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quinta-feira, fevereiro 19, 2004

THE LAST ONES

O livro

O romance que escrevi chama-se “O maior espectáculo do mundo”, publicado pela Oficina do Livro. Vi-o hoje, antes de ir para as livrarias. Já suspeitava que a publicação de um livro seria uma experiência contrária à sua execução. Terminar um livro, acabar o trabalho e publicá-lo é o fim de um processo, é algo que se opõe à luta de pensar, de estruturar, de escrever, de corrigir, de apagar. O objecto com capa, foto, excertos, é outra coisa qualquer, necessária, lógica e inevitável. É certo que quero publicar, que quero que as pessoas leiam, mas sempre que olho para esse objecto apetece-me mudar palavras. Não posso.

O romance estava terminado quando, em Agosto de 2003, iniciei estes textos. Comecei a escrever aqui para praticar, para trabalhar e para contornar o tédio que descobri existir nas semanas seguintes à produção de um livro. Em breve começarei a escrever outro. Não terei mais tempo. Fico-me por aqui. Como se faz no teatro, dobro o corpo, agradecendo a todos os que me leram, que me mencionaram, que me escreveram e que quiserem continuar a escrever.

Obrigado, senhoras e senhores. E até já.

PS – É possível que regresse, apenas de vez em quando. Mas em breve mudarei estes textos, e outros que venha a escrever, para uma página pessoal.


The Nearness of you – The movies love affair

Todas as semanas ele recebe um telefonema. Não conversam muito. No dia seguinte encontram-se, sempre no mesmo lugar, atravessam o parque, conversam numa outra língua, ela é estrangeira, ele já viveu noutro país. São incapazes de permanecer num banco, a conversar, as mãos dadas sobre a madeira. Dirigem-se para o edifício com diversas salas de cinema, comentam a temperatura e alegram-se com as previsões que negam a possibilidade de chuva. Ela contou-lhe que tomava comprimidos. Foi o único pormenor, nunca falaram dos pais, desconhecem a existência de irmãos, nunca mostraram fotografias de quando eram crianças.

Entram no cinema durante o dia, saem de noite. Por vezes, ainda na sala, comentam uma cena, aproximam os lábios das orelhas, sorriem, acumulam o desejo sem nunca se tocarem, nenhum dedo a pousar no pulso, nem um braço acomodado sobre os ombros.

Caminham pelo parque, ele convida-a para sua casa, mesmo que já saiba que será assim, que é para isso que se encontram e que entram num apartamento com paredes brancas e escassa mobília. Na primeira vez ela disse-lhe que não gostava da decoração. Ele percebeu – além dos ténis quase rotos, da ausência de maquilhagem – que essa opinião o impediria de apaixonar-se. O acordo foi estabelecido quando, nessa noite, ela atendeu o telefone, interrompendo uma dança, Sarah Vaugh, piano, contra-baixo, e as mãos dele escorrendo pela cintura, os polegares contornando os ossos das ancas:

“The nearness of you”

Ela desligou o telefone, disse que tinha pouco tempo e que precisava de regressar a casa. Ele nunca faz perguntas sobre o outro homem. E continuam a encontrar-se todas as semanas, entram no cinema, saem para a noite, sentam-se no chão da sala do apartamento, ela bebe cerveja, ele bebe vinho, despindo-a devagar, nomeando os lugares do corpo com palavras do seu idioma, ela acompanhando-o com palavras que ele nunca ouviu. É apenas durante o sexo que utilizam as próprias línguas, que conversam quando pressionam a carne e direccionam a cabeça para os sítios mais vulneráveis ao prazer.

Ela levanta-se e entra na casa de banho, nunca utiliza produtos para o corpo ou para o cabelo, diz-lhe que, na clandestinidade, se devem evitar os cheiros dos outros, as memórias na pele, um arranhão numa perna, os dentes cravados no pescoço. Ele entrega-lhe uma toalha, prepara comida na cozinha. Quando se escuta o telefone dentro da mala, ela levanta-se, desaparece numa das divisões da casa, regressa, olha para ele que se levanta e que a acompanha até uma paragem de táxis. É sempre ele que diz o nome da rua ao condutor, é sempre ele que escolhe os filmes, riscando no jornal aqueles que ela, ao telefone, afirma ter visto – com outra pessoa. Esta semana ele descobriu que ela era fotógrafa, arranjou-lhe um trabalho, cruzou-se, durante o dia, com ela e com o outro homem. Cumprimentou-os. Falaram do emprego. Ele disse que estava com pressa. Nessa tarde escolheu ir ao cinema sozinho, como fazia antes de a conhecer. Quando saiu da sala tinha uma mensagem no telefone. Não respondeu.

segunda-feira, fevereiro 16, 2004

A normalidade

1.
Em três dias morreram quinze pessoas. Estavam dentro de carros. Digo-lhe tudo isto sabendo que os números nunca serão um eficiente mecanismo de dissuasão. Explico-lhe ainda que depois de um Martini e de meia garrafa de vinho é perigoso conduzir. Ela responde que está em condições. Esta rapariga não se interessa com a possibilidade de um acidente, com o perigo para as outras pessoas, com a infracção da lei. Ela está segura de que um Martini e meia garrafa de vinho não alteram a sua habilidade ao volante. E é assim que pensam muitos condutores. Essa é a sua normalidade. Ela diz que alguns dos seus amigos morreram na estrada. Ela tem 23 anos e não quer mudar. O meu apelo é visto como um sermão paterno. Ela não precisa de me ouvir. Ela está bem para guiar.

2.
Um acidente é isso mesmo, um evento raro, ocasional, que não cumpre as regras da normalidade. Mas em Portugal os acidentes, as mortes, os traumatizados são a normalidade. Fazer a A5 para Cascais a 180 km por hora colado à traseira do carro da frente é normal, tal como as bruscas mudanças de direcção, as ultrapassagens pela direita. A auto-estrada é uma pista de corrida. E se peço ao meu amigo para reduzir a velocidade, ele responde que eu não estou habituado e que em Portugal é assim que se conduz, que todas as aquelas manobras são normais, que fazem parte do sistema de sobrevivência. Tento explicar-lhe que em alguns lugares do planeta também é normal a excisão, o apedrejamento, a prostituição infantil. A repetição de um erro, um crime, uma falta, vezes sem conta, não serve de atenuante nem justifica a impunidade.

3.
Em Nova Iorque os condutores bêbedos ficam sem o carro que conduzem no momento da infracção. Resultaria em Portugal, país novo rico onde os carros são uma prioridade, um patamar mais elevado na escala social. Se miúdas de 23 anos que bebem antes de entrar num carro não parecem tocadas pelas campanhas de sensibilização, pela imagens diárias nas televisões, pelos amigos que morrem em acidentes, se essa é a sua normalidade, apenas existe uma solução. Punir severamente. Tirar carros, carta, substituir penas suspensas por serviço comunitário – em particular nos hospitais onde se encontram os sinistrados. Os infractores teriam de ajudar na fisioterapia, mudar arrastadeiras, ver a destruição física e o sofrimento cara a cara, fora de um ecrã, com cheiro, com deformação, e conversar com os familiares, perceber-lhes o desespero.

4.
Em Portugal é normal beber e conduzir. É normal fazer manobras perigosas, morrer, ficar sem pernas, sem fala, sem um filho. Em Portugal fazem-se perfis em jornais – e na televisão – sobre os homens que bateram os recordes de taxa alcoolémica, mas quase sempre em registo de humor. Em Portugal beber e conduzir é símbolo de masculinidade. Em Portugal as pessoas estão mais preocupadas em evitar a polícia do que com a possibilidade de um acidente. Quando um condutor alcoolizado entra no carro pensa no melhor caminho para não se cruzar com uma operação da Brigada de Trânsito, nunca na eventualidade de um acidente. Porque a lei é que está mal, os médicos e a polícia não sabem nada, e uma rapariga de 23 anos que bebe um Martini e meia garrafa de vinho está bem para conduzir – “Já conduzi muito mais bêbeda”. Procuro ainda explicar-lhe que não quero controlar-lhe os hábitos de bebida, que ela pode embebedar-se, sozinha, com amigos, na rua, em casa, vomitar, desde que não entre num carro, porque nesse momento a bebedeira deixa de afectar apenas o seu cérebro e pode desfazer outras pessoas. Digo-lhe até – se ela não está interessada em que me preocupe com a sua vida – que me entenda como um egoísta que quer viver, que não deseja ser atropelado por um bêbedo. Não é suficiente. E ela abandona a mesa para regressar à sua normalidade.

terça-feira, fevereiro 10, 2004

Body Language

“I’m a fighter because I can’t be a poet. I can’t tell stories.”

Barry MacGuigan, campeão irlandês de pesos pluma


Se regressamos ao lugares onde fomos felizes é sempre depressa. O ritual começa com o meu irmão no aeroporto, esperando-me, avançando paras as malas, aliviando-me de uma viagem a atravessar o mundo. Dentro do carro, percebo que desapareceram alguns prédios e que há mais sinais de trânsito, mas o calor repete-se, igual, a mesma humidade a escorrer nas pernas das pessoas, desfocando as luzes dos carros depois de um pé no travão, fazendo levitar o asfalto, ondas transparentes que deixam de existir se nos aproximamos para lhes tocar.

Depois de abandonar as malas no quarto de hóspedes, calçamos o ténis e avançamos com o tronco despido pelos passeios, recuperamos as corridas, o corpo resplandecente quando o nosso reflexo cruza uma montra. Fazemos o mesmo trabalho de estrada que nos preparava para os combates, os músculos crescem, forçamos as pernas, desenhamos golpes.

O bairro desliza pela nossa velocidade, há mulheres que se transformaram em avós e que vigiam as crianças que se matam com bisnagas. Passamos por velhos que levantam os chapéus de palha, as letras vermelhas de uma mercearia acabam de ser pintadas, aparece uma esquina, uma boca de incêndio que lança água, um rádio que explode num carro e que nos estremece os tendões. Os aparelhos de ar condicionado nas janelas substituem as ventoinhas, pingam água para os passeios. Mas esta é ainda a mesma cidade, os corpos embaciados, em câmara lenta, e a nossa rapidez incapaz de destruir a tranquilidade das pessoas que respiram dentro do calor.

Interrompemos o movimento de corrida, dançamos no campo de basquetebol, supondo que as nossas sombras na parede são os adversários, um combate imaginário no chão que transpirou durante todos estes anos e que desbotou as cores para as pessoas que nos contemplam das janelas, miúdos que regressaram da escola e que comem gelados nas escadas de incêndio, luminosos, com roupas que parecem em chamas.

Neste campo consegui a primeira vitória. Sabia já suficientes letras para cumprir as tarefas impostas pela minha mãe, escritas numa lista de supermercado. Sacos de compras com fruta, uma melancia que morderia durante a tarde, garrafas de refrigerantes tilintando quando um dos rapazes me rasteirou e despedacei o vidro no passeio, lâminas que entraram na carne do antebraço e que rasparam uma veia. O médico contou o pontos à medida que remendava o ferimento, o meu irmão mais velho obrigou-me a procurar os culpados. Eram dois, o agressor e o cúmplice com os ombros mais frágeis, capaz de rir mesmo quando viu o sangue espalhando-se na roupa e nos sacos de plástico.

Quando voltámos do hospital, como todos os outros miúdos do bairro, eles saltavam com uma bola cor de laranja em direcção ao cesto, os músculos definidos pela luz que restava desse dia, gritos e insultos ao mesmo tempo que o cheiro da comida chegava das casas e o som de uma ambulância se aproximava e depois se diluía nos outros barulhos da cidade. O meu irmão interrompeu o jogo e criou um circulo com a audiência. Decretou que eu lutaria com aqueles dois rapazes, um de cada vez, anunciou as regras, golpes com os punhos acima da cintura até que um dos lutadores escolhesse desistir.

Doía-me o braço e os treinos amadores – saltar à corda no quarto, correr, simular combates com o meu irmão – não impediam o medo da humilhação diante de todos aqueles espectadores, rapazes que abusariam da minha fraqueza caso perdesse, raparigas que sentiriam compaixão apenas no momento em que eu tombasse, mas que recusariam convites para o cinema durante o resto da minha vida.

No combate com o cúmplice não houve técnica, apenas os meus braços despejando golpes que caíam na cabeça, nos cotovelos, um murro que se encaixou abaixo do esterno, acima do estômago, e que lhe imobilizou o sistema respiratório. O cúmplice enrolou o corpo, a boca procurando oxigénio, o meu irmão a proibir-me de magoá-lo ainda mais.

Quando o agressor entrou para o circulo, para iniciar o segundo combate, mostrava-se preparado para me castigar, orgulhando-se da cicatriz que lhe atravessava o umbigo, cuspindo, utilizando os braços com a graciosidade dos lutadores que sabem magoar. O tronco brilhante rodava sobre a cintura sempre que as mãos disparavam, rasgando a humidade, os músculos aquecendo, antecipando o momento de impacto. Investiguei o meu irmão que anunciava, uma vez mais, as regras. Ele não aceitaria uma derrota. Mais do que um incentivo de coragem, havia nos seus movimentos uma exigência, eu deveria destruir aquele agressor, recuperar a minha dignidade, ou pelo menos deveria lutar até que o coração parasse, os cortes nos olhos me cegassem e a bravura fosse proporcional aos meus danos físicos.

Não me recordo de quase nada do combate. Mas havia miúdos que me carregavam às costas e que me aplaudiam. Os pontos tinham-se desfeito por causa dos meus golpes e o corte voltava a jorrar sangue. O derrotado ficou para trás, no campo de basquetebol, preparando-se para a vergonha e para meses a convencer os rapazes que a sua amizade era importante, sabendo que teria ainda de experimentar a humilhação e o isolamento.

O sangue e as marcas na cara acentuavam o dramatismo da minha vitória. Havia beleza no meu corpo danificado apenas porque eu era o campeão, as raparigas não se assustavam com o tamanho dos meus lábios nem com o osso do nariz, desviado, esperando analgésicos e uma operação cirúrgica. Essa tarde serviu para intimidar inimigos, para impressionar mulheres. Com esse combate construi uma imagem que reforcei em sessões de corda e de corrida, os vizinhos apreciavam a destreza dos meus movimentos e adivinhavam um campeão mundial. Mas nunca me tornei profissional e hoje vivo noutro país, onde faz frio, onde ensino alunos universitários sobre a poesia que outros escreveram.

Todos os anos regresso a casa dos meus pais, durante os meses de calor. Corro com o meu irmão pelo bairro. Os que me conhecem acenam, como se ainda revelasse a glória que consegui naquela tarde. Todos os anos, depois de correr, entro com o meu irmão na mercearia, aproximo-me do proprietário, o agressor, e cumprimentamo-nos, mas nunca conversamos, reagimos com a cortesia dos adultos que se julgam civilizados, sem nunca esquecermos o combate. Um destes dias, vou oferecer-lhe uma desforra. Levo a minha mulher, os meus filhos, os meus alunos, o meu irmão, e mostro-lhes o que é, afinal, a poesia em carne viva.

quarta-feira, fevereiro 04, 2004

Move to the city

Não sei por onde ir. Mas tenho a certeza que deveria estar longe.

Encontramos a saída do parque de estacionamento depois de eu abandonar o lugar do condutor, de cruzar-me com Jasmine diante do carro e de mudarmos de posição. Ela usa as unhas no volante como se fossem um instrumento adicional na rádio, educa-me sobre o perigo de conduzir quando estamos bêbedos. Mas sou eu quem ordena cuidado. Nunca ninguém encontrou um risco na pintura do meu carro. Este motor deveria ser santificado.

A viagem terminou. O meu fascínio está nos brilhantes que enfeitam as bochechas de Jasmine. Estico um dedo e um dos brilhantes cola-se na minha pele. O pudor que revelou durante toda a noite intensifica-se e ela encosta-se ao vidro como se esperasse um ataque, um salto por cima do manipulo das mudanças. Eu mantenho-me em sossego, demasiado bêbedo e cansado para inventar qualquer truque de sedução. Jasmine é empregada de mesa num clube de strip-tease. Não dispõe de um corpo para ser bailarina, mas também não encontra virtude para estar casada, com filhos, limpando a casa, cozinhando para a família, reverenciando um marido trabalhador. Jasmine parou a meio caminho de qualquer coisa que nunca chegou a ser, não é nada que se possa caracterizar, é uma mulher inacabada, e talvez seja por isso que ainda está dentro do meu carro, que ainda não me recusou.

Jasmine diz-me que não posso entrar na caravana. Depois, ao conceder que a sua vergonha encenada não estimulou a minha insistência, aconselha-me a beber café, a lavar a cara, a recuperar a sobriedade, avisando-me, no entanto, que não haverá sexo – a expressão que escolhe:

“É muito cedo para fazermos amor.”

O filho de Jasmine dorme na caravana. Uma mulher – a irmã – aparece à porta e repousa uma mão nas ancas, a outra segurando uma caneca, investigando o perigo. Jasmine acena para a irmã, um gesto que também significa que não demorará dentro deste carro. O beijo de despedida que me oferece, na boca, talvez apresente uma possibilidade, um convite para outro dia, mas os meus músculos estão dormentes e a língua é apenas um pedaço de carne. Jasmine sai do carro e mesmo que se vire para trás e sorria, uma última vez, não haverá continuação para este encontro. O meu corpo magoa-se quando mudo para o lugar do condutor.

Estou confortável dentro do meu carro, o ponteiro a rodar para a direita, a velocidade a crescer numa estrada sem carros, apenas alcatrão com uma linha branca que cruzo e uma mancha de árvores velozes roçando na chapa, o pé esmagando o acelerador. Este é o momento de voar, de não ter medo, de rodar o volante, de arrancar a terra no limite do alcatrão, de regressar à linha branca e

e o meu corpo acende-se, o coração explode, os fragmentos do susto atingem todo o sistema nervoso porque um animal rebenta contra o pára-choques, sobe pelo vidro, e o meu pé muda para o pedal do travão, borracha, fumo, as minhas mãos a tremer, suspensas sobre o volante, o carro que descansa, imobilizado, depois do confronto.

As costelas do animal – um cão, uma raposa, um lobo – aparecem entre o pêlo, respiram, por vezes param como se morressem, mas depois insistem em reactivar os pulmões. Procuro levantar-lhe o corpo mas a minha pele mancha-se de sangue e o cheiro afasta-me, não posso salvá-lo, entro no carro, o motor ainda funciona.

O meu pai está atrás do vapor da relva, uma mancha que se eleva da máquina, partículas que brilham à superfície do jardim quando a manhã ainda é fresca. Entro em casa e o meu pai persegue-me, descalça as luvas, procura um ferimento entre o sangue que mostro na roupa. Sintetizo tudo o que aconteceu, antecipando perguntas, recusando a possibilidade de mais esclarecimentos.

Durante a viagem – o meu pai conduz – aumento o volume do rádio mas o monólogo continua, por vezes aceno com a cabeça para fingir atenção, não contesto nada, utilizo apenas uma palavra para evitar uma indiferença que o magoe, estou a caminho de outro lugar.

“Estas coisas acontecem. Quando tinha a tua idade esmaguei um pássaro com a roda da mota. Não morri por sorte.”
“Sim.”
“O que interessa é que estás vivo. Estas estradas deviam ter vedações, é um perigo, vou escrever uma carta para os jornais e falar com um amigo conhece pessoas influentes na Polícia, eles têm de tomar precauções. Os animais não são mais importantes que as pessoas.”
“Sim.”
“Quando chegares a casa comes alguma coisa e vais dormir, eu trato de tudo.”
“Sim.”

Estou dentro do carro mas o som é nítido, tão seco que estremece as árvores, prolonga-se no ar, arrasta-se, e o doce odor da pólvora entra pelas janelas. O meu pai guarda a espingarda no banco traseiro e, embrulhado num lençol, arruma o animal na bagageira.

Não existem vestígios de sangue no meu corpo nu. Visto as calças, não uso meias, aperto os cordões dos sapatos, escolho uma t-shirt. O meu pai cozinhou, cortou pão e espremeu laranjas para dentro de um copo com gelo. Observa-me enquanto mastigo.

“Vais dormir e eu vou enterrá-lo. Não se volta a falar deste assunto. Quando acordares espreita o jornal. Sublinhei alguns anúncios de emprego que podem interessar. Mas se quiseres, logo à noite, eu levo-te ao escritório da fábrica. Sabes como é difícil encontrar trabalho. Já falei com o meu chefe e ele quer conhecer-te. Não precisas de falar, eu tenho tudo planeado. Vestes aquele casaco que comprei o mês passado, deve servir-te, e levas a gravata dos funerais, escovo-a antes de sairmos. Eu converso com ele. Não tens de preocupar-te. Está tudo arranjado. Só tens de sentar-te e apertar-lhe a mão e dizeres que estás pronto para trabalhar amanhã.”

O meu pai está em pé quando empurro a roupa para dentro das malas. Digo-lhe que não posso ficar mais tempo, que há pessoas que me procuram, que querem fazer-me mal, talvez mesmo matar-me. O meu pai diz que resolve o problema, que tem dinheiro, que pagará para que o meu corpo permaneça sem cicatrizes, que conhece pessoas importantes, um fuzileiro, bancários, políticos que visitaram a fábrica. Tudo isto é mentira, tal como não existem homens à minha procura. Enganamo-nos.

Quando me preparo para entrar no carro, percebo que, enquanto tomava banho, o meu pai eliminou o sangue da chapa. Digo-lhe que telefono assim que alcançar a primeira grande cidade. O meu pai entrega-me dinheiro preso num elástico e dá-me as chaves da sua carrinha:

“Não podes fazer uma viagem nesse carro.”

Preparo-me para recusar mas ele abraça-me, aperta-me, quase que me magoa. Depois de rodar a chave da carrinha, escuto outro motor e encontro o meu pai atrás da máquina de relva, o cheiro verde suspenso diante do seu corpo, forrando-lhe a cara e as mãos que se despedem, sem parar, até que eu desapareça na primeira curva.

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