quinta-feira, fevereiro 19, 2004
THE LAST ONES
O livro
O romance que escrevi chama-se “O maior espectáculo do mundo”, publicado pela Oficina do Livro. Vi-o hoje, antes de ir para as livrarias. Já suspeitava que a publicação de um livro seria uma experiência contrária à sua execução. Terminar um livro, acabar o trabalho e publicá-lo é o fim de um processo, é algo que se opõe à luta de pensar, de estruturar, de escrever, de corrigir, de apagar. O objecto com capa, foto, excertos, é outra coisa qualquer, necessária, lógica e inevitável. É certo que quero publicar, que quero que as pessoas leiam, mas sempre que olho para esse objecto apetece-me mudar palavras. Não posso.
O romance estava terminado quando, em Agosto de 2003, iniciei estes textos. Comecei a escrever aqui para praticar, para trabalhar e para contornar o tédio que descobri existir nas semanas seguintes à produção de um livro. Em breve começarei a escrever outro. Não terei mais tempo. Fico-me por aqui. Como se faz no teatro, dobro o corpo, agradecendo a todos os que me leram, que me mencionaram, que me escreveram e que quiserem continuar a escrever.
Obrigado, senhoras e senhores. E até já.
PS – É possível que regresse, apenas de vez em quando. Mas em breve mudarei estes textos, e outros que venha a escrever, para uma página pessoal.
The Nearness of you – The movies love affair
Todas as semanas ele recebe um telefonema. Não conversam muito. No dia seguinte encontram-se, sempre no mesmo lugar, atravessam o parque, conversam numa outra língua, ela é estrangeira, ele já viveu noutro país. São incapazes de permanecer num banco, a conversar, as mãos dadas sobre a madeira. Dirigem-se para o edifício com diversas salas de cinema, comentam a temperatura e alegram-se com as previsões que negam a possibilidade de chuva. Ela contou-lhe que tomava comprimidos. Foi o único pormenor, nunca falaram dos pais, desconhecem a existência de irmãos, nunca mostraram fotografias de quando eram crianças.
Entram no cinema durante o dia, saem de noite. Por vezes, ainda na sala, comentam uma cena, aproximam os lábios das orelhas, sorriem, acumulam o desejo sem nunca se tocarem, nenhum dedo a pousar no pulso, nem um braço acomodado sobre os ombros.
Caminham pelo parque, ele convida-a para sua casa, mesmo que já saiba que será assim, que é para isso que se encontram e que entram num apartamento com paredes brancas e escassa mobília. Na primeira vez ela disse-lhe que não gostava da decoração. Ele percebeu – além dos ténis quase rotos, da ausência de maquilhagem – que essa opinião o impediria de apaixonar-se. O acordo foi estabelecido quando, nessa noite, ela atendeu o telefone, interrompendo uma dança, Sarah Vaugh, piano, contra-baixo, e as mãos dele escorrendo pela cintura, os polegares contornando os ossos das ancas:
“The nearness of you”
Ela desligou o telefone, disse que tinha pouco tempo e que precisava de regressar a casa. Ele nunca faz perguntas sobre o outro homem. E continuam a encontrar-se todas as semanas, entram no cinema, saem para a noite, sentam-se no chão da sala do apartamento, ela bebe cerveja, ele bebe vinho, despindo-a devagar, nomeando os lugares do corpo com palavras do seu idioma, ela acompanhando-o com palavras que ele nunca ouviu. É apenas durante o sexo que utilizam as próprias línguas, que conversam quando pressionam a carne e direccionam a cabeça para os sítios mais vulneráveis ao prazer.
Ela levanta-se e entra na casa de banho, nunca utiliza produtos para o corpo ou para o cabelo, diz-lhe que, na clandestinidade, se devem evitar os cheiros dos outros, as memórias na pele, um arranhão numa perna, os dentes cravados no pescoço. Ele entrega-lhe uma toalha, prepara comida na cozinha. Quando se escuta o telefone dentro da mala, ela levanta-se, desaparece numa das divisões da casa, regressa, olha para ele que se levanta e que a acompanha até uma paragem de táxis. É sempre ele que diz o nome da rua ao condutor, é sempre ele que escolhe os filmes, riscando no jornal aqueles que ela, ao telefone, afirma ter visto – com outra pessoa. Esta semana ele descobriu que ela era fotógrafa, arranjou-lhe um trabalho, cruzou-se, durante o dia, com ela e com o outro homem. Cumprimentou-os. Falaram do emprego. Ele disse que estava com pressa. Nessa tarde escolheu ir ao cinema sozinho, como fazia antes de a conhecer. Quando saiu da sala tinha uma mensagem no telefone. Não respondeu.
O livro
O romance que escrevi chama-se “O maior espectáculo do mundo”, publicado pela Oficina do Livro. Vi-o hoje, antes de ir para as livrarias. Já suspeitava que a publicação de um livro seria uma experiência contrária à sua execução. Terminar um livro, acabar o trabalho e publicá-lo é o fim de um processo, é algo que se opõe à luta de pensar, de estruturar, de escrever, de corrigir, de apagar. O objecto com capa, foto, excertos, é outra coisa qualquer, necessária, lógica e inevitável. É certo que quero publicar, que quero que as pessoas leiam, mas sempre que olho para esse objecto apetece-me mudar palavras. Não posso.
O romance estava terminado quando, em Agosto de 2003, iniciei estes textos. Comecei a escrever aqui para praticar, para trabalhar e para contornar o tédio que descobri existir nas semanas seguintes à produção de um livro. Em breve começarei a escrever outro. Não terei mais tempo. Fico-me por aqui. Como se faz no teatro, dobro o corpo, agradecendo a todos os que me leram, que me mencionaram, que me escreveram e que quiserem continuar a escrever.
Obrigado, senhoras e senhores. E até já.
PS – É possível que regresse, apenas de vez em quando. Mas em breve mudarei estes textos, e outros que venha a escrever, para uma página pessoal.
The Nearness of you – The movies love affair
Todas as semanas ele recebe um telefonema. Não conversam muito. No dia seguinte encontram-se, sempre no mesmo lugar, atravessam o parque, conversam numa outra língua, ela é estrangeira, ele já viveu noutro país. São incapazes de permanecer num banco, a conversar, as mãos dadas sobre a madeira. Dirigem-se para o edifício com diversas salas de cinema, comentam a temperatura e alegram-se com as previsões que negam a possibilidade de chuva. Ela contou-lhe que tomava comprimidos. Foi o único pormenor, nunca falaram dos pais, desconhecem a existência de irmãos, nunca mostraram fotografias de quando eram crianças.
Entram no cinema durante o dia, saem de noite. Por vezes, ainda na sala, comentam uma cena, aproximam os lábios das orelhas, sorriem, acumulam o desejo sem nunca se tocarem, nenhum dedo a pousar no pulso, nem um braço acomodado sobre os ombros.
Caminham pelo parque, ele convida-a para sua casa, mesmo que já saiba que será assim, que é para isso que se encontram e que entram num apartamento com paredes brancas e escassa mobília. Na primeira vez ela disse-lhe que não gostava da decoração. Ele percebeu – além dos ténis quase rotos, da ausência de maquilhagem – que essa opinião o impediria de apaixonar-se. O acordo foi estabelecido quando, nessa noite, ela atendeu o telefone, interrompendo uma dança, Sarah Vaugh, piano, contra-baixo, e as mãos dele escorrendo pela cintura, os polegares contornando os ossos das ancas:
“The nearness of you”
Ela desligou o telefone, disse que tinha pouco tempo e que precisava de regressar a casa. Ele nunca faz perguntas sobre o outro homem. E continuam a encontrar-se todas as semanas, entram no cinema, saem para a noite, sentam-se no chão da sala do apartamento, ela bebe cerveja, ele bebe vinho, despindo-a devagar, nomeando os lugares do corpo com palavras do seu idioma, ela acompanhando-o com palavras que ele nunca ouviu. É apenas durante o sexo que utilizam as próprias línguas, que conversam quando pressionam a carne e direccionam a cabeça para os sítios mais vulneráveis ao prazer.
Ela levanta-se e entra na casa de banho, nunca utiliza produtos para o corpo ou para o cabelo, diz-lhe que, na clandestinidade, se devem evitar os cheiros dos outros, as memórias na pele, um arranhão numa perna, os dentes cravados no pescoço. Ele entrega-lhe uma toalha, prepara comida na cozinha. Quando se escuta o telefone dentro da mala, ela levanta-se, desaparece numa das divisões da casa, regressa, olha para ele que se levanta e que a acompanha até uma paragem de táxis. É sempre ele que diz o nome da rua ao condutor, é sempre ele que escolhe os filmes, riscando no jornal aqueles que ela, ao telefone, afirma ter visto – com outra pessoa. Esta semana ele descobriu que ela era fotógrafa, arranjou-lhe um trabalho, cruzou-se, durante o dia, com ela e com o outro homem. Cumprimentou-os. Falaram do emprego. Ele disse que estava com pressa. Nessa tarde escolheu ir ao cinema sozinho, como fazia antes de a conhecer. Quando saiu da sala tinha uma mensagem no telefone. Não respondeu.
segunda-feira, fevereiro 16, 2004
A normalidade
1.
Em três dias morreram quinze pessoas. Estavam dentro de carros. Digo-lhe tudo isto sabendo que os números nunca serão um eficiente mecanismo de dissuasão. Explico-lhe ainda que depois de um Martini e de meia garrafa de vinho é perigoso conduzir. Ela responde que está em condições. Esta rapariga não se interessa com a possibilidade de um acidente, com o perigo para as outras pessoas, com a infracção da lei. Ela está segura de que um Martini e meia garrafa de vinho não alteram a sua habilidade ao volante. E é assim que pensam muitos condutores. Essa é a sua normalidade. Ela diz que alguns dos seus amigos morreram na estrada. Ela tem 23 anos e não quer mudar. O meu apelo é visto como um sermão paterno. Ela não precisa de me ouvir. Ela está bem para guiar.
2.
Um acidente é isso mesmo, um evento raro, ocasional, que não cumpre as regras da normalidade. Mas em Portugal os acidentes, as mortes, os traumatizados são a normalidade. Fazer a A5 para Cascais a 180 km por hora colado à traseira do carro da frente é normal, tal como as bruscas mudanças de direcção, as ultrapassagens pela direita. A auto-estrada é uma pista de corrida. E se peço ao meu amigo para reduzir a velocidade, ele responde que eu não estou habituado e que em Portugal é assim que se conduz, que todas as aquelas manobras são normais, que fazem parte do sistema de sobrevivência. Tento explicar-lhe que em alguns lugares do planeta também é normal a excisão, o apedrejamento, a prostituição infantil. A repetição de um erro, um crime, uma falta, vezes sem conta, não serve de atenuante nem justifica a impunidade.
3.
Em Nova Iorque os condutores bêbedos ficam sem o carro que conduzem no momento da infracção. Resultaria em Portugal, país novo rico onde os carros são uma prioridade, um patamar mais elevado na escala social. Se miúdas de 23 anos que bebem antes de entrar num carro não parecem tocadas pelas campanhas de sensibilização, pela imagens diárias nas televisões, pelos amigos que morrem em acidentes, se essa é a sua normalidade, apenas existe uma solução. Punir severamente. Tirar carros, carta, substituir penas suspensas por serviço comunitário – em particular nos hospitais onde se encontram os sinistrados. Os infractores teriam de ajudar na fisioterapia, mudar arrastadeiras, ver a destruição física e o sofrimento cara a cara, fora de um ecrã, com cheiro, com deformação, e conversar com os familiares, perceber-lhes o desespero.
4.
Em Portugal é normal beber e conduzir. É normal fazer manobras perigosas, morrer, ficar sem pernas, sem fala, sem um filho. Em Portugal fazem-se perfis em jornais – e na televisão – sobre os homens que bateram os recordes de taxa alcoolémica, mas quase sempre em registo de humor. Em Portugal beber e conduzir é símbolo de masculinidade. Em Portugal as pessoas estão mais preocupadas em evitar a polícia do que com a possibilidade de um acidente. Quando um condutor alcoolizado entra no carro pensa no melhor caminho para não se cruzar com uma operação da Brigada de Trânsito, nunca na eventualidade de um acidente. Porque a lei é que está mal, os médicos e a polícia não sabem nada, e uma rapariga de 23 anos que bebe um Martini e meia garrafa de vinho está bem para conduzir – “Já conduzi muito mais bêbeda”. Procuro ainda explicar-lhe que não quero controlar-lhe os hábitos de bebida, que ela pode embebedar-se, sozinha, com amigos, na rua, em casa, vomitar, desde que não entre num carro, porque nesse momento a bebedeira deixa de afectar apenas o seu cérebro e pode desfazer outras pessoas. Digo-lhe até – se ela não está interessada em que me preocupe com a sua vida – que me entenda como um egoísta que quer viver, que não deseja ser atropelado por um bêbedo. Não é suficiente. E ela abandona a mesa para regressar à sua normalidade.
1.
Em três dias morreram quinze pessoas. Estavam dentro de carros. Digo-lhe tudo isto sabendo que os números nunca serão um eficiente mecanismo de dissuasão. Explico-lhe ainda que depois de um Martini e de meia garrafa de vinho é perigoso conduzir. Ela responde que está em condições. Esta rapariga não se interessa com a possibilidade de um acidente, com o perigo para as outras pessoas, com a infracção da lei. Ela está segura de que um Martini e meia garrafa de vinho não alteram a sua habilidade ao volante. E é assim que pensam muitos condutores. Essa é a sua normalidade. Ela diz que alguns dos seus amigos morreram na estrada. Ela tem 23 anos e não quer mudar. O meu apelo é visto como um sermão paterno. Ela não precisa de me ouvir. Ela está bem para guiar.
2.
Um acidente é isso mesmo, um evento raro, ocasional, que não cumpre as regras da normalidade. Mas em Portugal os acidentes, as mortes, os traumatizados são a normalidade. Fazer a A5 para Cascais a 180 km por hora colado à traseira do carro da frente é normal, tal como as bruscas mudanças de direcção, as ultrapassagens pela direita. A auto-estrada é uma pista de corrida. E se peço ao meu amigo para reduzir a velocidade, ele responde que eu não estou habituado e que em Portugal é assim que se conduz, que todas as aquelas manobras são normais, que fazem parte do sistema de sobrevivência. Tento explicar-lhe que em alguns lugares do planeta também é normal a excisão, o apedrejamento, a prostituição infantil. A repetição de um erro, um crime, uma falta, vezes sem conta, não serve de atenuante nem justifica a impunidade.
3.
Em Nova Iorque os condutores bêbedos ficam sem o carro que conduzem no momento da infracção. Resultaria em Portugal, país novo rico onde os carros são uma prioridade, um patamar mais elevado na escala social. Se miúdas de 23 anos que bebem antes de entrar num carro não parecem tocadas pelas campanhas de sensibilização, pela imagens diárias nas televisões, pelos amigos que morrem em acidentes, se essa é a sua normalidade, apenas existe uma solução. Punir severamente. Tirar carros, carta, substituir penas suspensas por serviço comunitário – em particular nos hospitais onde se encontram os sinistrados. Os infractores teriam de ajudar na fisioterapia, mudar arrastadeiras, ver a destruição física e o sofrimento cara a cara, fora de um ecrã, com cheiro, com deformação, e conversar com os familiares, perceber-lhes o desespero.
4.
Em Portugal é normal beber e conduzir. É normal fazer manobras perigosas, morrer, ficar sem pernas, sem fala, sem um filho. Em Portugal fazem-se perfis em jornais – e na televisão – sobre os homens que bateram os recordes de taxa alcoolémica, mas quase sempre em registo de humor. Em Portugal beber e conduzir é símbolo de masculinidade. Em Portugal as pessoas estão mais preocupadas em evitar a polícia do que com a possibilidade de um acidente. Quando um condutor alcoolizado entra no carro pensa no melhor caminho para não se cruzar com uma operação da Brigada de Trânsito, nunca na eventualidade de um acidente. Porque a lei é que está mal, os médicos e a polícia não sabem nada, e uma rapariga de 23 anos que bebe um Martini e meia garrafa de vinho está bem para conduzir – “Já conduzi muito mais bêbeda”. Procuro ainda explicar-lhe que não quero controlar-lhe os hábitos de bebida, que ela pode embebedar-se, sozinha, com amigos, na rua, em casa, vomitar, desde que não entre num carro, porque nesse momento a bebedeira deixa de afectar apenas o seu cérebro e pode desfazer outras pessoas. Digo-lhe até – se ela não está interessada em que me preocupe com a sua vida – que me entenda como um egoísta que quer viver, que não deseja ser atropelado por um bêbedo. Não é suficiente. E ela abandona a mesa para regressar à sua normalidade.
terça-feira, fevereiro 10, 2004
Body Language
“I’m a fighter because I can’t be a poet. I can’t tell stories.”
Barry MacGuigan, campeão irlandês de pesos pluma
Se regressamos ao lugares onde fomos felizes é sempre depressa. O ritual começa com o meu irmão no aeroporto, esperando-me, avançando paras as malas, aliviando-me de uma viagem a atravessar o mundo. Dentro do carro, percebo que desapareceram alguns prédios e que há mais sinais de trânsito, mas o calor repete-se, igual, a mesma humidade a escorrer nas pernas das pessoas, desfocando as luzes dos carros depois de um pé no travão, fazendo levitar o asfalto, ondas transparentes que deixam de existir se nos aproximamos para lhes tocar.
Depois de abandonar as malas no quarto de hóspedes, calçamos o ténis e avançamos com o tronco despido pelos passeios, recuperamos as corridas, o corpo resplandecente quando o nosso reflexo cruza uma montra. Fazemos o mesmo trabalho de estrada que nos preparava para os combates, os músculos crescem, forçamos as pernas, desenhamos golpes.
O bairro desliza pela nossa velocidade, há mulheres que se transformaram em avós e que vigiam as crianças que se matam com bisnagas. Passamos por velhos que levantam os chapéus de palha, as letras vermelhas de uma mercearia acabam de ser pintadas, aparece uma esquina, uma boca de incêndio que lança água, um rádio que explode num carro e que nos estremece os tendões. Os aparelhos de ar condicionado nas janelas substituem as ventoinhas, pingam água para os passeios. Mas esta é ainda a mesma cidade, os corpos embaciados, em câmara lenta, e a nossa rapidez incapaz de destruir a tranquilidade das pessoas que respiram dentro do calor.
Interrompemos o movimento de corrida, dançamos no campo de basquetebol, supondo que as nossas sombras na parede são os adversários, um combate imaginário no chão que transpirou durante todos estes anos e que desbotou as cores para as pessoas que nos contemplam das janelas, miúdos que regressaram da escola e que comem gelados nas escadas de incêndio, luminosos, com roupas que parecem em chamas.
Neste campo consegui a primeira vitória. Sabia já suficientes letras para cumprir as tarefas impostas pela minha mãe, escritas numa lista de supermercado. Sacos de compras com fruta, uma melancia que morderia durante a tarde, garrafas de refrigerantes tilintando quando um dos rapazes me rasteirou e despedacei o vidro no passeio, lâminas que entraram na carne do antebraço e que rasparam uma veia. O médico contou o pontos à medida que remendava o ferimento, o meu irmão mais velho obrigou-me a procurar os culpados. Eram dois, o agressor e o cúmplice com os ombros mais frágeis, capaz de rir mesmo quando viu o sangue espalhando-se na roupa e nos sacos de plástico.
Quando voltámos do hospital, como todos os outros miúdos do bairro, eles saltavam com uma bola cor de laranja em direcção ao cesto, os músculos definidos pela luz que restava desse dia, gritos e insultos ao mesmo tempo que o cheiro da comida chegava das casas e o som de uma ambulância se aproximava e depois se diluía nos outros barulhos da cidade. O meu irmão interrompeu o jogo e criou um circulo com a audiência. Decretou que eu lutaria com aqueles dois rapazes, um de cada vez, anunciou as regras, golpes com os punhos acima da cintura até que um dos lutadores escolhesse desistir.
Doía-me o braço e os treinos amadores – saltar à corda no quarto, correr, simular combates com o meu irmão – não impediam o medo da humilhação diante de todos aqueles espectadores, rapazes que abusariam da minha fraqueza caso perdesse, raparigas que sentiriam compaixão apenas no momento em que eu tombasse, mas que recusariam convites para o cinema durante o resto da minha vida.
No combate com o cúmplice não houve técnica, apenas os meus braços despejando golpes que caíam na cabeça, nos cotovelos, um murro que se encaixou abaixo do esterno, acima do estômago, e que lhe imobilizou o sistema respiratório. O cúmplice enrolou o corpo, a boca procurando oxigénio, o meu irmão a proibir-me de magoá-lo ainda mais.
Quando o agressor entrou para o circulo, para iniciar o segundo combate, mostrava-se preparado para me castigar, orgulhando-se da cicatriz que lhe atravessava o umbigo, cuspindo, utilizando os braços com a graciosidade dos lutadores que sabem magoar. O tronco brilhante rodava sobre a cintura sempre que as mãos disparavam, rasgando a humidade, os músculos aquecendo, antecipando o momento de impacto. Investiguei o meu irmão que anunciava, uma vez mais, as regras. Ele não aceitaria uma derrota. Mais do que um incentivo de coragem, havia nos seus movimentos uma exigência, eu deveria destruir aquele agressor, recuperar a minha dignidade, ou pelo menos deveria lutar até que o coração parasse, os cortes nos olhos me cegassem e a bravura fosse proporcional aos meus danos físicos.
Não me recordo de quase nada do combate. Mas havia miúdos que me carregavam às costas e que me aplaudiam. Os pontos tinham-se desfeito por causa dos meus golpes e o corte voltava a jorrar sangue. O derrotado ficou para trás, no campo de basquetebol, preparando-se para a vergonha e para meses a convencer os rapazes que a sua amizade era importante, sabendo que teria ainda de experimentar a humilhação e o isolamento.
O sangue e as marcas na cara acentuavam o dramatismo da minha vitória. Havia beleza no meu corpo danificado apenas porque eu era o campeão, as raparigas não se assustavam com o tamanho dos meus lábios nem com o osso do nariz, desviado, esperando analgésicos e uma operação cirúrgica. Essa tarde serviu para intimidar inimigos, para impressionar mulheres. Com esse combate construi uma imagem que reforcei em sessões de corda e de corrida, os vizinhos apreciavam a destreza dos meus movimentos e adivinhavam um campeão mundial. Mas nunca me tornei profissional e hoje vivo noutro país, onde faz frio, onde ensino alunos universitários sobre a poesia que outros escreveram.
Todos os anos regresso a casa dos meus pais, durante os meses de calor. Corro com o meu irmão pelo bairro. Os que me conhecem acenam, como se ainda revelasse a glória que consegui naquela tarde. Todos os anos, depois de correr, entro com o meu irmão na mercearia, aproximo-me do proprietário, o agressor, e cumprimentamo-nos, mas nunca conversamos, reagimos com a cortesia dos adultos que se julgam civilizados, sem nunca esquecermos o combate. Um destes dias, vou oferecer-lhe uma desforra. Levo a minha mulher, os meus filhos, os meus alunos, o meu irmão, e mostro-lhes o que é, afinal, a poesia em carne viva.
“I’m a fighter because I can’t be a poet. I can’t tell stories.”
Barry MacGuigan, campeão irlandês de pesos pluma
Se regressamos ao lugares onde fomos felizes é sempre depressa. O ritual começa com o meu irmão no aeroporto, esperando-me, avançando paras as malas, aliviando-me de uma viagem a atravessar o mundo. Dentro do carro, percebo que desapareceram alguns prédios e que há mais sinais de trânsito, mas o calor repete-se, igual, a mesma humidade a escorrer nas pernas das pessoas, desfocando as luzes dos carros depois de um pé no travão, fazendo levitar o asfalto, ondas transparentes que deixam de existir se nos aproximamos para lhes tocar.
Depois de abandonar as malas no quarto de hóspedes, calçamos o ténis e avançamos com o tronco despido pelos passeios, recuperamos as corridas, o corpo resplandecente quando o nosso reflexo cruza uma montra. Fazemos o mesmo trabalho de estrada que nos preparava para os combates, os músculos crescem, forçamos as pernas, desenhamos golpes.
O bairro desliza pela nossa velocidade, há mulheres que se transformaram em avós e que vigiam as crianças que se matam com bisnagas. Passamos por velhos que levantam os chapéus de palha, as letras vermelhas de uma mercearia acabam de ser pintadas, aparece uma esquina, uma boca de incêndio que lança água, um rádio que explode num carro e que nos estremece os tendões. Os aparelhos de ar condicionado nas janelas substituem as ventoinhas, pingam água para os passeios. Mas esta é ainda a mesma cidade, os corpos embaciados, em câmara lenta, e a nossa rapidez incapaz de destruir a tranquilidade das pessoas que respiram dentro do calor.
Interrompemos o movimento de corrida, dançamos no campo de basquetebol, supondo que as nossas sombras na parede são os adversários, um combate imaginário no chão que transpirou durante todos estes anos e que desbotou as cores para as pessoas que nos contemplam das janelas, miúdos que regressaram da escola e que comem gelados nas escadas de incêndio, luminosos, com roupas que parecem em chamas.
Neste campo consegui a primeira vitória. Sabia já suficientes letras para cumprir as tarefas impostas pela minha mãe, escritas numa lista de supermercado. Sacos de compras com fruta, uma melancia que morderia durante a tarde, garrafas de refrigerantes tilintando quando um dos rapazes me rasteirou e despedacei o vidro no passeio, lâminas que entraram na carne do antebraço e que rasparam uma veia. O médico contou o pontos à medida que remendava o ferimento, o meu irmão mais velho obrigou-me a procurar os culpados. Eram dois, o agressor e o cúmplice com os ombros mais frágeis, capaz de rir mesmo quando viu o sangue espalhando-se na roupa e nos sacos de plástico.
Quando voltámos do hospital, como todos os outros miúdos do bairro, eles saltavam com uma bola cor de laranja em direcção ao cesto, os músculos definidos pela luz que restava desse dia, gritos e insultos ao mesmo tempo que o cheiro da comida chegava das casas e o som de uma ambulância se aproximava e depois se diluía nos outros barulhos da cidade. O meu irmão interrompeu o jogo e criou um circulo com a audiência. Decretou que eu lutaria com aqueles dois rapazes, um de cada vez, anunciou as regras, golpes com os punhos acima da cintura até que um dos lutadores escolhesse desistir.
Doía-me o braço e os treinos amadores – saltar à corda no quarto, correr, simular combates com o meu irmão – não impediam o medo da humilhação diante de todos aqueles espectadores, rapazes que abusariam da minha fraqueza caso perdesse, raparigas que sentiriam compaixão apenas no momento em que eu tombasse, mas que recusariam convites para o cinema durante o resto da minha vida.
No combate com o cúmplice não houve técnica, apenas os meus braços despejando golpes que caíam na cabeça, nos cotovelos, um murro que se encaixou abaixo do esterno, acima do estômago, e que lhe imobilizou o sistema respiratório. O cúmplice enrolou o corpo, a boca procurando oxigénio, o meu irmão a proibir-me de magoá-lo ainda mais.
Quando o agressor entrou para o circulo, para iniciar o segundo combate, mostrava-se preparado para me castigar, orgulhando-se da cicatriz que lhe atravessava o umbigo, cuspindo, utilizando os braços com a graciosidade dos lutadores que sabem magoar. O tronco brilhante rodava sobre a cintura sempre que as mãos disparavam, rasgando a humidade, os músculos aquecendo, antecipando o momento de impacto. Investiguei o meu irmão que anunciava, uma vez mais, as regras. Ele não aceitaria uma derrota. Mais do que um incentivo de coragem, havia nos seus movimentos uma exigência, eu deveria destruir aquele agressor, recuperar a minha dignidade, ou pelo menos deveria lutar até que o coração parasse, os cortes nos olhos me cegassem e a bravura fosse proporcional aos meus danos físicos.
Não me recordo de quase nada do combate. Mas havia miúdos que me carregavam às costas e que me aplaudiam. Os pontos tinham-se desfeito por causa dos meus golpes e o corte voltava a jorrar sangue. O derrotado ficou para trás, no campo de basquetebol, preparando-se para a vergonha e para meses a convencer os rapazes que a sua amizade era importante, sabendo que teria ainda de experimentar a humilhação e o isolamento.
O sangue e as marcas na cara acentuavam o dramatismo da minha vitória. Havia beleza no meu corpo danificado apenas porque eu era o campeão, as raparigas não se assustavam com o tamanho dos meus lábios nem com o osso do nariz, desviado, esperando analgésicos e uma operação cirúrgica. Essa tarde serviu para intimidar inimigos, para impressionar mulheres. Com esse combate construi uma imagem que reforcei em sessões de corda e de corrida, os vizinhos apreciavam a destreza dos meus movimentos e adivinhavam um campeão mundial. Mas nunca me tornei profissional e hoje vivo noutro país, onde faz frio, onde ensino alunos universitários sobre a poesia que outros escreveram.
Todos os anos regresso a casa dos meus pais, durante os meses de calor. Corro com o meu irmão pelo bairro. Os que me conhecem acenam, como se ainda revelasse a glória que consegui naquela tarde. Todos os anos, depois de correr, entro com o meu irmão na mercearia, aproximo-me do proprietário, o agressor, e cumprimentamo-nos, mas nunca conversamos, reagimos com a cortesia dos adultos que se julgam civilizados, sem nunca esquecermos o combate. Um destes dias, vou oferecer-lhe uma desforra. Levo a minha mulher, os meus filhos, os meus alunos, o meu irmão, e mostro-lhes o que é, afinal, a poesia em carne viva.
quarta-feira, fevereiro 04, 2004
Move to the city
Não sei por onde ir. Mas tenho a certeza que deveria estar longe.
Encontramos a saída do parque de estacionamento depois de eu abandonar o lugar do condutor, de cruzar-me com Jasmine diante do carro e de mudarmos de posição. Ela usa as unhas no volante como se fossem um instrumento adicional na rádio, educa-me sobre o perigo de conduzir quando estamos bêbedos. Mas sou eu quem ordena cuidado. Nunca ninguém encontrou um risco na pintura do meu carro. Este motor deveria ser santificado.
A viagem terminou. O meu fascínio está nos brilhantes que enfeitam as bochechas de Jasmine. Estico um dedo e um dos brilhantes cola-se na minha pele. O pudor que revelou durante toda a noite intensifica-se e ela encosta-se ao vidro como se esperasse um ataque, um salto por cima do manipulo das mudanças. Eu mantenho-me em sossego, demasiado bêbedo e cansado para inventar qualquer truque de sedução. Jasmine é empregada de mesa num clube de strip-tease. Não dispõe de um corpo para ser bailarina, mas também não encontra virtude para estar casada, com filhos, limpando a casa, cozinhando para a família, reverenciando um marido trabalhador. Jasmine parou a meio caminho de qualquer coisa que nunca chegou a ser, não é nada que se possa caracterizar, é uma mulher inacabada, e talvez seja por isso que ainda está dentro do meu carro, que ainda não me recusou.
Jasmine diz-me que não posso entrar na caravana. Depois, ao conceder que a sua vergonha encenada não estimulou a minha insistência, aconselha-me a beber café, a lavar a cara, a recuperar a sobriedade, avisando-me, no entanto, que não haverá sexo – a expressão que escolhe:
“É muito cedo para fazermos amor.”
O filho de Jasmine dorme na caravana. Uma mulher – a irmã – aparece à porta e repousa uma mão nas ancas, a outra segurando uma caneca, investigando o perigo. Jasmine acena para a irmã, um gesto que também significa que não demorará dentro deste carro. O beijo de despedida que me oferece, na boca, talvez apresente uma possibilidade, um convite para outro dia, mas os meus músculos estão dormentes e a língua é apenas um pedaço de carne. Jasmine sai do carro e mesmo que se vire para trás e sorria, uma última vez, não haverá continuação para este encontro. O meu corpo magoa-se quando mudo para o lugar do condutor.
Estou confortável dentro do meu carro, o ponteiro a rodar para a direita, a velocidade a crescer numa estrada sem carros, apenas alcatrão com uma linha branca que cruzo e uma mancha de árvores velozes roçando na chapa, o pé esmagando o acelerador. Este é o momento de voar, de não ter medo, de rodar o volante, de arrancar a terra no limite do alcatrão, de regressar à linha branca e
e o meu corpo acende-se, o coração explode, os fragmentos do susto atingem todo o sistema nervoso porque um animal rebenta contra o pára-choques, sobe pelo vidro, e o meu pé muda para o pedal do travão, borracha, fumo, as minhas mãos a tremer, suspensas sobre o volante, o carro que descansa, imobilizado, depois do confronto.
As costelas do animal – um cão, uma raposa, um lobo – aparecem entre o pêlo, respiram, por vezes param como se morressem, mas depois insistem em reactivar os pulmões. Procuro levantar-lhe o corpo mas a minha pele mancha-se de sangue e o cheiro afasta-me, não posso salvá-lo, entro no carro, o motor ainda funciona.
O meu pai está atrás do vapor da relva, uma mancha que se eleva da máquina, partículas que brilham à superfície do jardim quando a manhã ainda é fresca. Entro em casa e o meu pai persegue-me, descalça as luvas, procura um ferimento entre o sangue que mostro na roupa. Sintetizo tudo o que aconteceu, antecipando perguntas, recusando a possibilidade de mais esclarecimentos.
Durante a viagem – o meu pai conduz – aumento o volume do rádio mas o monólogo continua, por vezes aceno com a cabeça para fingir atenção, não contesto nada, utilizo apenas uma palavra para evitar uma indiferença que o magoe, estou a caminho de outro lugar.
“Estas coisas acontecem. Quando tinha a tua idade esmaguei um pássaro com a roda da mota. Não morri por sorte.”
“Sim.”
“O que interessa é que estás vivo. Estas estradas deviam ter vedações, é um perigo, vou escrever uma carta para os jornais e falar com um amigo conhece pessoas influentes na Polícia, eles têm de tomar precauções. Os animais não são mais importantes que as pessoas.”
“Sim.”
“Quando chegares a casa comes alguma coisa e vais dormir, eu trato de tudo.”
“Sim.”
Estou dentro do carro mas o som é nítido, tão seco que estremece as árvores, prolonga-se no ar, arrasta-se, e o doce odor da pólvora entra pelas janelas. O meu pai guarda a espingarda no banco traseiro e, embrulhado num lençol, arruma o animal na bagageira.
Não existem vestígios de sangue no meu corpo nu. Visto as calças, não uso meias, aperto os cordões dos sapatos, escolho uma t-shirt. O meu pai cozinhou, cortou pão e espremeu laranjas para dentro de um copo com gelo. Observa-me enquanto mastigo.
“Vais dormir e eu vou enterrá-lo. Não se volta a falar deste assunto. Quando acordares espreita o jornal. Sublinhei alguns anúncios de emprego que podem interessar. Mas se quiseres, logo à noite, eu levo-te ao escritório da fábrica. Sabes como é difícil encontrar trabalho. Já falei com o meu chefe e ele quer conhecer-te. Não precisas de falar, eu tenho tudo planeado. Vestes aquele casaco que comprei o mês passado, deve servir-te, e levas a gravata dos funerais, escovo-a antes de sairmos. Eu converso com ele. Não tens de preocupar-te. Está tudo arranjado. Só tens de sentar-te e apertar-lhe a mão e dizeres que estás pronto para trabalhar amanhã.”
O meu pai está em pé quando empurro a roupa para dentro das malas. Digo-lhe que não posso ficar mais tempo, que há pessoas que me procuram, que querem fazer-me mal, talvez mesmo matar-me. O meu pai diz que resolve o problema, que tem dinheiro, que pagará para que o meu corpo permaneça sem cicatrizes, que conhece pessoas importantes, um fuzileiro, bancários, políticos que visitaram a fábrica. Tudo isto é mentira, tal como não existem homens à minha procura. Enganamo-nos.
Quando me preparo para entrar no carro, percebo que, enquanto tomava banho, o meu pai eliminou o sangue da chapa. Digo-lhe que telefono assim que alcançar a primeira grande cidade. O meu pai entrega-me dinheiro preso num elástico e dá-me as chaves da sua carrinha:
“Não podes fazer uma viagem nesse carro.”
Preparo-me para recusar mas ele abraça-me, aperta-me, quase que me magoa. Depois de rodar a chave da carrinha, escuto outro motor e encontro o meu pai atrás da máquina de relva, o cheiro verde suspenso diante do seu corpo, forrando-lhe a cara e as mãos que se despedem, sem parar, até que eu desapareça na primeira curva.
Não sei por onde ir. Mas tenho a certeza que deveria estar longe.
Encontramos a saída do parque de estacionamento depois de eu abandonar o lugar do condutor, de cruzar-me com Jasmine diante do carro e de mudarmos de posição. Ela usa as unhas no volante como se fossem um instrumento adicional na rádio, educa-me sobre o perigo de conduzir quando estamos bêbedos. Mas sou eu quem ordena cuidado. Nunca ninguém encontrou um risco na pintura do meu carro. Este motor deveria ser santificado.
A viagem terminou. O meu fascínio está nos brilhantes que enfeitam as bochechas de Jasmine. Estico um dedo e um dos brilhantes cola-se na minha pele. O pudor que revelou durante toda a noite intensifica-se e ela encosta-se ao vidro como se esperasse um ataque, um salto por cima do manipulo das mudanças. Eu mantenho-me em sossego, demasiado bêbedo e cansado para inventar qualquer truque de sedução. Jasmine é empregada de mesa num clube de strip-tease. Não dispõe de um corpo para ser bailarina, mas também não encontra virtude para estar casada, com filhos, limpando a casa, cozinhando para a família, reverenciando um marido trabalhador. Jasmine parou a meio caminho de qualquer coisa que nunca chegou a ser, não é nada que se possa caracterizar, é uma mulher inacabada, e talvez seja por isso que ainda está dentro do meu carro, que ainda não me recusou.
Jasmine diz-me que não posso entrar na caravana. Depois, ao conceder que a sua vergonha encenada não estimulou a minha insistência, aconselha-me a beber café, a lavar a cara, a recuperar a sobriedade, avisando-me, no entanto, que não haverá sexo – a expressão que escolhe:
“É muito cedo para fazermos amor.”
O filho de Jasmine dorme na caravana. Uma mulher – a irmã – aparece à porta e repousa uma mão nas ancas, a outra segurando uma caneca, investigando o perigo. Jasmine acena para a irmã, um gesto que também significa que não demorará dentro deste carro. O beijo de despedida que me oferece, na boca, talvez apresente uma possibilidade, um convite para outro dia, mas os meus músculos estão dormentes e a língua é apenas um pedaço de carne. Jasmine sai do carro e mesmo que se vire para trás e sorria, uma última vez, não haverá continuação para este encontro. O meu corpo magoa-se quando mudo para o lugar do condutor.
Estou confortável dentro do meu carro, o ponteiro a rodar para a direita, a velocidade a crescer numa estrada sem carros, apenas alcatrão com uma linha branca que cruzo e uma mancha de árvores velozes roçando na chapa, o pé esmagando o acelerador. Este é o momento de voar, de não ter medo, de rodar o volante, de arrancar a terra no limite do alcatrão, de regressar à linha branca e
e o meu corpo acende-se, o coração explode, os fragmentos do susto atingem todo o sistema nervoso porque um animal rebenta contra o pára-choques, sobe pelo vidro, e o meu pé muda para o pedal do travão, borracha, fumo, as minhas mãos a tremer, suspensas sobre o volante, o carro que descansa, imobilizado, depois do confronto.
As costelas do animal – um cão, uma raposa, um lobo – aparecem entre o pêlo, respiram, por vezes param como se morressem, mas depois insistem em reactivar os pulmões. Procuro levantar-lhe o corpo mas a minha pele mancha-se de sangue e o cheiro afasta-me, não posso salvá-lo, entro no carro, o motor ainda funciona.
O meu pai está atrás do vapor da relva, uma mancha que se eleva da máquina, partículas que brilham à superfície do jardim quando a manhã ainda é fresca. Entro em casa e o meu pai persegue-me, descalça as luvas, procura um ferimento entre o sangue que mostro na roupa. Sintetizo tudo o que aconteceu, antecipando perguntas, recusando a possibilidade de mais esclarecimentos.
Durante a viagem – o meu pai conduz – aumento o volume do rádio mas o monólogo continua, por vezes aceno com a cabeça para fingir atenção, não contesto nada, utilizo apenas uma palavra para evitar uma indiferença que o magoe, estou a caminho de outro lugar.
“Estas coisas acontecem. Quando tinha a tua idade esmaguei um pássaro com a roda da mota. Não morri por sorte.”
“Sim.”
“O que interessa é que estás vivo. Estas estradas deviam ter vedações, é um perigo, vou escrever uma carta para os jornais e falar com um amigo conhece pessoas influentes na Polícia, eles têm de tomar precauções. Os animais não são mais importantes que as pessoas.”
“Sim.”
“Quando chegares a casa comes alguma coisa e vais dormir, eu trato de tudo.”
“Sim.”
Estou dentro do carro mas o som é nítido, tão seco que estremece as árvores, prolonga-se no ar, arrasta-se, e o doce odor da pólvora entra pelas janelas. O meu pai guarda a espingarda no banco traseiro e, embrulhado num lençol, arruma o animal na bagageira.
Não existem vestígios de sangue no meu corpo nu. Visto as calças, não uso meias, aperto os cordões dos sapatos, escolho uma t-shirt. O meu pai cozinhou, cortou pão e espremeu laranjas para dentro de um copo com gelo. Observa-me enquanto mastigo.
“Vais dormir e eu vou enterrá-lo. Não se volta a falar deste assunto. Quando acordares espreita o jornal. Sublinhei alguns anúncios de emprego que podem interessar. Mas se quiseres, logo à noite, eu levo-te ao escritório da fábrica. Sabes como é difícil encontrar trabalho. Já falei com o meu chefe e ele quer conhecer-te. Não precisas de falar, eu tenho tudo planeado. Vestes aquele casaco que comprei o mês passado, deve servir-te, e levas a gravata dos funerais, escovo-a antes de sairmos. Eu converso com ele. Não tens de preocupar-te. Está tudo arranjado. Só tens de sentar-te e apertar-lhe a mão e dizeres que estás pronto para trabalhar amanhã.”
O meu pai está em pé quando empurro a roupa para dentro das malas. Digo-lhe que não posso ficar mais tempo, que há pessoas que me procuram, que querem fazer-me mal, talvez mesmo matar-me. O meu pai diz que resolve o problema, que tem dinheiro, que pagará para que o meu corpo permaneça sem cicatrizes, que conhece pessoas importantes, um fuzileiro, bancários, políticos que visitaram a fábrica. Tudo isto é mentira, tal como não existem homens à minha procura. Enganamo-nos.
Quando me preparo para entrar no carro, percebo que, enquanto tomava banho, o meu pai eliminou o sangue da chapa. Digo-lhe que telefono assim que alcançar a primeira grande cidade. O meu pai entrega-me dinheiro preso num elástico e dá-me as chaves da sua carrinha:
“Não podes fazer uma viagem nesse carro.”
Preparo-me para recusar mas ele abraça-me, aperta-me, quase que me magoa. Depois de rodar a chave da carrinha, escuto outro motor e encontro o meu pai atrás da máquina de relva, o cheiro verde suspenso diante do seu corpo, forrando-lhe a cara e as mãos que se despedem, sem parar, até que eu desapareça na primeira curva.
quinta-feira, janeiro 29, 2004
Comer-te viva
“You’re the real thing, even better than the real thing”
U2
Introdução
Vi-o ainda antes de o conhecer. Primeiro num filme pornográfico, alugado numa loja em East Village, assim que um amigo me falou do projecto televisivo que incluia esse actor. Fiz também parte daqueles que visionaram o programa antes de ser apresentado aos executivos da estação de televisão. Era um diário audiovisual desse mesmo actor, estrela porno, a viver na Califórnia. Decidi agora juntar transcrições de frases e imagens apanhadas pela câmara - que o seguiu durante um mês - e um relato dos dias que passámos juntos em Nova Iorque. A responsabilidade da edição e de algum ajuste na tradução é apenhas minha. O programa nunca chegou a ser transmitido. Nem sequer comprado.
Dia 3
Los Angeles, 10h00, testemunho do actor
Eu existo. Provem, mastiguem e engulam. Observem-me nos espelhos da casa e nas fotografias penduradas na parede. Toquem no ecrã da televisão.
Lição número um.
O corpo é importante. Vejam o contorno dos bícepes, a pele para lamber, o tamanho do pénis circuncidado mesmo em estado de descanso. Depois de acordar engole-se um batido de banana e esperam-se dez minutos. Ouve-se música ou descobre-se a televisão. Nada de programas para sorrir. Apenas notícias. Passam-se trinta minutos na máquina de corrida. A resistência é uma qualidade. Transpirar limpa a circulação sanguínea e serve de lavagem automática para a pele. Os pulmões têm de ser grandes, aguentar as provas físicas. Quando se passam seis horas a foder respira-se fundo, adia-se o sofrimento e a exaustão. Os braços exercitam-se porque são como alavancas, ou gruas que sustentam todo o meu peso de cada vez que estou em cima de uma actriz, de uma actriz porno, de uma mulher. Os braços não podem falhar, sofrer tremores de cansaço, desistir sempre que alguém espera que continuemos com a actividade de martelar outro corpo.
As pernas e as nádegas devem mostrar-se duras e com todos os músculos definidos. De cada vez que estou fora da cama e a mulher, a actriz, a profissional, me recebe como os cães nos ensinaram, contraio as coxas e as nádegas, invento beleza. Outras vezes, quando por um erro da produção existe um desnível entre os corpos, uma cama elevada, uma actriz alta, forço-me a estar em bicos de pés, como os bailarinos, profissão de rápido desgaste. Por tudo isto, o exercício do corpo é importante e obrigatório.
Vamos passar pelo corredor, espreitar as duas mulheres, não actrizes, que ainda dormem no meu quarto. Lembrem-me que os lençóis são para a máquina de lavar. E antes de entrarmos na casa de banho, tirem os sapatos.
(Plano de corte, frascos de creme, pasta de dentes, toalhas brancas, pente com dentes em madeira)
Lição número dois.
A higiene é uma forma de beleza. O cabelo deve ser curto e sem produtos pegajosos que enfraquecem as raízes e se mostram desgradáveis aos dedos das mulheres, actrizes profissionais ou mesmo as que não fodem apenas por dinheiro e fama. Deve fazer-se a barba minutos antes de entrar em cena mas guardar sempre o tempo necessário para que a pele absorva o creme hidratante e aceite a maquilhagem. Como podem ver, estou nu diante deste espelho de corpo inteiro, como se fosse uma cama. E nenhum pêlo em qualquer lugar da pele. Cada um escolhe a técnica de depilação, mas uma pele lisa e macia é uma exigência. Não só o corpo parece mais limpo e mais acessível, como os músculos se revelam na sua disposição natural. Os pêlos escondem-os. A zona púbica e do anús é difícil, reconheço, mas se rapada mostra a verdadeira dimensão do pénis. Vocês pediram para dizer pénis, por isso digo pénis e não caralho.
Para as mulheres, um corpo masculino sem pêlos é mais fácil de aceitar. Quando praticam sexo oral, respiram pelo nariz, por isso, se desimpedirmos a zona púbica, facilitamos o trabalho e aumentamos, por consequência, o prazer, assim como a visibilidade. Afasto-lhes o cabelo, prendo-o nas minhas mãos e observo, guiando o pescoço, forçando-o, por vezes. Venho-me, gozo, ejaculo. Como quiserem.
(Plano de corte, porta aberta do quarto, corpos escondendo-se nos lençóis, cabelos loiros)
Estas mulheres, que não recebem para foder, se esquecermos o dinheiro para o táxi e as garrafas de champanhe que despejaram, fazem parte da ginástica que antecede um dia de filmagens. Não são para comer, mas apenas para admirar, para me fazer crescer, para que me masturbe. São um isco, obrigam-me a correr sozinho, são parte do plano de treinos. Ficam na cama, lambendo-se, usando os dedos e os vibradores que escolhem no armário, rodeando-se de brinquedos sexuais, coleiras, lubrificantes, pénis que se atam à cintura, capacetes e bastões de polícia, botas de borracha com desenhos de gatos.
Durante a sessão de ginástica, nesta poltrona insuflável, masturbo-me três vezes, número necessário para a preparação de um dia a foder diante das câmaras. Sou capaz de pensar em muitas coisas quando me masturbo, putas de rua, actrizes, grupos de desconhecidos, trocas de casais, coisas que já fiz, nunca as que ficaram por fazer. E se apertarem a glande do pénis, sim, se apertarem o caralho quando estão quase a vir-se, a gozar, a ejacular, podem começar tudo outra vez. Sem dor, apenas prazer.
Dia 7
Nova Iorque
Relato de um almoço na Rua 14, Meat Packing District, 13h21
O actor escolheu uma salada e depois pediu uma banana que descascou e comeu em poucas dentadas. Conversou sobre o consumo de cocaína pelos profissionais do sexo para demonstrar as vantagens da abstinência. Não aceita sequer o fumo dos cigarros das outras mesas e não bebe álcool, apenas água, leite e sumos energéticos. Afirmou que a carne, a sua carne, tem que estar intacta, para ser dura, para funcionar. Contou que se exercita, inventando técnicas de resistência e que, depois de respirar fundo, recupera sempre o controlo, preserva a erecção e evita um orgasmo precoce antes do momento exigido pelo realizador. Tem método, por vezes enfia o pénis dentro de um balde de gelo ou fecha os olhos e diz, numa voz que não se escuta, a tabuada dos nove e imagina crianças que trabalham em fábricas de fogo de artifício, operações de torax aberto, carneiros degolados, reuniões ou tarefas domésticas por organizar. Sempre que precisa de recomeçar, bebe refrigerantes e come chocolates uma vez que os hidratos de carbono fornecem energia. Depois de ejacular, engole pacotes de açúcar. No tempo da mulher se limpar afirma que está de regresso ao estado sólido.
Quando pedimos a conta, o actor já tinha comentado as características físicas de todas as mulheres do restaurante e iniciado uma conversa com a empregada. Descreveu, com frequência, o que lhes faria se as levasse para a cama. Mas, em diversas ocasiões, escolheu outros lugares para o sexo imaginário, como a casa de banho do restaurante, o corredor do hotel ou um estábulo com cavalos.
No dia anterior tinha participado numa sessão de autógrafos, numa sex shop, aproveitando para promover o último filme que protagonizara. Entre a assistência estava uma mulher, mãe da actriz porno Gigi Star, com quem entrou numa cabine onde se depositam moedas e se descobrem raparigas que se despem, atrás de um vidro, num palco rotativo. Mais tarde, quando nos encontrámos no hotel, contou a tarde de sexo com a mulher de meia idade, as pernas ocupadas em manhãs de ginásio, peito com implantes e lábios apertados em injecções de colagéneo. O problema inicial era o do incesto indirecto, uma vez que contracenara com a filha dessa mulher. Se o beijasse, dizia ela, era como se estivesse a praticar sexo oral com a filha. A imagem apenas aumentou a vontade do actor.
Durante toda uma tarde de compras, no SoHo, analisou partes de corpos, ignorou as mulheres inteiras. Empregadas de balcão, vendedoras de rua, clientes de esplanadas. Disse depois que precisava de sono, porque a noite seria entre bares e mais mulheres desconhecidas. Antes de se despedir disse também que se sentia emocionalmente cansado.
Relato de uma noite no Bar do Hotel TriBeCa Grant, 23h15
O actor disse-me que as pessoas dançam como fodem, ou pelo menos prometem. A noite não é apenas a conversa com amigos, desconhecidos, parceiros de negócios, ou copos com bebidas alcoólicas de cores diferentes, a agitação nos joelhos, nas coxas, na cintura. As pessoas saem para se comerem.
Afastou-se para a pista de dança e quando regressou apontava para um modelo de boné de basebol e braços musculados que segurava as ancas de uma adolescente loira, conduzindo-lhe o corpo, fingindo uma dança. Mas para o actor, aquilo que interessava ao modelo, aquilo em que ele acreditava nesse momento, era na possibilidade de agarrar a adolescente pelos cabelos enquanto ela, de costas e em pé, se apoiaria na mesa de uma sala num qualquer apartamento com vista para o parque.
O que sobrava da noite foi como um espectáculo de conquista. O actor ordenou que desligassem a câmara e apagassem os holofotes. Começou com uma loira de pernas magras e calças de ganga que revelava o fio das cuecas e com quem dançou, tentando lamber-lhe o pescoço. E depois uma mulher que era apenas lábios onde brilhava uma argola de metal, com cabelos curtos e loiros, dançando no centro de uma agitação de drogas e distância. E uma outra de vestido negro, rodeada de fotógrafos, compondo o penteado loiro de cada vez que os flashes se suspendiam, acompanhada por um atleta, ou um actor, ou um músico.
No chão descobriam-se pedaços de copos partidos e beatas e notas e moedas. As opções diminuiam e havia uma nuvenzinha de álcool nos olhos dos que prosseguiam na dança. Durante várias músicas enrolou os braços na cintura de uma mulher que se afastava para sorrir com as amigas e que depois regressava. E no momento de transição de discos, quando o actor nem se movia, foi abraçado por uma outra mulher, com vincos de gordura na barriga, cabelo pintado de loiro e um pescoço transpirado e gordo que o actor beijou antes de lhe chegar à boca. Ao desaparecer para o elevador, encostou os lábios na minha orelha para dizer que todos os homens são fáceis e que às cinco da manhã já nem querem foder. Apenas se querem vir.
Dia 19
Barcelona, 18h54, Festival do Sexo, testemunho do actor
Durante a viagem de avião, com a câmara desligada, decidi contar as mulhers que comi e as nacionalidades. Dentro e fora dos estúdios, cálculos incertos, talvez sejam umas duas mil, de todos os continentes, mulheres que falavam várias línguas e trabalhavam com essas línguas de maneira desigual.
Se me pedem a verdade - digo sempre a verdade - todos os homens querem ser como eu, querem poder andar nos corredores deste festival de sexo e apontar para as actrizes em sessões de autógrafos e dizer:
“Já fiz aquela, aquela e aquela, aquela fez-me, já fiz aquela e a irmã, e aquela que finge ser do leste europeu mas que pinta o cabelo de loiro”
Todos os homens esconderiam as alianças, inventariam desculpas, alguns telefonariam aos advogados para tratarem do divórcio, porque a tesão seria tão evidente dentro das calças do fato que a mulher, a esposa, a verdadeira, nunca acreditaria num congresso no estrangeiro, numa viagem de negócios, numas férias com os amigos de infância.
(Plano de corte, um japonês que enrola o peito de uma mulher com cordas, uma televisão com anões que se masturbam, altifalante que anuncia sessões de sexo ao vivo)
Como podem os homens mentir, como conseguem dizer que não preferem estar aqui,onde as mulheres, actrizes porno, putas dentro das nossas cabeças, se rapam diante do público, onde mostram as mamas e se deixam tocar, oferecendo, em troca da compra de uma cassete de vídeo, uma fotografia polaroide de pernas afastadas e mamilos duros?
A verdade, a verdade está ali, naquele cartaz em espanhol. Encontram naquela frase tudo o que posso dizer sobre os homens e o que experimentam todos os dias, a ambição de se estrearem noutros corpos, frescos, a novidade e a quantidade, apontem a câmara, leiam:
“Fornica bien, no mires a quien.”
Porque as emoções valem no momento, nada se prolonga, todos acabamos por morrer e os sentimentos apodrecem, são um engano que alguns escolhem para esconder a própria natureza, mas, foda-se, não me mintam, não me digam que não somos os animais que depois de foder, de fornicar, de copular, o que quiserem, não descobrem defeitos nos dedos dos pés, nas unhas mal pintadas, no corpo que se levanta e caminha para a casa de banho para se lavar do que acabámos de lhe oferecer. E assim que saímos à rua de manhã, com o cheiro dessa mulher nos dedos e nos lábios e na barba por fazer, já estamos a pensar no que fazer com as mamas gigantes de uma caixa de supermercado que lê um tablóide na carruagem do metro. Acabámos de dormir numa casa que não é a nossa, com uma mulher que conhecemos na noite anterior, e a novidade esgotou-se, queremos outra sessão de caça, outra presa, com outro cheiro, outro formato, outro sabor.
(Plano de corte, vendedor de bilhetes, cassetes de vídeo com travestis e animais, cadeiras com vibradores)
Daqui a pouco tenho que regressar a um quarto de hotel e filmar duas cenas, uma de dupla penetração anal, com uma mulher espanhola e um actor francês, e outra de sexo em grupo, quatro homens para uma mulher. Tenho uma profissão de risco, trabalho sem preservativo por dedicação à beleza do sexo e do amor, palavras iguais. Sou um cronista do meu tempo, um profeta da felicidade, uma chave para a paz mundial, porque eu faço e espalho amor, eu digo a verdade quando utilizo a expressão:
“Fazer Amor.”
Um amor que produzo e fabrico e que é distribuido em cassetes de vídeo, em revistas, em salas de cinema para adultos de todo o planeta. Eu sou o amor comercializado e empacotado em caixas coloridas, publicitado, com preço, grátis, em promoção, eu sou o amor de agora, o amor biológico dos homens, o mais autêntico, o que todos conhecem mas que poucos aceitam. Represento o prazer das hormonas, a natureza, a minha e a nossa essência. E esta é a nossa inevitabilidade, mas também a nossa única certeza.
“You’re the real thing, even better than the real thing”
U2
Introdução
Vi-o ainda antes de o conhecer. Primeiro num filme pornográfico, alugado numa loja em East Village, assim que um amigo me falou do projecto televisivo que incluia esse actor. Fiz também parte daqueles que visionaram o programa antes de ser apresentado aos executivos da estação de televisão. Era um diário audiovisual desse mesmo actor, estrela porno, a viver na Califórnia. Decidi agora juntar transcrições de frases e imagens apanhadas pela câmara - que o seguiu durante um mês - e um relato dos dias que passámos juntos em Nova Iorque. A responsabilidade da edição e de algum ajuste na tradução é apenhas minha. O programa nunca chegou a ser transmitido. Nem sequer comprado.
Dia 3
Los Angeles, 10h00, testemunho do actor
Eu existo. Provem, mastiguem e engulam. Observem-me nos espelhos da casa e nas fotografias penduradas na parede. Toquem no ecrã da televisão.
Lição número um.
O corpo é importante. Vejam o contorno dos bícepes, a pele para lamber, o tamanho do pénis circuncidado mesmo em estado de descanso. Depois de acordar engole-se um batido de banana e esperam-se dez minutos. Ouve-se música ou descobre-se a televisão. Nada de programas para sorrir. Apenas notícias. Passam-se trinta minutos na máquina de corrida. A resistência é uma qualidade. Transpirar limpa a circulação sanguínea e serve de lavagem automática para a pele. Os pulmões têm de ser grandes, aguentar as provas físicas. Quando se passam seis horas a foder respira-se fundo, adia-se o sofrimento e a exaustão. Os braços exercitam-se porque são como alavancas, ou gruas que sustentam todo o meu peso de cada vez que estou em cima de uma actriz, de uma actriz porno, de uma mulher. Os braços não podem falhar, sofrer tremores de cansaço, desistir sempre que alguém espera que continuemos com a actividade de martelar outro corpo.
As pernas e as nádegas devem mostrar-se duras e com todos os músculos definidos. De cada vez que estou fora da cama e a mulher, a actriz, a profissional, me recebe como os cães nos ensinaram, contraio as coxas e as nádegas, invento beleza. Outras vezes, quando por um erro da produção existe um desnível entre os corpos, uma cama elevada, uma actriz alta, forço-me a estar em bicos de pés, como os bailarinos, profissão de rápido desgaste. Por tudo isto, o exercício do corpo é importante e obrigatório.
Vamos passar pelo corredor, espreitar as duas mulheres, não actrizes, que ainda dormem no meu quarto. Lembrem-me que os lençóis são para a máquina de lavar. E antes de entrarmos na casa de banho, tirem os sapatos.
(Plano de corte, frascos de creme, pasta de dentes, toalhas brancas, pente com dentes em madeira)
Lição número dois.
A higiene é uma forma de beleza. O cabelo deve ser curto e sem produtos pegajosos que enfraquecem as raízes e se mostram desgradáveis aos dedos das mulheres, actrizes profissionais ou mesmo as que não fodem apenas por dinheiro e fama. Deve fazer-se a barba minutos antes de entrar em cena mas guardar sempre o tempo necessário para que a pele absorva o creme hidratante e aceite a maquilhagem. Como podem ver, estou nu diante deste espelho de corpo inteiro, como se fosse uma cama. E nenhum pêlo em qualquer lugar da pele. Cada um escolhe a técnica de depilação, mas uma pele lisa e macia é uma exigência. Não só o corpo parece mais limpo e mais acessível, como os músculos se revelam na sua disposição natural. Os pêlos escondem-os. A zona púbica e do anús é difícil, reconheço, mas se rapada mostra a verdadeira dimensão do pénis. Vocês pediram para dizer pénis, por isso digo pénis e não caralho.
Para as mulheres, um corpo masculino sem pêlos é mais fácil de aceitar. Quando praticam sexo oral, respiram pelo nariz, por isso, se desimpedirmos a zona púbica, facilitamos o trabalho e aumentamos, por consequência, o prazer, assim como a visibilidade. Afasto-lhes o cabelo, prendo-o nas minhas mãos e observo, guiando o pescoço, forçando-o, por vezes. Venho-me, gozo, ejaculo. Como quiserem.
(Plano de corte, porta aberta do quarto, corpos escondendo-se nos lençóis, cabelos loiros)
Estas mulheres, que não recebem para foder, se esquecermos o dinheiro para o táxi e as garrafas de champanhe que despejaram, fazem parte da ginástica que antecede um dia de filmagens. Não são para comer, mas apenas para admirar, para me fazer crescer, para que me masturbe. São um isco, obrigam-me a correr sozinho, são parte do plano de treinos. Ficam na cama, lambendo-se, usando os dedos e os vibradores que escolhem no armário, rodeando-se de brinquedos sexuais, coleiras, lubrificantes, pénis que se atam à cintura, capacetes e bastões de polícia, botas de borracha com desenhos de gatos.
Durante a sessão de ginástica, nesta poltrona insuflável, masturbo-me três vezes, número necessário para a preparação de um dia a foder diante das câmaras. Sou capaz de pensar em muitas coisas quando me masturbo, putas de rua, actrizes, grupos de desconhecidos, trocas de casais, coisas que já fiz, nunca as que ficaram por fazer. E se apertarem a glande do pénis, sim, se apertarem o caralho quando estão quase a vir-se, a gozar, a ejacular, podem começar tudo outra vez. Sem dor, apenas prazer.
Dia 7
Nova Iorque
Relato de um almoço na Rua 14, Meat Packing District, 13h21
O actor escolheu uma salada e depois pediu uma banana que descascou e comeu em poucas dentadas. Conversou sobre o consumo de cocaína pelos profissionais do sexo para demonstrar as vantagens da abstinência. Não aceita sequer o fumo dos cigarros das outras mesas e não bebe álcool, apenas água, leite e sumos energéticos. Afirmou que a carne, a sua carne, tem que estar intacta, para ser dura, para funcionar. Contou que se exercita, inventando técnicas de resistência e que, depois de respirar fundo, recupera sempre o controlo, preserva a erecção e evita um orgasmo precoce antes do momento exigido pelo realizador. Tem método, por vezes enfia o pénis dentro de um balde de gelo ou fecha os olhos e diz, numa voz que não se escuta, a tabuada dos nove e imagina crianças que trabalham em fábricas de fogo de artifício, operações de torax aberto, carneiros degolados, reuniões ou tarefas domésticas por organizar. Sempre que precisa de recomeçar, bebe refrigerantes e come chocolates uma vez que os hidratos de carbono fornecem energia. Depois de ejacular, engole pacotes de açúcar. No tempo da mulher se limpar afirma que está de regresso ao estado sólido.
Quando pedimos a conta, o actor já tinha comentado as características físicas de todas as mulheres do restaurante e iniciado uma conversa com a empregada. Descreveu, com frequência, o que lhes faria se as levasse para a cama. Mas, em diversas ocasiões, escolheu outros lugares para o sexo imaginário, como a casa de banho do restaurante, o corredor do hotel ou um estábulo com cavalos.
No dia anterior tinha participado numa sessão de autógrafos, numa sex shop, aproveitando para promover o último filme que protagonizara. Entre a assistência estava uma mulher, mãe da actriz porno Gigi Star, com quem entrou numa cabine onde se depositam moedas e se descobrem raparigas que se despem, atrás de um vidro, num palco rotativo. Mais tarde, quando nos encontrámos no hotel, contou a tarde de sexo com a mulher de meia idade, as pernas ocupadas em manhãs de ginásio, peito com implantes e lábios apertados em injecções de colagéneo. O problema inicial era o do incesto indirecto, uma vez que contracenara com a filha dessa mulher. Se o beijasse, dizia ela, era como se estivesse a praticar sexo oral com a filha. A imagem apenas aumentou a vontade do actor.
Durante toda uma tarde de compras, no SoHo, analisou partes de corpos, ignorou as mulheres inteiras. Empregadas de balcão, vendedoras de rua, clientes de esplanadas. Disse depois que precisava de sono, porque a noite seria entre bares e mais mulheres desconhecidas. Antes de se despedir disse também que se sentia emocionalmente cansado.
Relato de uma noite no Bar do Hotel TriBeCa Grant, 23h15
O actor disse-me que as pessoas dançam como fodem, ou pelo menos prometem. A noite não é apenas a conversa com amigos, desconhecidos, parceiros de negócios, ou copos com bebidas alcoólicas de cores diferentes, a agitação nos joelhos, nas coxas, na cintura. As pessoas saem para se comerem.
Afastou-se para a pista de dança e quando regressou apontava para um modelo de boné de basebol e braços musculados que segurava as ancas de uma adolescente loira, conduzindo-lhe o corpo, fingindo uma dança. Mas para o actor, aquilo que interessava ao modelo, aquilo em que ele acreditava nesse momento, era na possibilidade de agarrar a adolescente pelos cabelos enquanto ela, de costas e em pé, se apoiaria na mesa de uma sala num qualquer apartamento com vista para o parque.
O que sobrava da noite foi como um espectáculo de conquista. O actor ordenou que desligassem a câmara e apagassem os holofotes. Começou com uma loira de pernas magras e calças de ganga que revelava o fio das cuecas e com quem dançou, tentando lamber-lhe o pescoço. E depois uma mulher que era apenas lábios onde brilhava uma argola de metal, com cabelos curtos e loiros, dançando no centro de uma agitação de drogas e distância. E uma outra de vestido negro, rodeada de fotógrafos, compondo o penteado loiro de cada vez que os flashes se suspendiam, acompanhada por um atleta, ou um actor, ou um músico.
No chão descobriam-se pedaços de copos partidos e beatas e notas e moedas. As opções diminuiam e havia uma nuvenzinha de álcool nos olhos dos que prosseguiam na dança. Durante várias músicas enrolou os braços na cintura de uma mulher que se afastava para sorrir com as amigas e que depois regressava. E no momento de transição de discos, quando o actor nem se movia, foi abraçado por uma outra mulher, com vincos de gordura na barriga, cabelo pintado de loiro e um pescoço transpirado e gordo que o actor beijou antes de lhe chegar à boca. Ao desaparecer para o elevador, encostou os lábios na minha orelha para dizer que todos os homens são fáceis e que às cinco da manhã já nem querem foder. Apenas se querem vir.
Dia 19
Barcelona, 18h54, Festival do Sexo, testemunho do actor
Durante a viagem de avião, com a câmara desligada, decidi contar as mulhers que comi e as nacionalidades. Dentro e fora dos estúdios, cálculos incertos, talvez sejam umas duas mil, de todos os continentes, mulheres que falavam várias línguas e trabalhavam com essas línguas de maneira desigual.
Se me pedem a verdade - digo sempre a verdade - todos os homens querem ser como eu, querem poder andar nos corredores deste festival de sexo e apontar para as actrizes em sessões de autógrafos e dizer:
“Já fiz aquela, aquela e aquela, aquela fez-me, já fiz aquela e a irmã, e aquela que finge ser do leste europeu mas que pinta o cabelo de loiro”
Todos os homens esconderiam as alianças, inventariam desculpas, alguns telefonariam aos advogados para tratarem do divórcio, porque a tesão seria tão evidente dentro das calças do fato que a mulher, a esposa, a verdadeira, nunca acreditaria num congresso no estrangeiro, numa viagem de negócios, numas férias com os amigos de infância.
(Plano de corte, um japonês que enrola o peito de uma mulher com cordas, uma televisão com anões que se masturbam, altifalante que anuncia sessões de sexo ao vivo)
Como podem os homens mentir, como conseguem dizer que não preferem estar aqui,onde as mulheres, actrizes porno, putas dentro das nossas cabeças, se rapam diante do público, onde mostram as mamas e se deixam tocar, oferecendo, em troca da compra de uma cassete de vídeo, uma fotografia polaroide de pernas afastadas e mamilos duros?
A verdade, a verdade está ali, naquele cartaz em espanhol. Encontram naquela frase tudo o que posso dizer sobre os homens e o que experimentam todos os dias, a ambição de se estrearem noutros corpos, frescos, a novidade e a quantidade, apontem a câmara, leiam:
“Fornica bien, no mires a quien.”
Porque as emoções valem no momento, nada se prolonga, todos acabamos por morrer e os sentimentos apodrecem, são um engano que alguns escolhem para esconder a própria natureza, mas, foda-se, não me mintam, não me digam que não somos os animais que depois de foder, de fornicar, de copular, o que quiserem, não descobrem defeitos nos dedos dos pés, nas unhas mal pintadas, no corpo que se levanta e caminha para a casa de banho para se lavar do que acabámos de lhe oferecer. E assim que saímos à rua de manhã, com o cheiro dessa mulher nos dedos e nos lábios e na barba por fazer, já estamos a pensar no que fazer com as mamas gigantes de uma caixa de supermercado que lê um tablóide na carruagem do metro. Acabámos de dormir numa casa que não é a nossa, com uma mulher que conhecemos na noite anterior, e a novidade esgotou-se, queremos outra sessão de caça, outra presa, com outro cheiro, outro formato, outro sabor.
(Plano de corte, vendedor de bilhetes, cassetes de vídeo com travestis e animais, cadeiras com vibradores)
Daqui a pouco tenho que regressar a um quarto de hotel e filmar duas cenas, uma de dupla penetração anal, com uma mulher espanhola e um actor francês, e outra de sexo em grupo, quatro homens para uma mulher. Tenho uma profissão de risco, trabalho sem preservativo por dedicação à beleza do sexo e do amor, palavras iguais. Sou um cronista do meu tempo, um profeta da felicidade, uma chave para a paz mundial, porque eu faço e espalho amor, eu digo a verdade quando utilizo a expressão:
“Fazer Amor.”
Um amor que produzo e fabrico e que é distribuido em cassetes de vídeo, em revistas, em salas de cinema para adultos de todo o planeta. Eu sou o amor comercializado e empacotado em caixas coloridas, publicitado, com preço, grátis, em promoção, eu sou o amor de agora, o amor biológico dos homens, o mais autêntico, o que todos conhecem mas que poucos aceitam. Represento o prazer das hormonas, a natureza, a minha e a nossa essência. E esta é a nossa inevitabilidade, mas também a nossa única certeza.
sexta-feira, janeiro 23, 2004
Aviso
Não me agradam as repetições, mas tenho que recuperar este texto, escrito e publicado aqui há alguns meses. O filme estreia agora em Portugal, embora o que tenha escrito seja apenas Nova Iorque, uma maneira de lá estar, ainda que Lost in Translation se passe em Tóquio.
Quero ser como tu
Talvez seja a qualidade dos protagonistas ou a beleza do enredo, mas o cinema costuma ser mais interessante que uma vida normal. É por isso que hoje – após muitos anos a pensar numa carreira de pugilista, rebelde, justiceiro, solitário, ou chefe do crime organizado – pondero ser apenas um homem que envelhece, estrela de Hollywood, perdido em Tóquio, mas que consegue fazer sorrir uma mulher mais nova. Eu quero ser Bill Murray, em Lost in Translation, o segundo filme de Sofia Coppola.
Depois de anos a imitar personagens musculadas, intelectuais sedutores, ou polícias que acabam suavizados por mulheres bonitas, escolho ser agora um homem cuja cara no espelho começa a pesar, uma cara que é uma coisa qualquer menos a cara que já foi antes. Sou esse homem que não consegue dormir, longe de casa, e que descobre o silêncio insustentável quando é ignorado pelo ruído das ruas de Tóquio. A minha mulher é uma voz no telefone, também distante, que se preocupa com a escolha da alcatifa para uma das divisões da casa. A minha carreira é filmar anúncios de whisky japonês com pessoas que nem sequer falam a minha língua. E, no entanto, enquanto fumo charutos amassados e me embebedo, aparece essa miúda loira, os lábios espessos, os olhos tão tristes. Eu quero estar hoje num elevador, em Tóquio, e ver Scarlett Johansson que me sorri entre japoneses que apenas olham em frente enquanto eu olho para ela.
O que Sofia Coppola conseguiu fazer foi um filme onde eu quero estar. Como quero estar deitado, sobre a colcha, vestido, conversando com Scarlett Johansson enquanto o sono nos vai comendo as ideias e demorando as palavras. Quero tocar-lhe no pé magoado e apagar a consciência, como apagamos tantas vezes por causa do sono, a meio de uma conversa. O que Sofia Coppola me ofereceu foi um filme que me faz egoísta, que quero apenas para mim, como se fosse a minha vida. Lost in Translation consegue beleza e significado sempre que alguém permanece em silêncio; revela o humor que sempre quisemos mostrar a quem gostamos; é verdadeiro, sincero, e tão bem feito que me esqueci de procurar as costuras do enredo. Cada cena, cada detalhe – assim devem ser os filmes – não são apenas um capricho da realizadora em busca da beleza das imagens, mas um momento decisivo para contar a história que se quer contar.
Vou lembrar-me também de uma sala de cinema, em Brooklyn, construída num prédio de habitação onde os estreitos corredores e as portas – antes eram quartos, cozinhas, casas de banho – mostram as estrelas de cinema pintadas pela mão de algum artista amador. Há ainda a fotografia de James Dean, as golas do casaco levantadas e o cigarro na boca apontado à desolação da rua onde, com toda a certeza, vai chover. Gostaria de ter entrado no mesmo cinema e repetir tudo outra vez, pois essa seria a forma mais aproximada de ser eu o protagonista do filme. Nos dias que se seguiram, ainda hoje, quero estar sentado diante de Scarlett Johasson, num restaurante, e ser capaz de a fazer sorrir, saber que sou eu que me esqueço de tudo, longe, em Tóquio, e entregá-la ao quarto de hotel sem ter a certeza se, alguma destas noites, antes de regressar a Los Angeles, vou ter coragem para a beijar.
Não me agradam as repetições, mas tenho que recuperar este texto, escrito e publicado aqui há alguns meses. O filme estreia agora em Portugal, embora o que tenha escrito seja apenas Nova Iorque, uma maneira de lá estar, ainda que Lost in Translation se passe em Tóquio.
Quero ser como tu
Talvez seja a qualidade dos protagonistas ou a beleza do enredo, mas o cinema costuma ser mais interessante que uma vida normal. É por isso que hoje – após muitos anos a pensar numa carreira de pugilista, rebelde, justiceiro, solitário, ou chefe do crime organizado – pondero ser apenas um homem que envelhece, estrela de Hollywood, perdido em Tóquio, mas que consegue fazer sorrir uma mulher mais nova. Eu quero ser Bill Murray, em Lost in Translation, o segundo filme de Sofia Coppola.
Depois de anos a imitar personagens musculadas, intelectuais sedutores, ou polícias que acabam suavizados por mulheres bonitas, escolho ser agora um homem cuja cara no espelho começa a pesar, uma cara que é uma coisa qualquer menos a cara que já foi antes. Sou esse homem que não consegue dormir, longe de casa, e que descobre o silêncio insustentável quando é ignorado pelo ruído das ruas de Tóquio. A minha mulher é uma voz no telefone, também distante, que se preocupa com a escolha da alcatifa para uma das divisões da casa. A minha carreira é filmar anúncios de whisky japonês com pessoas que nem sequer falam a minha língua. E, no entanto, enquanto fumo charutos amassados e me embebedo, aparece essa miúda loira, os lábios espessos, os olhos tão tristes. Eu quero estar hoje num elevador, em Tóquio, e ver Scarlett Johansson que me sorri entre japoneses que apenas olham em frente enquanto eu olho para ela.
O que Sofia Coppola conseguiu fazer foi um filme onde eu quero estar. Como quero estar deitado, sobre a colcha, vestido, conversando com Scarlett Johansson enquanto o sono nos vai comendo as ideias e demorando as palavras. Quero tocar-lhe no pé magoado e apagar a consciência, como apagamos tantas vezes por causa do sono, a meio de uma conversa. O que Sofia Coppola me ofereceu foi um filme que me faz egoísta, que quero apenas para mim, como se fosse a minha vida. Lost in Translation consegue beleza e significado sempre que alguém permanece em silêncio; revela o humor que sempre quisemos mostrar a quem gostamos; é verdadeiro, sincero, e tão bem feito que me esqueci de procurar as costuras do enredo. Cada cena, cada detalhe – assim devem ser os filmes – não são apenas um capricho da realizadora em busca da beleza das imagens, mas um momento decisivo para contar a história que se quer contar.
Vou lembrar-me também de uma sala de cinema, em Brooklyn, construída num prédio de habitação onde os estreitos corredores e as portas – antes eram quartos, cozinhas, casas de banho – mostram as estrelas de cinema pintadas pela mão de algum artista amador. Há ainda a fotografia de James Dean, as golas do casaco levantadas e o cigarro na boca apontado à desolação da rua onde, com toda a certeza, vai chover. Gostaria de ter entrado no mesmo cinema e repetir tudo outra vez, pois essa seria a forma mais aproximada de ser eu o protagonista do filme. Nos dias que se seguiram, ainda hoje, quero estar sentado diante de Scarlett Johasson, num restaurante, e ser capaz de a fazer sorrir, saber que sou eu que me esqueço de tudo, longe, em Tóquio, e entregá-la ao quarto de hotel sem ter a certeza se, alguma destas noites, antes de regressar a Los Angeles, vou ter coragem para a beijar.
quarta-feira, janeiro 21, 2004
Verano Azul
Com uma mala de viagem ocupada por um par de sapatos, algumas roupa e um saco de plástico com dinheiro para sobreviver três meses, Angelina chegou a Madrid na tarde de sete de Julho de mil novecentos e oitenta e seis. A dor estendia-se da zona inferior das costas, acima do rabo, até aos ombros, os músculos duros, como se o banco de autocarro tivesse moldado a carne, a magoasse, servisse como um instrumento de tortura. Angelina caminhou pelas ruas quase sem pessoas, trabalhadores ausentes, em férias no sul, pais estendidos em toalhas, na areia, ou dormindo em apartamentos com ar condicionado depois de almoçarem, crianças que viam televisão e esperavam o momento de regressar à praia. Mas em Madrid não se podia fugir ao calor que subia dos passeios e trepava as fachadas do edifícios, palácios, museus, moradas de escritórios de governantes que escolhiam as leis do país.
As escadas da pensão na rua Hortaleza estavam protegidas por uma carpete vermelha com nódoas. A chave movia-se na mão da proprietária que explicou o funcionamento das torneiras na casa de banho comum e proibiu a visita de homens no quarto número vinte e nove. Em vez de um candeeiro havia uma lâmpada pendurada num fio eléctrico. Os lençóis seriam mudados uma vez por semana. Angelina descalçou-se mas manteve as meias, receando a sujidade infiltrada no chão de tacos de madeira.
Quando saiu do quarto havia mais pessoas na cidade. Encontrou visitantes estrangeiros e consumistas da classe média que entravam nas lojas e apareciam com sacos de roupa vendida em época de saldos. Comeu sozinha, numa esplanada, sem olhar para ninguém. Não queria que se pudessem lembrar da sua cara. O anonimato e o silêncio eram parte do sacrifício, ficar dias no quarto, sair apenas quando tivesse fome, não escrever postais à família e nunca telefonar para casa.
O calor durante o dia sobrepunha-se à ventoinha enfiada no lavatório. Angelina asfixiava e por isso percorria a cidade, sempre pela sombra, nunca a mesma rua, o mesmo bairro, um cinema, os monumentos que comprovavam a grandeza de um império universal. Numa tarde atreveu-se a entrar numa piscina pública e molhou o corpo, apenas as pernas, erguendo os braços e encolhendo a barriga quando provou a água morna, imaginando as crianças gordas cuspindo e mijando, os seus olhos vermelhos pelo cloro, sandes que devoravam de boca aberta antes de se executarem mais um mergulho que fazia explodir a água e atingia os fumadores na borda da piscina. Regressou ao quarto, esfregou o corpo com álcool, procurou apagar-se, dormindo, esperando regressar pelo menos uma vez mais a San Sebastian e às praias onde o único nojo eram as algas que raramente chegavam à areia. Os pais e os irmãos estariam junto da água, conversando, com as ondas a cobrirem os pés e depois a regressarem ao oceano. Mas Angelina acreditava que o sofrimento apresentaria resultados, mesmo que nunca mais regressasse a San Sebastian e que a família apenas recebesse notícias através de um mensageiro que deixaria um papel debaixo da porta de casa.
Os homens que a olhavam, que limpavam a espuma da cerveja do bigode e que comentavam com os amigos as pernas quase adolescentes de Angelina, haveriam de conhecer a culpa, seriam confrontados com os seus actos, com o desconhecimento, com a prepotência. Angelina apenas aguentava o calor, as manchas de suor nas camisas dos homens, o dinheiro que lançavam para cima das mesas, porque a dimensão das faltas desses homens antecipava o prazer do castigo.
Na manhã de dois de Setembro foi perseguida, imaginou uns olhos a rodear-lhe o contorno das mamas, os ombros anteciparam um beijo com cuspo, receou um par de mãos com pêlos a subirem pelas canelas, separando as coxas, forçando os músculos. Angelina percebeu apenas uma palavra num idioma que nunca se ouvia em Madrid mas não se virou, diminui a velocidade, quase sorriu, manteve a cara escondida no cabelo, entrou num café, sentou-se e viu o homem, o seu contacto em Madrid, dirigir-se para a casa de banho com uma mochila.
Nessa tarde, Angelina comprou bilhetes de autocarro para França. Escolheu um cabeleireiro, cortou e tingiu o cabelo, maquilhou-se, trocou os chinelos por uns sapatos e deixou a mochila do homem dentro de um caixote do lixo de um centro comercial. Às dezoito horas e trinta e cinco minutos a bomba matou treze pessoas e feriu vinte sete.
Com uma mala de viagem ocupada por um par de sapatos, algumas roupa e um saco de plástico com dinheiro para sobreviver três meses, Angelina chegou a Madrid na tarde de sete de Julho de mil novecentos e oitenta e seis. A dor estendia-se da zona inferior das costas, acima do rabo, até aos ombros, os músculos duros, como se o banco de autocarro tivesse moldado a carne, a magoasse, servisse como um instrumento de tortura. Angelina caminhou pelas ruas quase sem pessoas, trabalhadores ausentes, em férias no sul, pais estendidos em toalhas, na areia, ou dormindo em apartamentos com ar condicionado depois de almoçarem, crianças que viam televisão e esperavam o momento de regressar à praia. Mas em Madrid não se podia fugir ao calor que subia dos passeios e trepava as fachadas do edifícios, palácios, museus, moradas de escritórios de governantes que escolhiam as leis do país.
As escadas da pensão na rua Hortaleza estavam protegidas por uma carpete vermelha com nódoas. A chave movia-se na mão da proprietária que explicou o funcionamento das torneiras na casa de banho comum e proibiu a visita de homens no quarto número vinte e nove. Em vez de um candeeiro havia uma lâmpada pendurada num fio eléctrico. Os lençóis seriam mudados uma vez por semana. Angelina descalçou-se mas manteve as meias, receando a sujidade infiltrada no chão de tacos de madeira.
Quando saiu do quarto havia mais pessoas na cidade. Encontrou visitantes estrangeiros e consumistas da classe média que entravam nas lojas e apareciam com sacos de roupa vendida em época de saldos. Comeu sozinha, numa esplanada, sem olhar para ninguém. Não queria que se pudessem lembrar da sua cara. O anonimato e o silêncio eram parte do sacrifício, ficar dias no quarto, sair apenas quando tivesse fome, não escrever postais à família e nunca telefonar para casa.
O calor durante o dia sobrepunha-se à ventoinha enfiada no lavatório. Angelina asfixiava e por isso percorria a cidade, sempre pela sombra, nunca a mesma rua, o mesmo bairro, um cinema, os monumentos que comprovavam a grandeza de um império universal. Numa tarde atreveu-se a entrar numa piscina pública e molhou o corpo, apenas as pernas, erguendo os braços e encolhendo a barriga quando provou a água morna, imaginando as crianças gordas cuspindo e mijando, os seus olhos vermelhos pelo cloro, sandes que devoravam de boca aberta antes de se executarem mais um mergulho que fazia explodir a água e atingia os fumadores na borda da piscina. Regressou ao quarto, esfregou o corpo com álcool, procurou apagar-se, dormindo, esperando regressar pelo menos uma vez mais a San Sebastian e às praias onde o único nojo eram as algas que raramente chegavam à areia. Os pais e os irmãos estariam junto da água, conversando, com as ondas a cobrirem os pés e depois a regressarem ao oceano. Mas Angelina acreditava que o sofrimento apresentaria resultados, mesmo que nunca mais regressasse a San Sebastian e que a família apenas recebesse notícias através de um mensageiro que deixaria um papel debaixo da porta de casa.
Os homens que a olhavam, que limpavam a espuma da cerveja do bigode e que comentavam com os amigos as pernas quase adolescentes de Angelina, haveriam de conhecer a culpa, seriam confrontados com os seus actos, com o desconhecimento, com a prepotência. Angelina apenas aguentava o calor, as manchas de suor nas camisas dos homens, o dinheiro que lançavam para cima das mesas, porque a dimensão das faltas desses homens antecipava o prazer do castigo.
Na manhã de dois de Setembro foi perseguida, imaginou uns olhos a rodear-lhe o contorno das mamas, os ombros anteciparam um beijo com cuspo, receou um par de mãos com pêlos a subirem pelas canelas, separando as coxas, forçando os músculos. Angelina percebeu apenas uma palavra num idioma que nunca se ouvia em Madrid mas não se virou, diminui a velocidade, quase sorriu, manteve a cara escondida no cabelo, entrou num café, sentou-se e viu o homem, o seu contacto em Madrid, dirigir-se para a casa de banho com uma mochila.
Nessa tarde, Angelina comprou bilhetes de autocarro para França. Escolheu um cabeleireiro, cortou e tingiu o cabelo, maquilhou-se, trocou os chinelos por uns sapatos e deixou a mochila do homem dentro de um caixote do lixo de um centro comercial. Às dezoito horas e trinta e cinco minutos a bomba matou treze pessoas e feriu vinte sete.