu fiquei na ombreira, observando um bicho, o meu pai. Olhou-me mas continuou a apertar-lhe as mamas e a beber de uma lata de cerveja onde apagou um cigarro. Minutos mais tarde, entrou no meu quarto, nu, o corpo escorrendo suor, e atirou-me para a parede:

“Andas a espiar-me sua putinha?”

O meu pai continua à procura de um morto, e é por isso que o corpo da minha mãe produz o som dos ossos quando se partem sempre que é lançada contra um móvel. Todos os dias acontece um ataque com as mãos. Mas hoje há uma arma, o meu pai em cima de uma cadeira, trinta e duas pulsações por minuto, o dedo sem estremecer sobre o gatilho, a mira a apontar para coração.

O meu pai ensinou-me a esperar antes de um disparo, a verificar o perímetro à nossa volta, a ter a certeza do órgão que queremos atingir. O meu pai era um grande atirador, talvez o melhor, mas agora esqueceu-se de olhar para trás, onde eu estou, uma bochecha encostada à espingarda, esvaziando os pulmões, com o coração a bater cento e vinte vezes por minuto:

“Bang.”






sexta-feira, novembro 21, 2003

O meu gigante

Nem vale a pena continuar a escrever, tudo isto é mentira, não existe, embora o telefone pressione uma orelha e o cabelo esteja preso entre a testa e o vidro da janela, árvores lá fora, neons com letras apagadas, os carros que abrandam para que as prostitutas imitem vírgulas de carne quando se debruçam sobre os clientes:

“Carro ou pensão?”

Mas nada disto é verdade, alguém inventou esta casa, a janela, todas as árvores lá fora, o telefone que insiste em aparecer nos meus dedos, ou mesmo a notícia de um joelho preguiçoso numa radiografia, sangue em tubos, em lapelas, em microscópios, a voz do telefone que ronda a superfície do medo:

“O médico disse-nos que é possível que ele tenha um cancro nos ossos.”

Recuso-me a escrever, chega de inventar, mentir, não estás doente, não fizeste análises, não estiveste sentado numa marquesa, em cuecas, os ombros a cair para a frente, o joelho coxo a esconder a dor, como se fosses um miúdo que se levanta após uma rasteira:

“Estou bem.”

E como não há dor, também não há consultório, nem as radiografias levantadas na direcção de uma lâmpada, ou sequer o médico com a sinceridade que os doentes pedem mas depois recusam:

“Isto está muito feio. Vamos ver, mas talvez tenhamos que amputar.”

O teu corpo cessou de ser enorme, encolheu junto dos objectos de metal que apenas servem para agravar a solidão dos consultórios. As tuas mãos – desde criança que conheci o teus dedos grossos – apertaram o pano que cobria a marquesa, começaste a chorar, embora eu não acredite, tu não choras, porque tu és velho e forte e homem, e conseguias levantar-me no ar para que eu alcançasse o estuque que me fazia cócegas na mão.

Os teus ossos eram imensos e sabíamos quando subias a escada, os passos no mármore dos degraus, um assobio que se alastrava por todas as paredes do prédio e que nos puxava para o corredor à espera da chave na porta. Entravas em casa, tiravas o chapéu, sentavas-te à mesa – nessa altura havia uma mesa para os adultos e uma mesa para as crianças – e eras grande, desculpa, continuas a ser grande.

Depois deixou de haver essa casa, ou os motores das ventoinhas na sonolência dos quartos, ou a família na varanda à meia-noite quando a meia-noite me parecia uma hora para adultos. Eu cresci, tu envelheceste, e só agora começo a compreender que os corpos se estragam e que nos comem por dentro, que as pessoas de quem gostamos se queixam de dores, que têm o nosso tamanho, que se esquecem, que choram, mas que não choram como as crianças; choram o desespero sem remédio de serem agora outra coisa qualquer, de serem menos, de serem bocados que se descolam.

Uma destas manhãs, está combinado pela família, vou buscar-te a casa e vamos entrar no consultório. Há mais exames, máquinas, seringas – eu sei que nunca tiveste medo de agulhas. Se o joelho doer podes fazer de mim uma muleta, caso o médico insista na mentira:

“A amputação é uma possibilidade.”

Estaremos os dois, de mão dada, comigo a falar-te outra vez da casa, da chave na porta, da sala onde encontravas as crianças que apareciam com as bocas preparadas para atacar-te as bochechas. Caminharemos na rua e podes chorar à vontade, segurar o meu braço se encontrarmos um degrau, dizer-me que estás cansado, que precisas de uma cadeira. Porque serás sempre maior, mais alto, o homem que sabe assobiar. Serás sempre o gigante para quem olhávamos desde o chão na esperança que nos pegasses ao colo e nos atirasses para o tecto do mundo.

quarta-feira, novembro 19, 2003

And now for something completely different

Aterrou com as malas, um visto de trabalho e uma mulher grávida. Abandonara o Médio Oriente e um país onde as fronteiras mudavam todos os meses nos mapas revelados pelos satélites no espaço. A filha nasceu com o nome das mulheres altas e loiras e de olhos azuis. O documento que provava a existência de Helen garantia-lhe também a nacionalidade. Helen era uma criança a viver no mundo civilizado onde há assistentes sociais, luz eléctrica e casas com telhados.

Em família falava-se a antiga língua, mas havia a televisão onde se aprendiam palavras do novo idioma e a dedicação de Helen, depois da escola, na mesa da cozinha a ensinar os pais. Houve um quarto com casa de banho, depois um apartamento, e quando Helen e os irmãos estavam no liceu mudaram-se para uma casa com garagem, baloiços de ferro, um relvado onde havia abundância de bicicletas e brinquedos de plástico com autocolantes a confirmar a obediência às regras de segurança.

Os colegas de Helen nunca a deixaram sozinha no recreio por causa das roupas tradicionais ou da comida que trazia de casa, os estranhos condimentos, cores a contrastar na palidez dos pratos. Os olhos escuros, negros, acentuados pela espessura das pestanas, eram elogiados pelas outras raparigas e os rapazes gostariam de experimentar-lhe o sabor da língua. Os pais eram respeitados na cidade. Proprietários de lojas, ofereciam comida aos mendigos, faziam trabalho voluntário nos hospitais, ajudavam a montar as iluminações de Natal.

Helen estudou na universidade, conheceu um homem loiro com quem casou, teve filhos de olhos azuis e cabelo escuro. O marido representava uma organização que lançava caixas de comida em países com genocídios étnicos e crianças com fome que revelavam barrigas emergindo do corpo onde a pele se esticava nos ossos das costelas. Helen ofereceu parte da medula a uma prima doente. Trabalhava com advogados que defendiam pessoas sem dinheiro, visitava os pais todas as semanas e ajudava os filhos a prepararem-se para os exames.

Uma vez por ano, no aniversário do casamento com o homem loiro, reuniam a família, fechavam-se da crueldade do mundo nos jornais, rádio e televisão, corriam as cortinas e esqueciam os empregos, os doentes a suspirar dentro das máscaras de oxigénio, os livros descolados que se enviam para a escolas construídas na selva. Conversavam em duas línguas, misturavam hábitos alimentares, rezavam a todos os Deuses, recordavam apenas episódios que incentivassem o riso. E acabavam na sala, folheando o álbum de fotografias do dia do casamento, uma mulher escura e um homem loiro, mãos a brilhar anéis e bocas que seguravam palavras de eternidade. Estas pessoas eram saudáveis, tinham todos os dentes, acreditavam na inevitabilidade do amor e, claro, quando respondiam a questionários, afirmavam-se muito felizes.

terça-feira, novembro 18, 2003

Um mapa do avesso

Para o João Tordo

Telefonam-me para dizer que ele regressou a Nova Iorque. Atiro um cigarro para os lábios, organizo os alimentos na bancada da cozinha. Quando partilhávamos esta casa não existia comida. Bebíamos durante toda a noite e o tabaco inibia a fome. Passávamos os dias a ver televisão. Quando se está numa cidade onde não se conhece ninguém, agarramo-nos às pessoas que se dedicam aos mesmos vícios.

Saio de casa. Na estação ainda existe o telefone público onde nos encostávamos a beber, mesmo que fosse proibido. Na noite em que um polícia se aproximou, ele disse:

“Está muito calor, o senhor devia compreender.”

Quando o polícia nos pediu os documentos, esperámos o som que anuncia o perigo das portas que se fecham e corremos para a carruagem. Encostámos a cara e os dedos no vidro. Levantámos as garrafas como se quisessémos brindar.

Escuto as ruas outra vez. Na esquina da Spring com a Elizabeth Street admiro as pessoas numa esplanada. Naquelas mesas descalçávamos os sapatos e espreguiçávamos a coluna vertebral, intercalando as bebidas com as mulheres que passeavam as pernas e com os projectos que não cumpríamos:

“Alugamos um carro amanhã. Tenho a certeza que conhecemos alguém com uma casa na praia.”

Mas acabávamos por ficar colados à cidade, copiando as noites e conhecendo raparigas sem dinheiro que dormiam em colchões sem lençóis. Num bar da Greene com a Houston chegávamos de madrugada. Transformou-se numa lavandaria. Encosto os olhos às montras. Onde as máquinas fazem tremer agora pares de calças costumávamos fascinar pós-adolescentes com relatos de viagens à volta do planeta, a utilização do corpo, a contestação à ordem. Mas quando faltavam as mulheres e apenas havia bêbedos entornando-se nas mesas, deixávamos de conversar. Podíamos ficar calados. Não precisávamos de explicar nada um ao outro. De manhã entrávamos em casa, trazíamos comida da rua e adormecíamos no sofá com os olhos a arder do fumo e das imagens que se acendiam no ecrã.

Depois apareceu uma mulher, com nome, profissão e mesmo algum dinheiro. Os planos mudaram. Ele começou a falhar-me quando era necessário insistir no álcool diante de uma mesa com copos vazios – sozinho, é mais difícil beber ou convencer raparigas quando nem conseguimos tirar as chaves do bolso.

Observo os cães e os donos em Washigton Square. Alguns devem ter morrido, mas outros continuam a correr, derrapando na areia. Os traficantes oferecem erva aos turistas que arrancam fotografias no momento em que um esquilo reduz a velocidade e olha para a máquina. Nessa tarde deixámos de pontapear pombos ou engolir vodka e sumo de tomate depois de acordar. Ele anunciou-me a desistência do álcool e o rigor das manhãs de ginástica. Essa mulher queria que encontrasse uma carreira:

“Não se pode viver assim para sempre, temos que construir alguma coisa:”

Recusei convencê-lo. Os amigos não fazem chantagem. Mas também não se despedem. O pudor que nos amordaçava as emoções era a derradeira prova da nossa amizade. Por isso calámo-nos. Ele começou a retirar a roupa do apartamento. Ficou apenas um casaco na cadeira. Ainda saímos algumas vezes com as amigas dessa mulher, mas apodrecíamos, inventávamos conversas para agradar a audiência. Sempre acreditei que ela conhecia demasiadas pessoas para se dedicar a um homem.

Apareci no apartamento da Horatio com a Greenwich Street. O porteiro anunciou-me pelo telefone. Quando a porta recuou sabia que tudo seria fácil porque ela nunca se apaixonaria. Disse-lhe que estava ali para entregar um casaco. Às vezes o sexo é tão fácil. Recebi na mão uma bebida, observei os livros, ouvi-a no banho, encontrei-lhe um mamilo que escapava à protecção da toalha enrolada no corpo. Bastou um golpe de dedos para que ficasse nua.

No mesmo dia, encontrei-me com ele, Grant e West Broadway. Cuspiu-me na cara, atirou-me gelo, depois um copo, rasgou-me uma sobrancelha. Agarrou-me no pescoço e esmagou-me a cabeça contra a mesa. Nunca levantei as mãos. Os outros clientes ergueram-se mas regressaram às cadeiras:

“Os amigos não fazem isso aos amigos.”

Deixámos de falar. Para sempre. O silêncio que era companhia tornou-se distância. Imaginei um período de luto. Depois regressei aos amigos, casei-me, escolhi ter filhos. Mas custa-me confiar nas pessoas, saber que se podem destruir. As minhas amizades são agora celebradas em encontros com adultos que comentam livros, mobiliário e que nunca procurariam pontapear pombos em Washington Square, passar dias a gastar garrafas ou a elevar o volume do riso quando todas as outras pessoas se calam.

Ao telefone, garantiram-me que, depois de anos na Europa, ele se mudou para o prédio onde habitámos um terraço, com bailarinas da Broadway, durante vinte dias de Agosto. Dormíamos em colchões insufláveis, ouvíamos rádio e regávamos o calor com uma mangueira. Esta tarde vou esperar nos degraus. Trouxe cigarros. E mesmo que todos os vizinhos me digam que é proibido, começo a abrir as garrafas, porque, apesar da idade, ainda me custa beber sozinho.

sexta-feira, novembro 14, 2003

Três retratos de amor temporário em Nova Iorque

1.
Não me lembro como nos conhecemos mas dançaste com o meu amigo durante toda a noite. Eu deixo sempre as certezas para o final, e por isso aparecia apenas para acender um cigarro ou intensificar a bebedeira. Acabámos a falar outro idioma porque viveste em Buenos Aires. Atravessámos TriBeCa quando ainda era de noite e os táxis riscavam a tranquilidade dos prédios onde dormiam pessoas. Não me apetecia falar porque a língua demorava a mover-se e havia espaços em branco a substituir as palavras.

Logo que amanheceu encontrei uns óculos escuros e seguraste o meu braço como fazem as mulheres que se querem casar. Entrámos num supermercado onde observei as tuas pernas quando esticavas o corpo para alcançar uma caixa nas prateleiras. Não conseguiste o que procuravas e pediste-me ajuda. Gostei tanto de saber que precisavas de mim.

De manhã cedo o sol parecia fresco. Na rua, entre tantos prédios, podia ver-se o Empire State e a luz que reflectia para toda a cidade. Dançámos na estrada até que parasse um táxi. Mesmo antes de entrarmos subi-te a saia, mas não nos beijámos. Eras tu que tinhas os óculos escuros. Podias estar a caminho de uma sessão fotográfica, ou ser famosa, ou apenas mitómana. Depositaste as botas sobre as minhas pernas. Disseste que estavas segura que eu gostava de mulheres que fodiam quando chegavam a casa de manhã. E não me deixaste dormir no teu apartamento. No dia seguinte pediste-me que te levasse comida. Estavas sozinha e tinhas medo de morrer com uma constipação.

2.

Não tive ciúmes, mas irritou-me o número de músicas em que simulaste prazer quando dançavas para o homem de óculos. Levantei-me e os meus amigos observaram-me. Agarrei-te na mão e perguntei se gostavas de mulheres. Contaste-me que tinhas uma namorada. Queria acreditar em tudo o que dizias e por isso ordenei-te que escolhesses outra bailarina e que dançassem para mim, tocando-se, como se fosse verdade.

Quando acabaste a dança ficámos a conversar. Vivias no Canadá e estavas a caminho de Los Angeles. Tinhas sardas no peito e os dedos sobre as minhas calças. Sempre que me aproximava, para que a minha voz cobrisse o ruído da música, podia cheirar-te os ombros. Gostava de levar-te para casa, nessa noite, e nunca pediria para deixares de dançar por dinheiro.

Começaste por executar o número tradicional que engana os clientes, acariciando-me as mãos, produzindo elogios que deveriam funcionar com homens velhos, sozinhos, ou apenas idiotas. Respondi-te que sabia o que valiam os meus olhos e que conhecia o exacto tamanho do meu sexo. Não era segurança que procurava. Quando regressaste ao trabalho, estavas em pé, os joelhos encostados ao sofá, como se aguardasses uma pergunta. Ensaiavas a postura das pessoas que procuram autorização para aquilo que lhes foi proibido. Não disse nada e voltaste a dançar com o homem de óculos. Quando acabei a bebida e cortaram a música disseram-me que já tinhas apanhado um táxi para casa. Agora estou certo que querias que perguntasse o teu nome.

3.
Gostavas de fumar erva antes de abrires os braços na cama, o que apenas acentuava a cor da tua pele, o ventre depilado, a suavidade da carne. Parecias uma mulher adulta sempre que me chamavas para a cama. Mas assim que desprendíamos os corpos rolavas para junto da parede e explicavas que não estavas acostumada a dormir com outra pessoa. Não sabias sequer partilhar o lençóis ou as almofadas.

De manhã acordavas cedo. Limpavas a casa mas sem me despertar. Não havia quase nada para conversarmos – eu achava-te uma criança, tu dizias que eu não me dava a ninguém. Mas quando nos encontrávamos à noite apetecia-nos beijos, os cotovelos a esfolarem-se nos lençóis, os músculos cansados. Depois acendias outro cigarro de erva e ouvia-te respirar. Fazia muito calor, cada corpo ocupava uma parte da cama.

Era quase impossível encontrarmo-nos durante o dia. Acordava e dizia-te que tomaria banho quando chegasse a minha casa. Vivias longe de Manhattan. Eu avançava dentro de um comboio onde as pessoas se preparavam para trabalhar. Doíam-me os braços e precisava de dormir. Não queria ver-te. Mas à noite telefonava-te para provar – para não perder o teu corpo – que queria saber o que fazias durante o dia.

Houve um momento em que poderia ter-me apaixonado por ti. Estávamos em Union Square e ainda havia luz. Compraste uma garrafa de sumo. Depois contaste-me que no teu país – onde faz muito frio – nunca oferecem palhinhas quando se compra um sumo. Se alguma vez deixasses Nova Iorque e regressasses à tua cidade gostarias de explicar às pessoas a necessidade das palhinhas. Quando anoiteceu apenas pensei na tua boca. Era demasiado ridículo enternecer-me, outra vez, com a intensidade que dedicavas às palhinhas. Escreveste-me esta semana, estás no teu país. Às vezes ainda penso em visitar-te. Mas reconheço que apenas conseguriamos existir à noite, no banco de trás de um táxi, ou num apartamento, onde o teu corpo se tornava intermitente com as luzes do néon publicitário no outro lado da rua. Seremos sempre as pessoas que se mordiam, na cama, numa cidade onde as sirenes das ambulâncias furavam o calor para encherem todas as paredes de um quarto.

quarta-feira, novembro 12, 2003

Revolución = Muerte

Se é uma evidência todos deveriam compreender. Cuba é uma ditadura, liderada por um assassino, onde as relações humanas foram desvirtuadas. Tudo isto é claro, simples, sem contestação. É por isso que me surpreendo diante das confissões de figuras públicas que ainda se fascinam com a imagem de um ditador, apresentando-o como um combatente e uma vítima, quando Fidel Castro não passa de um criminoso.

A prová-lo está o homem que me espera nos sofás de um hotel com nome propagandístico, embora seja um nome que mente – Hotel Habana Libre. Tem um livro na mão, ‘Perversiones en el Prado’, um dos romances que escreveu e que se alegra de estar traduzido e publicado em vários países da Europa. É um livro pequeno, com uma capa feia que o faz parecer velho. Mas é o seu romance.

Miguel Mejides é especial, diferente dos cubanos normais. Publica livros e continua a ser apresentado ao mundo, pelo regime, como prova da liberdade de expressão que existe em Cuba. Tem uma casa equipada com ar condicionado, oferecem-lhe dinheiro para as viagens de promoção, é proprietário de um computador e de um endereço de e-mail. Mas aquilo que é um privilégio para o escritor, em Cuba, deveria ser normal, nunca uma excepção, nem sequer um prémio por obediência.

Conversamos e a cabeça do escritor move-se a indagar potenciais ouvintes. Mesmo que esteja autorizado a entrar num hotel de turistas – a maioria dos cubanos não pode sequer aproximar-se da entrada – mostra-se desconfortável. Conversa na sua língua diante de funcionários que serão sempre possíveis delatores. Tentamos o francês, mas tropeço nas palavras. Decidimos, por isso, atravessar o calor das ruas.

Cortamos a densidade do ar de Havana com os corpos. O cheiro da gasolina entranha-se na roupa e mistura-se com a humidade que empasta os cabelos. Miguel Mejides anda devagar, sabe o caminho, nunca se perde. Espanta-me o seu conhecimento da literatura portuguesa, as impressões cinemáticas de Lisboa, os comentários que comparam e diferenciam escritores – os cubanos, ao contrário de Miguel Mejides, não sabem quase nada do mundo, imploram aos turistas revistas estrangeiras, mesmo em línguas que desconhecem.

Sentamo-nos para comer, beber cerveja, repetir cigarros sem filtro que magoam os pulmões. Por alguns momentos rodeamos os temas que o podem comprometer. Falamos de mulheres e do ofício da escrita. Miguel Mejides vive na desorganização de Havana mas adora a ordem de Viena. Depois acabamos por saltar para a Revolução. Mas nunca ataca o regime, faz algumas correcções, sempre com o mesma complacência que um filho desculparia os erros de um pai.

Tenho o jornal oficial sobre a cama. Estou num quarto de hotel. As crianças – los pioneros – discursam na televisão com o mesmo ritmo do líder, as suas cabeças construídas pela propaganda. Conheci famílias que comiam à vez porque não havia pratos para todos. Caminhei em passeios onde adolescentes magras se ofereceriam na rua quando me mostravam a língua. Os seus irmãos procuravam vender-me todos as mulheres da vizinhança. Recordo ainda a amiga que fui visitar, espanhola, branca, uma mulher adulta que tinha que fazer entrar o namorado, cubano, preto, pela janela do quarto.

O que Fidel Castro conseguiu foi destruir pessoas em nome de ideias. Em Cuba vive-se com medo. A confiança deixou de existir. Uma mãe pode denunciar um filho. O que era anormal tornou-se normal. A prostituição é um meio válido para a ganhar dinheiro porque não existem alternativas. Um indivíduo não pode abrir um negócio, sair do país, arrendar um apartamento. O engano, a ilegalidade, a mentira, passaram a ser mecanismos comuns para garantir a sobrevivência. Descobri que ninguém – caso vivesse em Cuba – poderia afirmar-se acima desta inevitabilidade. Qualquer um de nós se transformaria numa puta ou num informador do regime. É por isso que desisto de fazer juízos sobre as escolhas de Miguel Mejides.

Recuso qualquer argumento que defenda Fidel Castro. A revolução de 1959 – que livrou Cuba de um homem corrupto e tirano – nunca será suficiente para justificar os fuzilamentos, os campos de trabalho, a perseguição aos homossexuais, aos escritores, aos que gostam de pensar sem a doutrinação de um Estado. Fidel Castro é um criminoso que privou os cubanos dos seus direitos naturais, e perante esse impedimento de nada lhes vale o alto nível de educação, o acesso à saúde, a gloriosa resistência ao capitalismo. A origem da dignidade e da liberdade humana foi destruída. Sem os direitos naturais qualquer conforto é enganoso, qualquer conhecimento é inconsequente. Não foi o embargo – imbecil e anacrónico – que transformou Cuba num lugar parado no tempo e isolado do mundo. A culpa é de Fidel Castro. A perseverança, a resistência, o carisma, a imagem de um rebelde a descer a Sierra Maestra para libertar o povo não me me convencem. Até porque sempre houve assassinos que foram confundidos com heróis.

terça-feira, novembro 11, 2003

Por minha culpa, minha tão grande culpa.

1.
O polegar da minha mãe procura saliva na língua e depois avança para a minha boca. Limpa-me os cantos dos lábios, enquadra-me o queixo entre os dedos, paralisa-me a cara de forma a procurar algum erro que possa corrigir. Hesita um instante antes de prosseguir:

“Tu não puseste baton pois não?”

O procedimento repete-se com a minha irmã mais nova. Há um risco a destoar no brilho dos sapatos e a minha mãe gostaria de magoar-lhe a cartilagem da orelha. Mas os outros convidados para a ceia do Senhor cumprimentam a família e elogiam-nos a altura, a beleza e as roupas. O meu pai espera-nos mais adiante, pronto a intervir caso as filhas se demorem a cumprir as ordens da mãe. Avançamos, sempre com a obrigação de caminharmos como se levitássemos. Na casa do Senhor os sapatos não têm solas. Os meus pais gostariam que fossemos anjos.

Eu e a minha irmã sabemos mover a boca como se cantássemos mas sem dizermos uma palavra. Toda a congregação entoa os pecados dos homens e o castigo do Senhor. Este é o nosso terrorismo, abrir a boca sem cantar, viciar a obediência, afinal, tudo aquilo que o Senhor e os meus pais odeiam.

Confesso-me. O padre é a escuridão na forma de um homem atrás das grades de madeira. Quase não se ouve. Estou de joelhos e tenho que aceitar-lhe a autoridade que punirá as minhas omissões. Invento pecados que confirmem a minha condição de ser insuficiente. Mas nunca aqueles que me garantam uma penitência onde esteja de joelhos, por muito tempo, rezando ao Senhor diante dos convidados.

Após cumprir a pena, espero atrás dos outros, até chegar à mão do padre, oferecendo a língua e aceitando o corpo do Senhor – sem sal, mole, seco – que colo ao céu da boca. Regresso aos bancos onde o meu pai é o único elemento da família que não reza sobre os joelhos. Os homens têm outra dignidade diante do Senhor.

2.
O almoço é um ritual de guardanapos sobre as pernas e conversas em que raras vezes contribuímos com uma frase. O meu irmão chega atrasado e o meu pai não responde ao beijo, continuando a levar a colher da sopa à boca como se o lugar da mesa que restava ocupar ainda estivesse vazio. O meu irmão nunca acabou a licenciatura e vive numa outra casa com uma mulher divorciada. A minha mãe levanta-se e deixa escapar a ternura que a distância fez crescer, abraça-o, mas depois exige-lhe que se sente à mesa e que comece a comer. Grita com a empregada em vez de gritar com o filho. Há copos em falta e um garfo com um dente sujo. Há ainda os filhos da amante do meu irmão, crianças que nunca serão da nossa família.

Vou estudar para casa de uma amiga. Tenho tudo o que preciso dentro de uma mochila. Posso chegar a casa mais tarde. Estou a preparar-me para os exames. Os meus pais falaram com a mãe da minha amiga. E o meu pai leva-me, autorizando-me a viajar no banco da frente. Além de duas perguntas sobre a matéria que vamos estudar, não conversamos durante todo o percurso. Não temos nada para dizer um ao outro. O meu pai vê-me a tocar à campainha, espera que o portão da casa se abra. Depois certifica-se que entro no jardim e volta a ligar o carro.

3.
Em vez de um dedo molhado com saliva, tenho um guardanapo de papel a eliminar o excesso de baton nos cantos dos lábios. A irmã mais velha da minha amiga ocupa-se da maquilhagem e empresta-nos alguns acessórios. Dias antes, ao telefone, imitou a voz da mãe – de férias – quando garantiu aos meus pais uma tarde de estudo. Tenho uma t-shirt que mostra o umbigo e umas cuecas que se revelam acima da cintura das calças. Vejo-me ao espelho e encontro um piercing falso no nariz. Vou dançar.

O pó branco está dentro de uma bolsa de plástico. É entornado sobre a capa de um livro. Estamos num carro, faz sol e alguém ordena:

“Faz agora que não está ninguém a olhar.”

Como me ensinaram, aperto uma narina com um dedo e aspiro – através de uma palhinha às riscas – o pó branco pela outra narina. Depois mudo de lado. Mas no intervalo há lágrimas nos olhos porque parece que me estão a queimar o interior da cara. Saímos do carro e acendo um cigarro. Apetece-me beber e conversar. Ouvimos já a música da festa. É preciso ter o nome na lista. Estamos com a irmã da minha amiga. Vamos entrar.

É Domingo à tarde e as pessoas devem estar em casa, ou em parques, ou a prepararem-se para os exames. Mas aqui todos se viram para o DJ, reconhecendo-lhe o talento através de assobios, levantando os braços, saltando de olhos fechados. A minha amiga leva-me à casa de banho. Não há trinco. Encostamo-nos à porta e ela despeja mais pó no espaço de carne que fica entre o polegar e o indicador. Depois cheiramos e lambemos o que sobra colado à pele. Quando fumo outro cigarro tenho a boca dormente. Sempre que levo um copo à boca julgo que os dentes incisivos vão cair.

Criámos uma rotina. Depois do pó na casa de banho, corremos para o bar, pedimos uma bebida, acendemos um cigarro e mudamos para a pista. A minha amiga ordena-me que não toque no nariz e pergunta-me – pergunta-me vezes sem conta – se tem restos de pó nas narinas. Dançamos e há homens e mulheres que me olham e que se colam ao meu corpo quando querem chegar ao outro lado da pista de dança.

Após algumas viagens à casa de banho deixamos de ver a irmã da minha amiga. Estava sentada num sofá, fumando cigarros de erva e encostando a cabeça a uma almofada enquanto um rapaz lhe lambia o pescoço. Ela desapareceu mas não tenho medo. De cada vez que cheiro o pó branco sinto-me melhor. Só existe a pista de dança onde as outras pessoas não deixam de reparar no meu corpo. Tocam-me, riem, oferecem-se. Nada de mal me poderá acontecer.

4.
Não temos mais pó branco, algumas pessoas começam a abandonar a festa e o carro da irmã da minha amiga não está no parque de estacionamento. Não sei o que fazer mas incomodam-me as conversas dos outros. A minha amiga quer regressar à pista de dança. Já não preciso de companhia. Começo a andar até que apanho um táxi. Abro a janela, fecho os olhos, não consigo controlar os maxilares. Mordo-me. Há uma ansiedade que cresce na barriga e que se expande pelo peito. Consigo provar o pó branco na garganta. Apetecia-me estar em todo o lado, sem falar com ninguém. Os meus olhos no retrovisor crescem sempre que me procuro no espelho. Empurro os dentes contra os dentes, cada vez com mais força. Isto nunca vai acabar. Pago, fecho a porta, caminho depressa, tão depressa que posso escutar a minha pulsação cardíaca dentro da cabeça. Entro em casa e as luzes estão apagadas. No meu quarto esfrego a maquilhagem na roupa que cheira a fumo e escondo tudo num saco de plástico. Sinto muito frio. Não me atrevo a lavar os dentes. Ardem-me os olhos e começo a ficar muito triste. Tenho medo. Cubro a cabeça com o lençol e cobertores. Não consigo dormir. Escuto um colchão e pés sobre o soalho. Depois um autoclismo e uma torneira. Procuro fechar os olhos – ardem-me ainda mais – mas tudo se mantém luminoso. A porta abre-se, alguém espreita e regressa ao corredor. Estou certa de que não conseguirei dormir até de manhã. Posso mesmo mastigar a angústia dentro da boca manchada pelo álcool, cigarros e restos de pó branco esfregados nas gengivas.

Esta é a minha culpa, como se passasse os dias a mover os lábios, fingindo, desobedecendo, em vez cantar palavras de louvor. Ensinaram-me a temer o Senhor e este é o começo do meu castigo. Porque o Senhor está em todo o lado. Os meu pais estão em todo o lado. Glória a Vós Senhores.

sexta-feira, novembro 07, 2003

I’m too sexy for my shirt

E depois há um instante em que suspendo a respiração, silenciosa, no centro da casa, esmagando o estojo de maquilhagem entre os dedos. Se corresse o fecho, fosse rápida, acertasse no risco do olhos, talvez conseguisse aparecer na janela do prédio. O meu corpo estaria escondido, sem que fosse visível qualquer prega de gordura a transbordar do elástico da cinta. Lá em baixo, no momento de abrir a porta do carro, ele olharia para a janela. E eu seria apenas cara, sem borbulhas, com os lábios insuflados pelo baton, escondendo nos bolsos as mãos redondas de carne.

Mas nada acontece, escuto a porta do carro e o motor vai desmaiando com a distância. Custa-me mover o corpo. Talvez tenha algumas costelas partidas. Sempre que os meus pulmões crescem há um ruído de loiça a estalar. Fico assim durante algum tempo, observando as luzes do carros a evoluir no tecto da sala até que desaparecem e não se escuta mais nada, talvez apenas um cão e os ramos das árvores com o vento.

Onde estou não consigo ver o espelho mas imagino o meu corpo ainda maior. Sempre a aumentar. Olho as minhas mamas moles e com grandes círculos castanhos. A linha que limita os mamilos é rugosa. O meu umbigo é saliente. Um semi-círculo de pele a sobressair no centro da barriga. Agarro uma das almofadas do sofá e limpo o suor do saco de gordura que liga o queixo ao pescoço. Dói-me cada vez mais.

Penso em telefonar a alguém mas é muito tarde, talvez ao rapaz que, ao passar pela minha secretária, repete todas as manhãs a certeza de existirem semelhanças entre mim e uma actriz de cinema. Tenho a fotografia dela numa moldura, um rectângulo de papel que recortei de uma revista. E claro que até somos parecidas, qualquer coisa nos olhos, ainda mais agora que usamos o mesmo lápis. Cada dia que passa o rapaz garante-me que estou mais próxima da actriz, são os sapatos que me cortam os calcanhares e incham as veias das pernas. Ou os soutiens que me magoam nas costas. Dispo-me à noite e a roupa interior está marcada na gordura branca do meu corpo. Comprei comprimidos para eliminar as borbulhas, arranjo os pés, deixei de comer antes de ir para a cama, sou proprietária de uma máquina de ginástica. E cada vez com mais frequência o rapaz afirma que me pareço com a actriz. Esta semana mostrei uma revista à minha cabeleireira, apontei para a fotografia:

“Quero o corte de cabelo dela.”

E enquanto falava para a minha imagem no espelho, manobrando uma tesoura, a cabeleireira confessou-me que o meu cabelo era mais lustroso do que o cabelo da actriz. Por isso comprei um anel que me aperta o dedo e que tive de lamber – depois entornei sabão líquido na prata – para que deslizasse sobre as falanges e me deixasse de magoar.

Hoje o telefone tocou tarde, estava na cama, as unhas dos pés brilhando verniz e separadas por bolas de algodão, caminhei sobre o calcanhares até ao aparelho:

“Mas é muito tarde amanhã tenho que trabalhar cedo.”

Ele disse-me que isso não interessava nada, que os amigos tinham ido para casa e que precisava de companhia. Mesmo que o soubesse bêbedo – sempre que bebe tem vontade de me agarrar e de fazer amor sem protecção – disse-lhe para aparecer mas que descalçasse os sapatos antes de subir as escadas.

Pensei que poderia experimentar a roupa nova, a mesma que a actriz vestia esta semana quando falava na televisão. E ele, ao ver-me, apagaria um cigarro para me dizer:

“Estás linda.”

Mas ao abrir-lhe a porta agarrou-me no pescoço, não me beijou, a língua entrava-me na boca e sabia a álcool, marcou-me as nádegas com os dedos, desapertou as calças e mostrou-me o sexo, puxou-me os cabelos até que me ajoelhasse e empurrou-me a cabeça, ocupou-me a boca, não conseguia respirar, sentia-me a asfixiar, quase vomitei. Depois rasgou-me a camisa, mandou-me virar de costas, não me despiu, afastou a saia, as cuecas, continuou a controlar-me pelos cabelos, esbofeteou-me e mordeu-me a cara, bateu-me nas costas e quando ejaculou abriu-me golpes nas coxas com o tamanho das unhas. Levantou-se e parecia recuperar a sobriedade, vestiu as calças, lavou a boca, ainda circulou pela sala como se andasse à procura de alguma coisa que tivesse medo de esquecer, mas evitava olhar para o meu corpo na carpete, como se tivesse nojo, como se depois do desejo me tivesse transformado numa outra mulher. Saiu sem dizer nada. E agora estou no chão, a minha pele com sangue pisado e o meu sexo sujo. Ainda tenho um sapato calçado, a maquilhagem deve ter desaparecido, misturada com saliva, dói-me muito, custa-me trazer ar aos pulmões.

A porta do carro, o motor, um cão, os ramos das árvores. Mas se conseguisse levantar-me, abrir o estojo de maquilhagem, ver-me ao espelho, esconder o tamanho do corpo, mostrar apenas a cara na janela, talvez ele desse a volta e, com os sapatos na mão, me pedisse para lhe abrir a porta. Talvez ele compreendesse, como o rapaz do escritório, que eu me pareço mesmo muito com a actriz da fotografia na moldura.

quarta-feira, novembro 05, 2003

Desculpem, senhoras e senhores, mas é verdade

Os portugueses – em particular os que vivem nos centros urbanos – são mal formados. Aquilo que sempre desconfiei é agora uma certeza. E nem o risco de produzir uma generalização me impede de afirmar que os portugueses sofrem de falta de educação, civismo e simpatia. Confundem arrogância com boas maneiras, julgando que tratar mal os estranhos lhes garante uma superioridade social que nunca poderei aceitar.

Canso-me da antipatia das pessoas nas ruas e de todos aqueles que não sabem agradecer sempre que lhes abro uma porta. Incomodam-me as pessoas que maltratam os empregados e os empregados que julgam estar a fazer um favor aos clientes. Assusto-me com o número de condutores bêbedos, aceleras, e com as mortes que provocam na estrada. Evito perguntas a estranhos porque quase sempre suspeitam da abordagem, como se fosse um crime falar com quem não se conhece. São episódios idênticos que se repetem todos os dias. A má formação é uma certeza que já ninguém contesta. Tornou-se normal, faz parte da casa, como se apenas nos restasse aceitar o que está errado.

Os portugueses – salvo algumas excepções – andaram de cabeça baixa durante meio século de ditadura, sempre conformistas e pouco dados a revoluções sociais, políticas ou económicas. Viviam bem com um ditador provinciano, isolados do resto do mundo, dependentes do Estado. A prová-lo está fraca história de oposição – se não contarmos com as acções do Partido Comunista não houve quase ninguém para contestar o regime.

Mas em menos de 20 anos, após a Revolução, viram-se a conduzir bons carros em auto-estradas, descobriram as maravilhas dos electrodomésticos, começaram a viajar para destinos tropicais com pulseiras coloridas que lhes garantem consumo sem limites em hotéis à beira da praia. Acontece que a estrutura mental, essa, quase não mudou. Portugal continua longe do resto do mundo civilizado – embora não acredite. Temos alguns dos meios mas não temos a formação. E o resultado vê-se nas pessoas que ensaiam uma pose para compensar a ausência de conteúdo, como se uma casa com três assoalhadas lhes escondesse as insuficiências no comportamento.

Os portugueses continuam também a ser pessoas com baixa auto-estima – em parte porque são maus naquilo que fazem – temos a mais baixa produtividade da UE – e para esconder essa pobre auto-estima protegem-se com o que têm para mostrar. Começa aqui o novo riquismo que tem como sintomas a prepotência, a ostentação e uma aridez de ideias, princípios e senso comum.

Mas a má educação dos portugueses tem alvos preferenciais – todos os desconhecidos ou aqueles que estão abaixo na hierarquia social, financeira, ou profissional. Porque diante de figuras públicas rendem-se, esticam as mãos para cumprimentos, fazem vénias aos senhores doutores e chamam Senhor Presidente aos dirigentes dos clubes de futebol. Os que assobiaram o primeiro-ministro no Estádio da Luz fizeram-no porque eram parte anónima de uma multidão. Aposto que se Durão Barroso lhes aparecesse em casa, com a sua comitiva, abririam a porta, sorrindo, para depois convidá-lo a entrar. A subserviência com os mais poderosos revela apenas a fraca capacidade contestatária e de iniciativa individual dos portugueses.

O problema é mais grave nas classes altas e piora com os seus imitadores – as cópias serão sempre mais medíocres que os originais. Sendo as classes altas conservadoras por natureza, escolhem a sobranceria e a má educação para criar distância quando confrontadas com pessoas desconhecidas ou outros estilos de vida. Querem preservar um universo que, apesar de limitado, lhes parece a melhor maneira de existir. Tudo o resto não presta. Estas são pessoas com dinheiro e com acesso à educação que poderiam viajar ou estudar no estrangeiro mas que preferem fazer o circuito estival de Vila Nova de Mil Fontes/ Quinta do Lago/ São Martinho. São pessoas que se parecem demasiado com os pais e com os avós e que não autorizam qualquer espécie de progresso. Sofrem de um autismo profundo. Recusam que há diferentes, e se calhar melhores, maneiras de viver. São pessoas que julgam que o dinheiro – visitem Nova Iorque, Saint Tropez, Londres, para verem o que é realmente dinheiro – ou a antiguidade lhes permitem maltratar todos os que não existem segundo as suas regras.

Um amigo que chegou de Cannes falava-me sobre as mulheres que conhecera e concluiu o relato com um raciocínio comparativo:

“As mulheres em Cannes têm o dobro da qualidade e metade da arrogância das mulheres portuguesas.”

O raciocínio embora pareça prosaico serve de exemplo. Porque enquanto continuarmos a ter a pior das enfermidades – a auto-indulgência – não mudaremos. É preciso identificar o que está errado em vez de acreditarmos que estamos no caminho certo – porque não estamos. É necessário evitar as desculpas com o passado ou com o atavismo cultural, porque há coisas que são universais – a boa educação é uma delas. O desenvolvimento, o civismo ou a qualidade de vida não deveriam depender apenas da cultura de uma nação. E nem valerá a pena dizerem-me que em determinado país é pior – eu, pelo menos, gosto de comparar-me com os melhores. É por isso que não aceito a auto-indulgência. Não aceito que me digam que não faz mal fugir aos impostos ou chegar atrasado a um encontro uma vez que em Portugal é assim. Em Portugal – como nunca ninguém paga pelos erros – o “é assim” serve de argumento para todas as falhas. Mas como não me satisfaço com justificações que apenas incluam:

“É assim.”

Continuarei a escrever, a falar, a questionar, com a boa educação que julgo ser normal na convivência entre pessoas, mesmo entre pessoas que nunca se conheceram e que nunca mais se voltarão a encontrar. Bom dia e muito obrigado.

terça-feira, novembro 04, 2003

Your name is not Lolita

Já não existem muitas pessoas como eu. Pessoas que procurem outras pessoas em lugares tão improváveis como livrarias. As minhas tardes são agora vigílias passadas entre corredores de livros. Por vezes ocupo-me com uma capa, a biografia do autor, ou mesmo algumas páginas. Todos os dias procuro a mulher que aparece agora pela primeira vez, depois de várias semanas, segurando uma caixa cor-de-rosa e acompanhada pelas amigas.

Conhecemo-nos numa festa onde havia gansos de gelo e pessoas que se fascinam com animais esculpidos em água. São pessoas que se repetem na roupa, nas pausas, nos nomes, gente que se gasta mesmo antes de chegarmos ao fundo do copo. Nessas festas vou muitas vezes buscar mais uma bebida ou levanto a cabeça como se procurasse alguém que deveria estar ao meu lado. Finjo encontrar um amigo na varanda apenas para não estar imóvel. Demoro-me junto das garrafas, avaliando os rótulos, como se não soubesse o que quero beber.

Certa noite, procurava alcançar a área mais escura da sala quando encontrei uma mulher que fazia o percurso inverso, no outro lado dos sofás, e que continuou a olhar-me, sem o receio de bater com um joelho numa cadeira enquanto caminhava. É fácil iniciar uma conversa numa casa quase sem luz. Falámos de aeroportos, restaurantes e destinos de férias. Iniciámos a fase em que se destroem os outros convidados, comentámos sapatos e desvios sexuais, revelámos episódios que ridicularizavam cada uma daquelas pessoas. E quando um de nós viajava para a casa de banho, o outro, o que permanecia na sala, ponderava uma alternativa, identificando e escolhendo aqueles que possivelmente estariam sozinhos ao fim da noite.

Esperei que os convidados se afundassem no chão e nos sofás, ou que se drogassem com mais frequência, primeiro na casa de banho, depois em cima de uma mesa de vidro, no centro da casa, assim que a gula e a euforia acabassem com a vergonha social. O apodrecimento da atenção dos outros tornava-nos menos visíveis. Senti-lhe as mamas ainda antes de beijá-la. Ela abriu e boca e ordenou:

“Quero a tua língua.”

Estivemos num canto da casa, roçando pernas contra pernas e movendo os dedos debaixo do tecido. Sempre de olhos fechados, até que perdi a localização do meu próprio corpo e não poderia dizer onde se encontrava a porta de saída. Peguei-lhe na mão para lhe dizer que íamos abandonar aquela casa. Ela avisou-me que acordava sempre cedo e que não deveríamos gastar tempo de sono. Entrámos num dos quartos, não trancámos a porta. Ouviam-se outras vozes e o ranger de vários corpos na casa de banho. Perguntei-lhe a profissão. Ela não conseguia responder, concentrada no fecho das botas que não deslizava. Eu sentei-me no soalho e descalcei-a, vi-lhe os joelhos arranhados, toquei-lhe a carne branca e os riscos vermelhos onde o sangue solidificara. Pareciam as pernas de uma criança que cai da bicicleta sempre que tenta subir um passeio. Ela retomou o diálogo com a rapidez dos que se julgam mentirosos competentes:

“Trabalho numa livraria.”
“Algum autor preferido?”
“Nabokov.”
“Como te chamas?”
“Lolita.”

Tenho passado as últimas semanas nas livrarias de Nova Iorque embora saiba que ela nunca trabalharia atrás de um balcão. Ninguém a conhecia na festa. O número de telefone que escrevera num guardanapo levou-me a ligar para uma loja onde conversei com estrangeiros que vendiam imitações de relógios, malas e óculos escuros. Revelaram-me que não era a primeira pessoa enganada. Mas imaginei que gostasse de livros e comecei a visitar todas as livrarias da cidade.

Agora está diante de mim, sem me ver, conversando com as amigas que analisam a caixa cor-de-rosa que me parece um jogo. Os sapatos são escuros, as meias sobem pelas canelas e a saia mostra uma linha de pele acima dos joelhos. Está vestida com um uniforme de escola. Antes de entrar na casa de banho pede às amigas:

“Desejem-me boa sorte.”

Compreendo que estas são as meninas adolescentes que procuram viver à frente do seu tempo. Estão em todas as festas de homens ricos em Nova Iorque, mesmo que não tenham idade oficial para beber ou para oferecer sexo com a boca. Fala-se delas mas nunca ninguém as consegue identificar. Gostam do dinheiro dos outros e da impunidade conseguida pela inocência das caras ainda sem quaisquer marcas. Adoram viajar de helicóptero com celebridades. Durante a noite parecem mulheres adultas, despem-se depressa e usam maquilhagem. Mas frequentam escolas onde se reza pela manhã. Têm tudo aquilo que querem. Estão protegidas contra quase todos os crimes. E nunca sofrem castigos. Não acredito que algum vez se desiludam com a vida.

Ela sai da casa de banho sem a caixa cor-de-rosa e anuncia às amigas que não está grávida. São apenas adolescentes que celebram. Não me olham, não escolhem livros nas estantes, regressam a casa para estudarem equações com duas incógnitas ou experimentarem baton enquanto conversam ao telefone. Uma destas noites vão regressar ao ofício do engano, usando os falsos corpos sem mácula e algumas frases escolhidas de filmes – ela nunca leu Nabokov – para entregarem esperança a homens que, como eu, já não acreditam nas pessoas.

Ela não me reconhecerá numa livraria, não procurará encontrar-me nas festas onde talvez nos cruzemos, mas ofereceu-me a carne, o delírio dos tontos, a língua dentro da sua boca e um parágrafo que me desperta a pulsação cardíaca, nem tanto pelas palavras, antes pela recordação do meu corpo a crescer. Abro a página, tudo começa:

“Lolita, luz da minha vida, fogo da minha virilidade. Meu pecado, minha alma. Lo-li-ta: a ponta da língua faz uma viagem de três passos pelo céu da boca abaixo e, no terceiro, bate nos dentes. Lo. Li. Ta.”

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