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quinta-feira, janeiro 29, 2004

Comer-te viva

“You’re the real thing, even better than the real thing”

U2


Introdução

Vi-o ainda antes de o conhecer. Primeiro num filme pornográfico, alugado numa loja em East Village, assim que um amigo me falou do projecto televisivo que incluia esse actor. Fiz também parte daqueles que visionaram o programa antes de ser apresentado aos executivos da estação de televisão. Era um diário audiovisual desse mesmo actor, estrela porno, a viver na Califórnia. Decidi agora juntar transcrições de frases e imagens apanhadas pela câmara - que o seguiu durante um mês - e um relato dos dias que passámos juntos em Nova Iorque. A responsabilidade da edição e de algum ajuste na tradução é apenhas minha. O programa nunca chegou a ser transmitido. Nem sequer comprado.

Dia 3
Los Angeles, 10h00, testemunho do actor


Eu existo. Provem, mastiguem e engulam. Observem-me nos espelhos da casa e nas fotografias penduradas na parede. Toquem no ecrã da televisão.

Lição número um.
O corpo é importante. Vejam o contorno dos bícepes, a pele para lamber, o tamanho do pénis circuncidado mesmo em estado de descanso. Depois de acordar engole-se um batido de banana e esperam-se dez minutos. Ouve-se música ou descobre-se a televisão. Nada de programas para sorrir. Apenas notícias. Passam-se trinta minutos na máquina de corrida. A resistência é uma qualidade. Transpirar limpa a circulação sanguínea e serve de lavagem automática para a pele. Os pulmões têm de ser grandes, aguentar as provas físicas. Quando se passam seis horas a foder respira-se fundo, adia-se o sofrimento e a exaustão. Os braços exercitam-se porque são como alavancas, ou gruas que sustentam todo o meu peso de cada vez que estou em cima de uma actriz, de uma actriz porno, de uma mulher. Os braços não podem falhar, sofrer tremores de cansaço, desistir sempre que alguém espera que continuemos com a actividade de martelar outro corpo.

As pernas e as nádegas devem mostrar-se duras e com todos os músculos definidos. De cada vez que estou fora da cama e a mulher, a actriz, a profissional, me recebe como os cães nos ensinaram, contraio as coxas e as nádegas, invento beleza. Outras vezes, quando por um erro da produção existe um desnível entre os corpos, uma cama elevada, uma actriz alta, forço-me a estar em bicos de pés, como os bailarinos, profissão de rápido desgaste. Por tudo isto, o exercício do corpo é importante e obrigatório.

Vamos passar pelo corredor, espreitar as duas mulheres, não actrizes, que ainda dormem no meu quarto. Lembrem-me que os lençóis são para a máquina de lavar. E antes de entrarmos na casa de banho, tirem os sapatos.


(Plano de corte, frascos de creme, pasta de dentes, toalhas brancas, pente com dentes em madeira)

Lição número dois.
A higiene é uma forma de beleza. O cabelo deve ser curto e sem produtos pegajosos que enfraquecem as raízes e se mostram desgradáveis aos dedos das mulheres, actrizes profissionais ou mesmo as que não fodem apenas por dinheiro e fama. Deve fazer-se a barba minutos antes de entrar em cena mas guardar sempre o tempo necessário para que a pele absorva o creme hidratante e aceite a maquilhagem. Como podem ver, estou nu diante deste espelho de corpo inteiro, como se fosse uma cama. E nenhum pêlo em qualquer lugar da pele. Cada um escolhe a técnica de depilação, mas uma pele lisa e macia é uma exigência. Não só o corpo parece mais limpo e mais acessível, como os músculos se revelam na sua disposição natural. Os pêlos escondem-os. A zona púbica e do anús é difícil, reconheço, mas se rapada mostra a verdadeira dimensão do pénis. Vocês pediram para dizer pénis, por isso digo pénis e não caralho.

Para as mulheres, um corpo masculino sem pêlos é mais fácil de aceitar. Quando praticam sexo oral, respiram pelo nariz, por isso, se desimpedirmos a zona púbica, facilitamos o trabalho e aumentamos, por consequência, o prazer, assim como a visibilidade. Afasto-lhes o cabelo, prendo-o nas minhas mãos e observo, guiando o pescoço, forçando-o, por vezes. Venho-me, gozo, ejaculo. Como quiserem.

(Plano de corte, porta aberta do quarto, corpos escondendo-se nos lençóis, cabelos loiros)

Estas mulheres, que não recebem para foder, se esquecermos o dinheiro para o táxi e as garrafas de champanhe que despejaram, fazem parte da ginástica que antecede um dia de filmagens. Não são para comer, mas apenas para admirar, para me fazer crescer, para que me masturbe. São um isco, obrigam-me a correr sozinho, são parte do plano de treinos. Ficam na cama, lambendo-se, usando os dedos e os vibradores que escolhem no armário, rodeando-se de brinquedos sexuais, coleiras, lubrificantes, pénis que se atam à cintura, capacetes e bastões de polícia, botas de borracha com desenhos de gatos.

Durante a sessão de ginástica, nesta poltrona insuflável, masturbo-me três vezes, número necessário para a preparação de um dia a foder diante das câmaras. Sou capaz de pensar em muitas coisas quando me masturbo, putas de rua, actrizes, grupos de desconhecidos, trocas de casais, coisas que já fiz, nunca as que ficaram por fazer. E se apertarem a glande do pénis, sim, se apertarem o caralho quando estão quase a vir-se, a gozar, a ejacular, podem começar tudo outra vez. Sem dor, apenas prazer.

Dia 7
Nova Iorque
Relato de um almoço na Rua 14, Meat Packing District, 13h21


O actor escolheu uma salada e depois pediu uma banana que descascou e comeu em poucas dentadas. Conversou sobre o consumo de cocaína pelos profissionais do sexo para demonstrar as vantagens da abstinência. Não aceita sequer o fumo dos cigarros das outras mesas e não bebe álcool, apenas água, leite e sumos energéticos. Afirmou que a carne, a sua carne, tem que estar intacta, para ser dura, para funcionar. Contou que se exercita, inventando técnicas de resistência e que, depois de respirar fundo, recupera sempre o controlo, preserva a erecção e evita um orgasmo precoce antes do momento exigido pelo realizador. Tem método, por vezes enfia o pénis dentro de um balde de gelo ou fecha os olhos e diz, numa voz que não se escuta, a tabuada dos nove e imagina crianças que trabalham em fábricas de fogo de artifício, operações de torax aberto, carneiros degolados, reuniões ou tarefas domésticas por organizar. Sempre que precisa de recomeçar, bebe refrigerantes e come chocolates uma vez que os hidratos de carbono fornecem energia. Depois de ejacular, engole pacotes de açúcar. No tempo da mulher se limpar afirma que está de regresso ao estado sólido.

Quando pedimos a conta, o actor já tinha comentado as características físicas de todas as mulheres do restaurante e iniciado uma conversa com a empregada. Descreveu, com frequência, o que lhes faria se as levasse para a cama. Mas, em diversas ocasiões, escolheu outros lugares para o sexo imaginário, como a casa de banho do restaurante, o corredor do hotel ou um estábulo com cavalos.

No dia anterior tinha participado numa sessão de autógrafos, numa sex shop, aproveitando para promover o último filme que protagonizara. Entre a assistência estava uma mulher, mãe da actriz porno Gigi Star, com quem entrou numa cabine onde se depositam moedas e se descobrem raparigas que se despem, atrás de um vidro, num palco rotativo. Mais tarde, quando nos encontrámos no hotel, contou a tarde de sexo com a mulher de meia idade, as pernas ocupadas em manhãs de ginásio, peito com implantes e lábios apertados em injecções de colagéneo. O problema inicial era o do incesto indirecto, uma vez que contracenara com a filha dessa mulher. Se o beijasse, dizia ela, era como se estivesse a praticar sexo oral com a filha. A imagem apenas aumentou a vontade do actor.

Durante toda uma tarde de compras, no SoHo, analisou partes de corpos, ignorou as mulheres inteiras. Empregadas de balcão, vendedoras de rua, clientes de esplanadas. Disse depois que precisava de sono, porque a noite seria entre bares e mais mulheres desconhecidas. Antes de se despedir disse também que se sentia emocionalmente cansado.

Relato de uma noite no Bar do Hotel TriBeCa Grant, 23h15

O actor disse-me que as pessoas dançam como fodem, ou pelo menos prometem. A noite não é apenas a conversa com amigos, desconhecidos, parceiros de negócios, ou copos com bebidas alcoólicas de cores diferentes, a agitação nos joelhos, nas coxas, na cintura. As pessoas saem para se comerem.

Afastou-se para a pista de dança e quando regressou apontava para um modelo de boné de basebol e braços musculados que segurava as ancas de uma adolescente loira, conduzindo-lhe o corpo, fingindo uma dança. Mas para o actor, aquilo que interessava ao modelo, aquilo em que ele acreditava nesse momento, era na possibilidade de agarrar a adolescente pelos cabelos enquanto ela, de costas e em pé, se apoiaria na mesa de uma sala num qualquer apartamento com vista para o parque.

O que sobrava da noite foi como um espectáculo de conquista. O actor ordenou que desligassem a câmara e apagassem os holofotes. Começou com uma loira de pernas magras e calças de ganga que revelava o fio das cuecas e com quem dançou, tentando lamber-lhe o pescoço. E depois uma mulher que era apenas lábios onde brilhava uma argola de metal, com cabelos curtos e loiros, dançando no centro de uma agitação de drogas e distância. E uma outra de vestido negro, rodeada de fotógrafos, compondo o penteado loiro de cada vez que os flashes se suspendiam, acompanhada por um atleta, ou um actor, ou um músico.

No chão descobriam-se pedaços de copos partidos e beatas e notas e moedas. As opções diminuiam e havia uma nuvenzinha de álcool nos olhos dos que prosseguiam na dança. Durante várias músicas enrolou os braços na cintura de uma mulher que se afastava para sorrir com as amigas e que depois regressava. E no momento de transição de discos, quando o actor nem se movia, foi abraçado por uma outra mulher, com vincos de gordura na barriga, cabelo pintado de loiro e um pescoço transpirado e gordo que o actor beijou antes de lhe chegar à boca. Ao desaparecer para o elevador, encostou os lábios na minha orelha para dizer que todos os homens são fáceis e que às cinco da manhã já nem querem foder. Apenas se querem vir.

Dia 19
Barcelona, 18h54, Festival do Sexo, testemunho do actor


Durante a viagem de avião, com a câmara desligada, decidi contar as mulhers que comi e as nacionalidades. Dentro e fora dos estúdios, cálculos incertos, talvez sejam umas duas mil, de todos os continentes, mulheres que falavam várias línguas e trabalhavam com essas línguas de maneira desigual.

Se me pedem a verdade - digo sempre a verdade - todos os homens querem ser como eu, querem poder andar nos corredores deste festival de sexo e apontar para as actrizes em sessões de autógrafos e dizer:

“Já fiz aquela, aquela e aquela, aquela fez-me, já fiz aquela e a irmã, e aquela que finge ser do leste europeu mas que pinta o cabelo de loiro”

Todos os homens esconderiam as alianças, inventariam desculpas, alguns telefonariam aos advogados para tratarem do divórcio, porque a tesão seria tão evidente dentro das calças do fato que a mulher, a esposa, a verdadeira, nunca acreditaria num congresso no estrangeiro, numa viagem de negócios, numas férias com os amigos de infância.

(Plano de corte, um japonês que enrola o peito de uma mulher com cordas, uma televisão com anões que se masturbam, altifalante que anuncia sessões de sexo ao vivo)

Como podem os homens mentir, como conseguem dizer que não preferem estar aqui,onde as mulheres, actrizes porno, putas dentro das nossas cabeças, se rapam diante do público, onde mostram as mamas e se deixam tocar, oferecendo, em troca da compra de uma cassete de vídeo, uma fotografia polaroide de pernas afastadas e mamilos duros?
A verdade, a verdade está ali, naquele cartaz em espanhol. Encontram naquela frase tudo o que posso dizer sobre os homens e o que experimentam todos os dias, a ambição de se estrearem noutros corpos, frescos, a novidade e a quantidade, apontem a câmara, leiam:

“Fornica bien, no mires a quien.”

Porque as emoções valem no momento, nada se prolonga, todos acabamos por morrer e os sentimentos apodrecem, são um engano que alguns escolhem para esconder a própria natureza, mas, foda-se, não me mintam, não me digam que não somos os animais que depois de foder, de fornicar, de copular, o que quiserem, não descobrem defeitos nos dedos dos pés, nas unhas mal pintadas, no corpo que se levanta e caminha para a casa de banho para se lavar do que acabámos de lhe oferecer. E assim que saímos à rua de manhã, com o cheiro dessa mulher nos dedos e nos lábios e na barba por fazer, já estamos a pensar no que fazer com as mamas gigantes de uma caixa de supermercado que lê um tablóide na carruagem do metro. Acabámos de dormir numa casa que não é a nossa, com uma mulher que conhecemos na noite anterior, e a novidade esgotou-se, queremos outra sessão de caça, outra presa, com outro cheiro, outro formato, outro sabor.

(Plano de corte, vendedor de bilhetes, cassetes de vídeo com travestis e animais, cadeiras com vibradores)

Daqui a pouco tenho que regressar a um quarto de hotel e filmar duas cenas, uma de dupla penetração anal, com uma mulher espanhola e um actor francês, e outra de sexo em grupo, quatro homens para uma mulher. Tenho uma profissão de risco, trabalho sem preservativo por dedicação à beleza do sexo e do amor, palavras iguais. Sou um cronista do meu tempo, um profeta da felicidade, uma chave para a paz mundial, porque eu faço e espalho amor, eu digo a verdade quando utilizo a expressão:

“Fazer Amor.”

Um amor que produzo e fabrico e que é distribuido em cassetes de vídeo, em revistas, em salas de cinema para adultos de todo o planeta. Eu sou o amor comercializado e empacotado em caixas coloridas, publicitado, com preço, grátis, em promoção, eu sou o amor de agora, o amor biológico dos homens, o mais autêntico, o que todos conhecem mas que poucos aceitam. Represento o prazer das hormonas, a natureza, a minha e a nossa essência. E esta é a nossa inevitabilidade, mas também a nossa única certeza.

sexta-feira, janeiro 23, 2004

Aviso

Não me agradam as repetições, mas tenho que recuperar este texto, escrito e publicado aqui há alguns meses. O filme estreia agora em Portugal, embora o que tenha escrito seja apenas Nova Iorque, uma maneira de lá estar, ainda que Lost in Translation se passe em Tóquio.


Quero ser como tu

Talvez seja a qualidade dos protagonistas ou a beleza do enredo, mas o cinema costuma ser mais interessante que uma vida normal. É por isso que hoje – após muitos anos a pensar numa carreira de pugilista, rebelde, justiceiro, solitário, ou chefe do crime organizado – pondero ser apenas um homem que envelhece, estrela de Hollywood, perdido em Tóquio, mas que consegue fazer sorrir uma mulher mais nova. Eu quero ser Bill Murray, em Lost in Translation, o segundo filme de Sofia Coppola.

Depois de anos a imitar personagens musculadas, intelectuais sedutores, ou polícias que acabam suavizados por mulheres bonitas, escolho ser agora um homem cuja cara no espelho começa a pesar, uma cara que é uma coisa qualquer menos a cara que já foi antes. Sou esse homem que não consegue dormir, longe de casa, e que descobre o silêncio insustentável quando é ignorado pelo ruído das ruas de Tóquio. A minha mulher é uma voz no telefone, também distante, que se preocupa com a escolha da alcatifa para uma das divisões da casa. A minha carreira é filmar anúncios de whisky japonês com pessoas que nem sequer falam a minha língua. E, no entanto, enquanto fumo charutos amassados e me embebedo, aparece essa miúda loira, os lábios espessos, os olhos tão tristes. Eu quero estar hoje num elevador, em Tóquio, e ver Scarlett Johansson que me sorri entre japoneses que apenas olham em frente enquanto eu olho para ela.

O que Sofia Coppola conseguiu fazer foi um filme onde eu quero estar. Como quero estar deitado, sobre a colcha, vestido, conversando com Scarlett Johansson enquanto o sono nos vai comendo as ideias e demorando as palavras. Quero tocar-lhe no pé magoado e apagar a consciência, como apagamos tantas vezes por causa do sono, a meio de uma conversa. O que Sofia Coppola me ofereceu foi um filme que me faz egoísta, que quero apenas para mim, como se fosse a minha vida. Lost in Translation consegue beleza e significado sempre que alguém permanece em silêncio; revela o humor que sempre quisemos mostrar a quem gostamos; é verdadeiro, sincero, e tão bem feito que me esqueci de procurar as costuras do enredo. Cada cena, cada detalhe – assim devem ser os filmes – não são apenas um capricho da realizadora em busca da beleza das imagens, mas um momento decisivo para contar a história que se quer contar.

Vou lembrar-me também de uma sala de cinema, em Brooklyn, construída num prédio de habitação onde os estreitos corredores e as portas – antes eram quartos, cozinhas, casas de banho – mostram as estrelas de cinema pintadas pela mão de algum artista amador. Há ainda a fotografia de James Dean, as golas do casaco levantadas e o cigarro na boca apontado à desolação da rua onde, com toda a certeza, vai chover. Gostaria de ter entrado no mesmo cinema e repetir tudo outra vez, pois essa seria a forma mais aproximada de ser eu o protagonista do filme. Nos dias que se seguiram, ainda hoje, quero estar sentado diante de Scarlett Johasson, num restaurante, e ser capaz de a fazer sorrir, saber que sou eu que me esqueço de tudo, longe, em Tóquio, e entregá-la ao quarto de hotel sem ter a certeza se, alguma destas noites, antes de regressar a Los Angeles, vou ter coragem para a beijar.

quarta-feira, janeiro 21, 2004

Verano Azul

Com uma mala de viagem ocupada por um par de sapatos, algumas roupa e um saco de plástico com dinheiro para sobreviver três meses, Angelina chegou a Madrid na tarde de sete de Julho de mil novecentos e oitenta e seis. A dor estendia-se da zona inferior das costas, acima do rabo, até aos ombros, os músculos duros, como se o banco de autocarro tivesse moldado a carne, a magoasse, servisse como um instrumento de tortura. Angelina caminhou pelas ruas quase sem pessoas, trabalhadores ausentes, em férias no sul, pais estendidos em toalhas, na areia, ou dormindo em apartamentos com ar condicionado depois de almoçarem, crianças que viam televisão e esperavam o momento de regressar à praia. Mas em Madrid não se podia fugir ao calor que subia dos passeios e trepava as fachadas do edifícios, palácios, museus, moradas de escritórios de governantes que escolhiam as leis do país.

As escadas da pensão na rua Hortaleza estavam protegidas por uma carpete vermelha com nódoas. A chave movia-se na mão da proprietária que explicou o funcionamento das torneiras na casa de banho comum e proibiu a visita de homens no quarto número vinte e nove. Em vez de um candeeiro havia uma lâmpada pendurada num fio eléctrico. Os lençóis seriam mudados uma vez por semana. Angelina descalçou-se mas manteve as meias, receando a sujidade infiltrada no chão de tacos de madeira.

Quando saiu do quarto havia mais pessoas na cidade. Encontrou visitantes estrangeiros e consumistas da classe média que entravam nas lojas e apareciam com sacos de roupa vendida em época de saldos. Comeu sozinha, numa esplanada, sem olhar para ninguém. Não queria que se pudessem lembrar da sua cara. O anonimato e o silêncio eram parte do sacrifício, ficar dias no quarto, sair apenas quando tivesse fome, não escrever postais à família e nunca telefonar para casa.

O calor durante o dia sobrepunha-se à ventoinha enfiada no lavatório. Angelina asfixiava e por isso percorria a cidade, sempre pela sombra, nunca a mesma rua, o mesmo bairro, um cinema, os monumentos que comprovavam a grandeza de um império universal. Numa tarde atreveu-se a entrar numa piscina pública e molhou o corpo, apenas as pernas, erguendo os braços e encolhendo a barriga quando provou a água morna, imaginando as crianças gordas cuspindo e mijando, os seus olhos vermelhos pelo cloro, sandes que devoravam de boca aberta antes de se executarem mais um mergulho que fazia explodir a água e atingia os fumadores na borda da piscina. Regressou ao quarto, esfregou o corpo com álcool, procurou apagar-se, dormindo, esperando regressar pelo menos uma vez mais a San Sebastian e às praias onde o único nojo eram as algas que raramente chegavam à areia. Os pais e os irmãos estariam junto da água, conversando, com as ondas a cobrirem os pés e depois a regressarem ao oceano. Mas Angelina acreditava que o sofrimento apresentaria resultados, mesmo que nunca mais regressasse a San Sebastian e que a família apenas recebesse notícias através de um mensageiro que deixaria um papel debaixo da porta de casa.

Os homens que a olhavam, que limpavam a espuma da cerveja do bigode e que comentavam com os amigos as pernas quase adolescentes de Angelina, haveriam de conhecer a culpa, seriam confrontados com os seus actos, com o desconhecimento, com a prepotência. Angelina apenas aguentava o calor, as manchas de suor nas camisas dos homens, o dinheiro que lançavam para cima das mesas, porque a dimensão das faltas desses homens antecipava o prazer do castigo.

Na manhã de dois de Setembro foi perseguida, imaginou uns olhos a rodear-lhe o contorno das mamas, os ombros anteciparam um beijo com cuspo, receou um par de mãos com pêlos a subirem pelas canelas, separando as coxas, forçando os músculos. Angelina percebeu apenas uma palavra num idioma que nunca se ouvia em Madrid mas não se virou, diminui a velocidade, quase sorriu, manteve a cara escondida no cabelo, entrou num café, sentou-se e viu o homem, o seu contacto em Madrid, dirigir-se para a casa de banho com uma mochila.

Nessa tarde, Angelina comprou bilhetes de autocarro para França. Escolheu um cabeleireiro, cortou e tingiu o cabelo, maquilhou-se, trocou os chinelos por uns sapatos e deixou a mochila do homem dentro de um caixote do lixo de um centro comercial. Às dezoito horas e trinta e cinco minutos a bomba matou treze pessoas e feriu vinte sete.

segunda-feira, janeiro 19, 2004

A vida que eu invento para ti

Todas as manhãs desperto no Barrio Salamanca e, na rua, a respiração aparece diante dos lábios, densa, um cilindro de vapor que se desfaz a cada passo. Depois a temperatura cresce em redor dos corpos e sento-me no sofá de um café onde as janelas são montras para o espectáculo das pessoas nos passeios. Desisto dos juízos e ocupo-me com os pormenores, estudando as mulheres a quem chamaria de velhas não fossem os casacos compridos, as luvas de pele, a segurança sempre que um salto pisa o chão como se apenas actrizes existissem nesta zona da cidade.

Ao fim do dia regresso ao mesmo café, e agora são os miúdos da escola que aparecem de cigarro na mão, os rapazes imitando os pais, o mesmo cabelo com um penteado definido pelo gel, as camisas com riscas obsoletas, tornozelos descobertos por calças curtas e a sobranceria fornecida por um estatuto social, vozes que soam como metralhadoras:

“Felipe, joder.”

Imagino a adolescência aristocrata de Felipe num barco, em Puerto Banús, nos meses de calor, ou à mesa, numa casa de campo, na Andaluzia, durante a Semana Santa, ou nos lugares de sombra da Praça de Las Ventas admirando o traje de luzes de um matador manchado pelo sangue do animal, o capote movendo-se, os pés rangendo na arena e opondo-se à imobilidade eterna de um toureiro que o meu nariz indagou esta tarde, num quadro; eu parado diante da tinta ao mesmo tempo que os outros visitantes liam folhetos e informações sobre Manet, mas eu ainda imóvel, fascinado com a tranquilidade do toureiro que parecia levitar, eu certo de que Manet se enganara no título do quadro e que afinal o toureiro dormia em vez de estar morto.

Depois cansei-me da arte pendurada nos corredores e regressei às ruas onde ninguém me conhece. É muito melhor assim, deslizar toda a tarde nos passeios escutando os diálogos nas paragens de autocarro sem horário para chegar a qualquer lado, fazer-me passar por um deles, reduzir as palavras para que não se compreenda o sotaque:

“Muchas gracías”

Ou apenas:

“Hola.”

E descansar neste café, estudar a aproximação cerimoniosa de Felipe a uma miúda que mostra a barriga e os ossos das ancas entres umas calças e uma t-shirt, sentir-me adulto, ser condescendente quando falam do seu universo de miúdos ricos, as modas, o vocabulário, a presunção, achar-lhes alguma graça quando imitam os pais ou os irmãos mais velhos, e depois regressar a casa onde encontrarei V. conversando ao telefone, com o namorado, em voz baixa, e aproveitar a sua lucidez, agradecer-lhe a amizade, voltar à rua, entrarmos num restaurante sem pensar que um destes dias terei de abandonar Madrid e deixar uma existência em que caminhar pelas ruas onde há trânsito de pessoas é suficiente para que me encontre a sorrir nas vidros que servem de montras às lojas.

terça-feira, janeiro 13, 2004

Su cuerpo es una maldición, contado por Javier Mendonza no Parque del Retiro

Recolhi os restos de uma mulher em minha casa, objectos que se estragariam, revistas com os cantos dobrados e comida fora de prazo no frigorífico. Mesmo antes de sair, guardei os lençóis num saco do lixo, depois lavei as mãos, acendi uma vela para destruir o cheiro de outro corpo no meu quarto e apaguei o número na agenda. Onde antes estava um nome encontram-se agora marcas no papel e restos de uma borracha. Tudo o que é temporário é escrito a lápis. Durante uma semana não atendi o telefone e imaginei mudar-me para um quarto de hotel. Depois de terminar o processo de eliminação teria que substituir essa mulher que que dormiu na minha cama e que sabia que começo a fazer a barba na bochecha esquerda, de cima para baixo, iniciando o movimento junto à patilha.

Nessa mesma tarde sentei-me neste banco. O livro que tinha era apenas uma desculpa, um elemento de protecção quando admirava as mulheres que deslizavam sobre patins ou que se estendiam na relva para escurecer a pele com a luz do sol. Costumo ser muito rápido, não hesito, nem sequer penso, e por isso avancei para Maria com um dedo a marcar as páginas do livro, aguardando que me descobrisse quando a minha sombra começasse a arrefecer-lhe a cara.

Não tenho tempo a perder, não estou aqui para enganar ninguém. Esta é uma maneira de filtrar as mulheres que não interessam, aquelas que me fazem esperar, que precisam de sessões de cinema, de conversas sobre a família, de uma mão a segurar-me no pulso quando avanço para um mamilo e forço o tecido de uma camisa. Mas Maria apresentava a disponibilidade das estudantes que escrevem nos diários sobre os homens que conheceram na cama. Tinha as alças do biquini fora do ombros, riu-se, nem sequer sorriu, riu-se, uma gargalhada, porque Maria queria enfeitar os meses de calor com um episódio que a distinguisse das amigas. Perguntou-me por que é que uma pessoa da minha idade tinha uma tatuagem no tornozelo e pediu-me um isqueiro para queimar o haxixe que tirou de uma bolsa com desenhos de ovelhas.

Comemos na rua, sentados numa esplanada, protegidos pela sombra de um toldo às riscas. Maria atirou uma sandália para o passeio e esticou a perna, admirei o joelho, a canela fugindo da sombra, os dedos do pés esticando-se como se quisessem crescer:

“Estou a estudar para ser bailarina.”

Em minha casa escureci a sala, baixei os estores e ofereci-lhe uma bebida com álcool e gelo. Maria ligou a ventoinha no tecto e começou a dançar sem música, falando das dores no corpo depois de um ensaio, confessando que temia que os pés se deformassem com os exercícios. Mesmo que me esforçasse para seduzi-la, nenhum dos meus movimentos ou perguntas conseguiam parar-lhe os movimentos de dança. Reclamei da temperatura e lancei a camisa para cima da cadeira. Quando me deitava no sofá, Maria aproximou a mão dos meus braços sem lhes tocar:

“O que significam essas tatuagens?”

Mas não esperava respostas, continuava ocupada com um monólogo sobre as colegas, elogiava as discotecas da cidade, explicava-me como se embebedava sem nunca pagar uma bebida. Com a cabeça numa almofada, a minha boca estava ao alcance do seu umbigo, os meus lábios beijaram-lhe a barriga, a mão avançou para o fecho do biquini e não houve resistência, todos os meus movimentos eram cuidadosos, receava magoar-lhe o corpo. Quando a penetrei, as pernas de Maria apertaram-me as costelas, os olhos abriram-se muito ao pedir-me:

“Quero que o faças com força. Quero que sejas bruto.”

Começou a aparecer em minha casa sem avisar. Nunca me disse onde morava. Por vezes regressava da noite e pressionava o botão da campainha. Eu acordava, abria-lhe a porta e ouvia o mesmo discurso sobre as pessoas que ela conhecera na rua ou as queixas relacionadas com a escassez de dinheiro, a protecção dos pais, o calor que desertificava a cidade. Maria era prosaica mas incapaz de iniciar um gesto que levasse ao sexo, nunca me despiu, aguardava os meus ataques, primeiro com uma suavidade na ponta dos dedos e depois, quando começávamos, rogando-me violência.

Uma vez apareceu com uma amiga, de madrugada, para exibir a minha colecção de discos. Acenderam cigarros de haxixe e beberam vinho pela garrafa. Estiquei-me no chão da sala e adormeci enquanto dançavam. Quando acordei não havia ninguém em casa. Encontrei-a na tarde seguinte, atravessando a Gran Vía, acompanhada por um rapaz que brilhava brincos e espigões de metal em toda a cara, mas escondi-me entre as pessoas e os sacos de compras que traziam pendurados nas mãos.

As visitas começavam a ser quase diárias. Havia sempre uma desculpa, por vezes uma inundação no quarto, uma consulta num consultório do meu bairro, o calor que se entranhara nas paredes e que a impedia de adormecer:

“É que tu ao menos tens ventoinhas e um frigorífico.”

Havia cada vez mais roupa nas minhas gavetas, cabelos nas almofadas, o cheiro de perfume no tecido do sofá. Já conhecia o nome de todos os seus familiares e o sexo era um exercício de agressividade que legava marcas no seu corpo tão branco. Mas nunca me abraçava pelas costas quando eu cozinhava. Os beijos tinham pouca língua, os lábios de Maria não apresentavam flexibilidade.

Numa tarde em que as temperaturas nos desaceleravam e quase asfixiava na relva do Parque del Retiro, Maria contou-me como apreciava as unhas das irmãs espremendo borbulhas nas suas costas. Durante a noite, quando procurámos o ar condicionado de uma sala de cinema, descascou uma laranja que esguichou sumo e comeu-a durante as apresentações enquanto se descalçava e estalava os dedos dos pés. Em casa, rasguei-lhe a roupa e, pela primeira vez, castiguei-a com prazer, sabendo que me vingava num corpo que merecia outro proprietário.

Tudo o que lhe pertencia está neste saco de plástico. O única favor que agora te peço é que a procures na escola e que entregues este lixo. Se fizer perguntas, diz-lhe que estou noutro país. Receio encontrá-la e talvez ceder à facilidade de a levar para casa. É que a fidelidade mais eficiente será sempre aquela que cresceu durante o sexo.

sexta-feira, janeiro 09, 2004

Madrid me salva

Atravesso todo este dramatismo como se regressasse a casa. Não estranho a língua ou volume das vozes na rua, um limão espremido para dentro de uma cerveja, os casais de velhos que não receiam a noite e que se passeiam em traje de festa.

Não ando à procura de nada. Passo pelos museus mas desvio-me, abandonei os mapas, evito as excursões em que um microfone grita as características de todos os monumentos. Não faço quase nada. De manhã, escuto a leveza de V. a atravessar a sala onde durmo. Quando percebe que acordei, dá-me instruções sobre a comida no frigorífico.

Levanto-me mas demoro-me a sair de casa. Passo o dia a cruzar as ruas reparando nas mulheres que acentuam a beleza com roupas, maquilhagem, sapatos, e a postura assertiva de quem não se assusta com a cobiça dos homens. Observo as pessoas e os edifícios sem fazer inventários. Estou bem aqui.

Descanso nos bares, páro nas esquinas, entro nas livrarias mas se abro um livro nem termino um parágrafo. Bebo submerso no barulho dos outros clientes, fumo, procuro cansar-me e dormir durante a tarde para depois voltar às ruas e rasgar, em silêncio, o movimento das pessoas nos passeios.

Antes de anoitecer encontrei-me com M. que entra em cena vestida de vermelho, iluminando a obscuridade do bar. Vai ser grande, vai comover audiência e estará em posters nos quartos de rapazes adolescentes. Quero escutá-la, baixar o batimento cardíaco, diminuir o ritmo da respiração, apagar-me para experimentar melhor a cidade onde há muito queria ter regressado.

Na carruagem de metro, M. despede-se. E eu continuo sem me preocupar se acerto na estação. Por enquanto ficarei por aqui, aproveitando a raridade da minha paz, contemplando as pessoas sem lhes roubar nada, aguardando o momento em que voltarei a viver como se iniciasse um ataque.

Estação Diego de León. Deve ser aqui. Hasta luego.

terça-feira, janeiro 06, 2004

It’s so fucked up

1.
Na noite de dez de agosto, Mr. Richards veste uma camisa sem tomar banho ou lavar os dentes. O tecido cola-se nas costas, uma mancha evolui devagar, o suor passa das golas para a carne mole do pescoço. Depois Mr. Richards desce as escadas e levanta o dedo do meio para a mulher que aparece atrás de uma porta, com o corpo dentro do apartamento e a cabeça no corredor, para reclamar do volume da música. Mr. Richards sai de casa mas nunca desliga a televisão.

No bar repete copos de cerveja, sempre encostado ao balcão. Inicia conversas com estranhos que respondem com simpatia mas que acabam por afastar-se quando Mr. Richards se baba, cospe para o chão, se demora a meio de uma frase, e inicia um processo de acusação que inclui referências à cor de pele, ao emprego ou às escolhas sexuais dos interlocutores. Depois de partir vários cinzeiros e de recusar um copo servido por um empregado hispânico:

“Tocaste com esses dedos porcos no vidro onde eu ponho a boca, filho da puta?”

Os empregados conseguem, com a ajuda de alguns clientes, empurrar Mr. Richards para a rua, e fecham a porta, viram costas ao seu corpo que balança atrás do vidro, pronto a ceder nos joelhos, a cabeça que tomba para um dos lados, o vapor do álcool a libertar-se do estômago, percorrendo o esófago e enchendo a boca.

2.
Os dedos de Mr. Richards procuram um lenço no bolso das calças, aparecem sem nada e avançam para o cabelo, atravessando o couro cabeludo, recolhendo o suor; atirando-o para a cara do empregado de uma loja de conveniência. Com a outra mão, Mr. Richards lança o dinheiro para o chão e agarra numa lata de cerveja que passa pelo pescoço, bochechas e testa, abrindo-a e despejando-a para dentro da boca.

Na esquina onde um candeeiro público começa a soluçar, a luz aparecendo e desaparecendo, Mr. Richards descobre um homem com um mão no bolso das calças e desconfia de um assalto. O suspeito é baixo, tem bigode, usa chapéu e quando faz uma pergunta nota-se-lhe o sotaque e o idioma insuficiente. Mr.Richards protege-se do perigo, atira-lhe um punho ao nariz, segura-lhe o cabelo, esmaga-lhe a cabeça contra o poste, abre-lhe a boca e empurra-a para a parede onde os dentes estilhaçam. O assaltante está no chão e Mr. Richards escolhe as costelas para pontapear, depois pisa-lhe a cabeça e senta-se sobre o corpo para esmurrar a cara. Quando se levanta, limpa as mãos à camisa e lança-a para um caixote do lixo. Um carro abranda, mas volta a acelerar. Não está ninguém à janela. Sem ferimentos, Mr. Richard caminha para casa.

3.
Às nove horas e vinte minutos, transportando sacos com bebidas e presentes de aniversário, os convidados chegam à casa de Rudolph Villander, artista plástico, casado com a escritora Olga Alfonso que conversa na sala com Alejandro Alfonso, irmão mais novo, estudante de arquitectura, em visita, com visto no passaporte e data de saída. As pessoas movimentam-se diante dos copos, das garrafas e dos sacos de gelo. Uma actriz questiona Alejandro Alfonso sobre o país onde nasceu, convida-o para dançar, oferece-lhe a bebida que tem na mão e depois volta a recuperá-la, despedaçando cubos de gelo entre os molares. Alejandro Alfonso confessa que apenas viu a cidade na viagem de táxi do aeroporto e a actriz sugere um passeio. Caminham para a porta e, quando descem as escadas, a actriz toca-lhe num ombro:

“Esqueci-me das chaves de minha casa.”

Sobe alguns de degraus, mas regressa, beija-o na boca e pede-lhe não desaparecer.

Ao chegar à rua, Alejandro Alfonso procura os cigarros no bolso e aproxima-se de um homem no passeio enquanto tenta recordar-se das palavras de um idioma que não controla:

“Tem lume?”

Quando a actriz abre a porta do prédio e procura Alejandro Alfonso, descobre um homem sem camisa a desaparecer numa esquina e um corpo que parece de plástico, sem ossos, sem expressões, escorrendo sangue e despejado sobre os caixotes do lixo. Há um momento de silêncio, como se os pulmões falhassem, demorassem a reagir, e depois começam os gritos.

segunda-feira, janeiro 05, 2004

I’m through with love

Há muito tempo que não vivemos na mesma cidade. Regresso agora porque estou certo que me esperas numa esquina e que empurras as mãos contra as coxas, pestanejando uma inocência que perdeste mas que ainda gostas de fingir. Em casa, noutro país, deixei a minha família. Mordi vários calmantes e telefonei-te do aeroporto. Não reconheceste a minha voz. Procuraste um espelho ou calçaste uns sapatos para melhor interpretar a personagem que protagonizaria a minha ilusão. Disseste que me receberias. Desta vez eu escolhi o lugar. Já não autorizo que comandes os meus movimentos. Quando sorrias eu pensava que gostavas de mim. Mostravas-te triste e eu acreditava que eras misteriosa, um talento, uma estrela de cinema que me salvaria da decadência. Cuidarias de mim, esconderias as garrafas de álcool, eliminarias os cigarros e acordarias de madrugada para me obrigares a compor. Eu haveria de ser um músico reconhecido. Tu agarrar-me-ias o braço sempre que caminhássemos na rua.

E claro que eras bonita, os silêncios que começavam nos olhos azuis e que acabavam num tremor de dedos quando verificavas a segurança de um brinco na orelha, os desenhos nos guardanapos que depois eu guardava, a cicatriz no joelho onde nunca consegui chegar.

De cada vez que pedia a uma mulher para sair da minha cama, da minha casa, acreditava que serias a única que poderia ficar, caminhando descalça para a cozinha, reclamando do frio dos azulejos no chão, regressando a mastigar fruta e procurando-me entre os lençóis para aqueceres os pés. Mas era tudo mentira, nunca soubeste sequer onde morava, eu inventava-te, era eu quem agravava a tua beleza apenas porque precisava de acreditar. Sou agora um homem sem fé. Parti ossos, morreram-me pessoas, matei animais por prazer e desfigurei um desconhecido. Casei-me e não tive filhos. Sobra-me um pai que se esquece do meu nome e que me pede cigarros e revistas com fotografias porque os olhos deixaram de identificar as letras.

Preciso livrar-me de ti, das tuas mentiras, destruir a insegurança que me paralisava sempre que nos encontrávamos sem que fosse capaz de convencer-te a apaixonares-te por mim. Tu nunca exististe, eras a combinação da minha carência com a tua necessidade de ser admirada por todos.

Também nunca chegaste a ser uma actriz famosa e contentas-te agora com a lubricidade dos vizinhos que encontras nas escadas e com as erecções rápidas dos viúvos que se arrastam nos passeios. É por isso que te apressaste a aceitar o meu convite. Confesso que gosto do teu insucesso.

Estou no quarto de hotel e posso ver a esquina onde me esperas. Não descerei as escadas nem atravessarei a rua para descobrir como se degradou a tua carne, as pálpebras que pesam, as pestanas mais lentas, menos inocentes, as pernas que desistem e afinal sem nenhuma cicatriz no joelho. É quando continuas a esperar por mim que me convenço que não preciso que existas. Nem sequer trouxe malas. Só preciso que desapareças dessa esquina para sair desta cidade seguro de que morreste, convencido de que apenas os poetas e os idiotas ainda acreditam que pessoas como tu conseguem salvar pessoas como eu.

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